“Guardiães da Tradição”

Padre João Medeiros Filho

Em 16 de julho passado, o Papa Francisco publicou, sob a forma deMotu Proprio”, a carta apostólicaTraditionis custodes (Guardiães da Tradição). Esta vem causando celeuma entre alguns católicos. A polêmica reside em torno da liturgia, porém atinge aspectoseclesiológicos. em seu nascedouro, a Igreja de Cristo conheceu discordâncias. É o que se infere de Atos dos Apóstolos (capítulo 15) e várias passagens das epístolas paulinas. O catolicismo adota ritos latinos e orientais. Os primeiros desenvolveram-se na Europa ocidental – onde o latim predominou, no passado – e em nações colonizadaspor países europeus. Os demais originaram-se emcomunidades cristãs do Oriente Médio, da Ásia e Europa oriental. Um dos ritos latinos mais conhecidos é o de Pio V, também chamado tridentino. Vigorou, a partir de 1570, após a promulgação da bula “Quo Primum Tempore”.Sofreu algumas mudanças, sendo a última no pontificado de João XXIII, em 1962. O Concílio Vaticano II propôsuma revisão na liturgia ocidental, resultando daí o novoMissal Romano, aprovado em abril de 1969, em vigência desde 1970 e revisado em 2002.

Ultimamente, com o acolhimento de fiéis dissidentes, especialmente oriundos da Fraternidade São Pio X, do arcebispo Marcel Lefebvre, foi permitido o uso do ritualde Pio V. Em 2007, pelo “Motu Proprio” “Summorum Pontificum”, Bento XVI admitiu, em certas circunstâncias, a liturgia tridentina. O documento autorizava a qualquer sacerdote celebrar nessa modalidade litúrgica, anterior ao Vaticano II. Desde então, coexistem duas formas dentro do rito latino romano oficial: a ordinária promulgada por Paulo VI e a extraordinária, aprovada por Pio V. O Papa Francisco, peloTraditionis Custodes”, limitou ascerimônias tridentinas (sempre realizadas em latim). Estasdependem agora da validação do bispo em favor de grupos que as vinham celebrando. Pode ocorrer apenas em templos determinados pela autoridade eclesiástica, desaprovadas em igrejas paroquiais (cf. Art. 3, § 2). São proibidos novos grupos e paróquias seguindo esse rito(Art. 3, §§ 2 e 6). Em Campos dos Goytacazes (RJ), existe a única instituição brasileira assemelhada a uma diocesedesse gênero, criada para acolher fiéis outrora vinculados a Dom Castro Mayer.

Na justificativa dirigida aos bispos, explicando sua decisão, o Santo Padre afirmou: “Em defesa da unidade do Corpo de Cristo, sou obrigado a revogar a faculdade concedida pelos meus predecessores.” E continua: “O uso distorcido que foi feito desta faculdade é contrário às intenções que levaram a conceder a liberdade de celebrar a Missa no Missal Romano, de 1962. Para o atualPontífice, seus antecessores anuíram na celebração da missa de Pio V para encorajar a unidade da Igreja. Assim se expressa Francisco: “Uma oportunidade oferecida por São João Paulo II e, com ainda maior magnanimidade, por Bento XVI, destinada a recuperar a unidade de um corpo eclesial com diversas sensibilidades litúrgicas, foi explorada para alargar as lacunas, reforçar as divergências e encorajar discórdias que ferem a Igreja, bloqueiam o seu caminho e a expõem ao perigo da divisão.

A Santa Sé verificou que, em vários lugares, a celebração na forma extraordinária tornou-se uma rejeição ao Vaticano II e à sua eclesiologia. E, por vezes, vem proporcionando a formação de grupos com pessoasinsatisfeitas, diante das diretrizes pastorais da Igreja. Sem dúvida, em face do posicionamento político-ideológico de alguns clérigos, muitos fiéis se refugiaram sob o manto dessa liturgia. Em alguns casos, prevaleceram o modismo e a discordância às orientações eclesiásticas. No Brasil, qual o proveito dessas celebrações para o Povo de Deus, se há meio século, o latim deixou de ser ensinado nas escolas, ministrado minimamente nos seminários? É o questionamento de certos teólogos e pastores.

Deve-se ressaltar que “Guardiães da Tradição” nãoaborda questões dogmáticas ou morais, mas apenas assuntos disciplinares e cultuais. Um Motu Próprioequivale a um decreto no foro civil e não a uma lei, podendo ser revogado ou modificado pela autoridadelegitimamente constituída. Para tanto, o Papa detém competência, na qualidade de chefe supremo do catolicismo. No citado documento, Sua Santidade não altera decisões conciliares ou doutrinárias, mas aspectos normativos litúrgicos. Rezemos para que haja sempreum só rebanho e um só pastor.” (Jo 10, 16).