Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay: Somos todos estrangeiros, sempre…

“O suficiente é para quem não ama. No amor, só existem infinitos.” Mia Couto

Saindo da Bienal de Veneza rumo a Paris, sempre fica a ilusão de que a arte vai superar o horror, a mediocridade e a guerra. Embora a gente saiba que não é verdade, sonhar é que nos sustenta. Talvez o ato de simbolismo artístico mais forte, dentre tanta beleza, tenha sido o dos artistas israelenses terem optado por manter fechado o pavilhão de Israel em um protesto contra a guerra, contra a morte e contra o genocídio. Só abrirão quando for decretado efetivamente o cessar fogo e todos os reféns forem liberados. Como a Bienal vai durar até 24 de novembro, ainda podemos manter a esperança. Foi tocante ouvir o silêncio eloquente de um povo e ver uma opção pela paz. A arte e a cultura não combinam com a opressão da guerra.
Tiveram momentos de alta indagação artística, como um ato de um grupo indígena dos EUA com uma dança estranha, que mais parecia o que restou dos aborígenos americanos, trucidados pela cavalaria ianque em uma pajelança que lembrava os índios de parque de diversão. Como tudo pode ser arte, a gente observa, constrangido, quase triste. Mas é uma representação real de um país que assusta o mundo com a volta do Trump.
Sem entender nada de arte, só observando com liberdade, foi lindo ver a força da cultura popular. Um grande espaço para a arte de representação não acadêmica. Que, talvez, seja uma expressão necessária que pode apresentar um sentimento do que a arte significa para um dado período da humanidade.
Os grandes artistas, clássicos, conseguiram, em regra, captar a essência, a alma mesmo, de momentos da história. Às vezes, muito além do momento. Criaram. Viajaram. Contaram histórias ainda não escritas. A história, não interessa se verdadeira, de Michelangelo frente a escultura de David – a mais deslumbrante do mundo – diz tudo. Indagado como conseguiu, ele teria dito: eu me sentei em frente ao bloco de mármore por meses a fio. Fui imaginando David. Um dia resolvi que tinha que criá-lo: e aí peguei o material para entalhar e foi só retirar o excesso. Quando terminei, restou David.
Por isso, acredito na arte como poder de transformação. Não tem polícia matadora de Tarcísio, sentimento racista de Bolsonaro e ignorância atávica de Zema que serão capazes de calar o clima revolucionário de uma exposição como a Bienal. Ali, no meio de tanta criatividade, a gente tem a impressão de que o mundo existe, respira e pulsa além da mediocridade castradora. Tolo de quem, como eu, não consegue enxergar só o poder libertador da arte. Que fica sempre preso à polaridade política. Afinal, a arte existe é mesmo para nos libertar.
Como nos lembrou Nietzsche:
“Temos a arte para não morrer da verdade.”
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Roseana Murray: a mão esquerda

Kakay – Foto: divulgação
“Se eu apagasse a fina linha do horizonte será que o céu cairia no mar? E as estrelas e a lua começariam a navegar? Ou será que o mar viraria céu e os peixes apreenderiam a voar?”
Roseana Murray
Meu velho e querido amigo Presidente Sarney tem uma resposta na ponta da língua quando alguém, inadvertidamente, comenta sobre seus 94 anos: “a outra opção é bem pior”. Viver é uma arte e, muitas vezes, somos submetidos a momentos de profunda provação. Penso, com carinho, na noite em que acordei depois de um grave acidente.
Amarrado em uma cama e com a cabeça enrolada em um capacete de gazes. Achei que tinha morrido. Ninguém sabe como é a morte e, naquele momento, com a lembrança do acidente e do barulho enorme, julguei que era chegada a indesejável das horas.
Quando ouvi uma voz conhecida bem baixinha, ao fundo, percebi que tinha escapado. Na hora, quis saber como eu realmente estava. O que tinha perdido e pelo que teria que lutar. Primeiro, perguntei pelos “países baixos”. A certeza de estar bem foi tranquilizadora. Depois, quis saber da gravidade e a resposta foi seca: “você está cego de um olho e precisamos de 3 dias para avaliar seu risco de morte”. A partir daí, foi
resistir e viver.
Fiz 13 cirurgias no olho, até em Moscou, e os tais 500 pontos no rosto propiciaram muitas histórias. Terminei meu curso na UnB com um olho vendado. O que me possibilitou contar que tinha sido ferido por um tubarão na África do Sul, por uma queda de asa delta e, até, por um amante numa madrugada. Enfim, a vida como ela não é.
Acompanhei, emocionado, a tragédia que se abateu sobre a escritora Roseana Murray. A autora de livros infantis, com 73 anos, foi, covardemente, atacada na porta de sua casa por 3 pitbulls enquanto fazia uma caminhada às 6 horas da manhã. Com a violência da agressão, foi necessário amputar o braço direito e enfrentar lesões no braço esquerdo e no rosto.
A brutalidade dos cães tem que levar à discussão sobre a necessidade imperiosa de se coibir a criação dessa raça. Ela já sofre restrições em cerca de 24 países, como Reino Unido, Espanha, Rússia, Argentina e Itália. Entendo que não são suficientes apenas uma regulamentação e a tentativa de controle. O ideal é a proibição. Basta ver a agressividade com que foi atacada a escritora. É significativa a fala do filho quando foi conversar com ela, ainda em situação gravíssima e com a vida correndo sérios riscos. Ela disse, com a voz bem tênue: “eu quero viver”.
Impressiona ver a sua disposição, a sua alegria até em estar viva. Por mais que só ela saiba das dores que sente e do medo que a acompanha, disse a um programa de televisão que, como escritora, está “se preparando para aprender a ser canhota”. Falou para uma amiga: “Estou aqui, faltando um braço, mas vamos recomeçar de novo”. E agradeceu a equipe médica: “Elas fazem um trabalho de aranhas douradas sobre minha pele. Estou bem”. Anunciou, ainda, que irá fazer um sarau de poesia no hospital e que quer presentear cada um que cuidou dela com um livro que escreveu “autografado com a mão esquerda”. Parece que pensava nela própria ao escrever o poema Pedra Azul: 
“Nos dias em que acordamos
do lado do avesso 
e tudo parece que vira
abismo, basta comprar 
no Armarinho Mágico
a pedra azul de mudar pensamentos.
Segure a pedra com força
e feito um moinho moendo pedras,
tristeza vira alegria 
e dor vira poesia.”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay
Fonte: www.odia.ig.com.br