O beijo do pai e o olhar doce da mãe

Kakay e pai na praia
Beijos, afeto e humor moldam a vida de um mineiro entre lembranças, perdas e o doce silêncio da velhice; na imagem, Kakay e seu pai, Alaor do Leão, posam para foto em um dia na praia de Copacabana, no Rio, em 1977.
“O beijo não vem da boca.” 
–Ignácio de Loyola 
Brandão Quando era adolescente, lá no interior das minhas Minas Gerais, uma das alegrias era receber os parentes e amigos nas férias. Como não tínhamos dinheiro para viajar, a emoção era colocar os primos paulistas para montar em bezerros, em pelo, e acompanhar os tombos. Outra emoção, mais sofisticada, era esperar as meninas que vinham passar uns dias na cidade. Certa vez, chegou a moça mais bonita que já havia pisado na terra. O ar ficou rarefeito. Todos se alvoroçaram.
Eu queria impressioná-la, eu e a torcida do Cruzeiro –a maior de Minas. Patos de Minas só tinha um prédio: o Alvorada, com 6 andares. Eu era amigo do porteiro –muito chique– e combinei com ele de levar a menina para “andar de elevador”. Porta pantográfica, um luxo. Quando o elevador começou a subir, notei que ela não estava se emocionando. Perguntei: “Você mora em casa ou apartamento em São Paulo?”. Ela respondeu: “Apartamento”. “Qual o andar?”, indaguei aflito. E ela disse: “29º!”. Quando chegamos no 6º andar, olhei um vale que se descortinava e mostrei um casebre de adobe ao fundo e falei que iria contar um segredo. Comentei que havia nascido no casebre e morava lá. Ela ficou encantada. Namoramos durante todo o período das férias. 
A minha casa em Patos de Minas era um espaço de amor, alegria e felicidade. E, principalmente, de humor. Vivia repleta de parentes, primos e amigos. Certa feita, um companheiro de Belo Horizonte, ao passar uma tarde conosco, ficou muito impressionado como o meu pai interagia com a meninada. Brincávamos de luta e os meninos adoravam. E eram milhares de carinhos e beijinhos sem ter fim. Despudorados. Amorosos. E eu fiquei alarmado quando ele me disse, ao me ver abraçar meu velho e lascar um monte de beijinhos: “Meu pai e eu nunca nos beijamos”. 
Essa verdade triste me acompanha até hoje. Tenho para mim que tudo isso ajuda a forjar nosso caráter. Ao longo da vida, passamos, e quem não passou, por poucas e boas. Dificuldades que davam a impressão de que o mundo tinha se virado contra nós. De todas as espécies. De quebrar financeiramente e ficar sem ter onde morar, inclusive, morando, mais tarde para estudar, num barraco de 12 m2 com teto de zinco e banheiro do lado de fora, até aprender a pegar carona de carro nas estradas, nas quadras para ir à aula na UnB e até em aviões da FAB nos aeroportos. 
Ou cantando em bares à noite para ter cerveja, caipiroska e um prato na madrugada. A gente aprende a se virar e um único companheiro nos acompanhou sempre: o humor. E, quando tivemos que mudar de uma casa grande para uma que era do tamanho da sala da anterior, eu ouvi do meu pai: “Aqui a gente fica mais juntinho, mais perto”. E tomem beijos, abraços, carinhos e 1.000 histórias contadas afetuosamente. Anos depois, já em Brasília, meu velho pai estava com 85 anos sem nunca ter sido internado e sem ir ao médico.

Foi convencido a procurar um hospital por causa de uma tosse. Um erro médico o levou. Partiu levando parte das nossas vidas e da nossa alegria. O mundo ficou meio sem cor sem aquele monte de beijos carinhosos. Sem a perspicácia de uma brincadeira de quem era vaqueiro, boiadeiro e olhava a vida com sinceridade. A sofisticação rara da sinceridade amorosa e sem culpa. E como a vida segue, tem que seguir, todos os nossos sentimentos se concentraram na minha mãe. Uma mulher doce, inteligente e mais fechada. Até vir, aos 90 anos, certo alheamento em relação às preocupações naturais do mundo.
Ficou leve. Sempre com um sorriso e sem as travas que lhe acompanharam a vida toda. Agora, aos 96, graças a Deus sem nunca ter sido internada, operada ou ficado doente, parece, às vezes, morar em um mundo só dela. Olha a todos com um olhar doce e meigo, mas, ocasionalmente, parece vagando. Nunca reclama e não consegue mais andar direito. Como não tem dor, graças a Deus, mantém um bom humor e um jeito amoroso. Reconhece todos, porém, no mais das vezes, não consegue interagir. Mas ainda surpreende e ganha uma partida de dominó. Quando está mais alheia, reage bem a um beijo carinhoso.

E devolve com a leveza profunda que só o beijo de mãe pode ter.
Como passamos a vida toda felizes juntos, com muito carinho desmanchado em toques e afetos, o fato de ela estar abstraída, em um mundo à parte, não nos entristece completamente. Emociona, sim. Mas o beijo carinhoso e maternal garante uma felicidade indecifrável. E eu sinto nos doces olhos dela, e em um silêncio amoroso, que ela também é feliz. Só Pessoa pode explicar esses momentos: “Há tanta suavidade Em nada se dizer E tudo se entender.”
Poder 360