Ainda sobre os poderes imperiais do PGR: Ano novo, assunto velho

Ainda sobre os poderes imperiais do PGR: Ano novo, assunto velho

Por Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay.

Durante a pandemia, o mundo inteiro sofreu muito. Chegamos a duvidar se voltaríamos a ter uma vida com a normalidade que existia antes da praga. No Brasil, tínhamos todos um sofrimento adicional.

Um presidente irresponsável, desumano e atrasado, com um pacto maligno com a morte, com a dor e com o descaso ao próximo. Um homem pequeno que nunca esteve à altura do cargo.

Desdenhou dos que sofriam de uma maneira cruel. Chegou a imitar uma pessoa com uma crise de falta de ar, rindo e mostrando sua personalidade perversa. Além de tudo, burro. Tivesse simplesmente comprado a vacina e se imunizado, seguindo a ciência e ouvindo seu ministro da Casa Civil, ele, quase certamente, estaria reeleito hoje. Preferiu a barbárie e foi o responsável direto, por sua escolha política de não enfrentamento ao vírus, por, pelo menos, 1/4 dos 700 mil mortos.

À época, vários de nós representamos ao procurador-geral da República requerendo que fosse apresentada uma denúncia contra o Presidente da República.

Pela opção constitucional brasileira, o PGR é o dominus litis, ou seja, o dono da ação penal. Só ele, ou algum subprocurador por ele nomeado, pode oferecer uma acusação junto ao Supremo Tribunal. A ação penal só terá início se e quando a Corte Suprema receber a denúncia.

E aí sim, começa a persecução criminal. Em outras palavras, no Brasil, no momento pré-processual, o procurador-geral da República pode mais e tem mais poder do que os 11 ministros do Supremo juntos. São os poderes imperiais do PGR.

Augusto Aras, foi Procurador-Geral da República no governo Bolsonaro
José Cruz/Agência Brasil – Augusto Aras, foi Procurador-Geral da República no governo Bolsonaro

Quando o Dr. Aras escolheu não processar Bolsonaro , discutiu-se muito sobre a necessidade de introduzirmos no ordenamento constitucional a hipótese de uma queixa-crime subsidiária.

Em casos como o da pandemia, teríamos tido o apoio dos mais de 200 mil mortos insepultos que clamam por justiça e dos milhões de familiares e amigos. Mas a questão da legitimidade para isso ainda não foi enfrentada. E nada foi feito pelo Ministério Público Federal.

O Dr. Aras fez um excelente e corajoso trabalho contra outra praga: a Lava Jato. Conseguiu, com seriedade, coragem, independência e honradez, vencer o espírito de corpo – um câncer nas instituições – e enfrentou, com muita dignidade, uma pressão para que os seus pares continuassem a abusar das leis e da Constituição, seguindo um projeto de poder criminoso.

Agora estamos, novamente, a lidar com um momento delicado nas investigações feitas pela  tentativa de golpe e pelo relatório apresentado e votado no Conselho Nacional de Justiça contra os líderes da Lava Jato.

Pela posição adotada pelo Dr. Paulo Gonet, que já pediu a prisão preventiva de Braga Netto, um general 4 estrelas, ao que tudo indica, a denúncia contra Bolsonaro e seu grupo virá inexoravelmente.

A descoberta do plano de matar um ministro do Supremo tem um efeito, talvez, mais forte do que os milhares de bolsonaristas patriotas invadindo as sedes dos Três Poderes. A condenação de mais de 300 pés rapados praticamente exige uma postura contra os líderes da tentativa de golpe e de instituir uma Ditadura no país.

Atos golpistas do 8/1 completaram dois anos
Agência Brasil – Atos golpistas do 8/1 completaram dois anos

Mas o silêncio do Ministério Público na apuração criminosa contra o chefe da República de Curitiba, o ex-juiz Moro, seu subchefe, o ex-procurador Deltan, e mais os seus procuradores adestrados, é constrangedor e humilhante para a instituição.

Sob a coordenação do ex-corregedor do Conselho Nacional de Justiça – o sério, corajoso e independente ministro Luís Felipe Salomão -, foi feita rigorosa investigação sobre os abusos da Lava Jato.

Em 10 de abril de 2024, o delegado da Polícia Federal Elzio Vicente da Silva, em apoio à Corregedoria Nacional, apresentou avassalador relatório imputando aos investigados hipóteses criminais de corrupção, peculato e organização criminosa. O trabalho, sob a supervisão independente do ministro Salomão, depois de idas e vindas, foi levado a julgamento no plenário do CNJ e aprovado.

Leigos, prestem bem atenção: não se trata de um simples relatório da Polícia Federal, o que já seria gravíssimo e mereceria toda a seriedade e rapidez no tratamento de questões tão graves. Não. Estamos falando de um relatório discutido e aprovado pelo plenário do Conselho Nacional de Justiça! Órgão presidido pelo presidente do Supremo Tribunal, que, por sinal, votou contra a aprovação. Mas o trabalho foi validado pelo colegiado.

Ou seja, no dia 7 de junho, o plenário do CNJ aprovou o relatório. No dia 10 de junho, o Corregedor, ministro Salomão, encaminhou todas as peças ao Supremo Tribunal e ao procurador-geral da República.

O Supremo só pode também encaminhar ao PGR, que pode denunciar, pedir novas diligências ou arquivar. É possível imaginar que um relatório aprovado pelo plenário do Conselho Nacional de Justiça dificilmente comportaria novas diligências, senão os próprios membros teriam pedido. Depois de 7 meses, existe um silêncio ensurdecedor.

Não se discute aqui a postura do procurador-geral, um homem reconhecidamente culto, sério e competente. Assim como era o Dr. Aras, quando optou por não denunciar Bolsonaro, fazendo uso dos seus poderes imperiais. Mas já é hora de discutirmos o sistema constitucional.

Não só todos os operadores do direito e os que se debruçam sobre os valores democráticos, mas, especialmente, o Congresso Nacional. À época da CPI da covid, alertei aos senadores que a omissão da PGR com o relatório seria a maior frustração para o povo brasileiro. E foi.

Agora, os que acompanham o Poder Judiciário e o Ministério Público sentem o mesmo gosto amargo com o relatório do CNJ. É como nos ensinou Mario Quintana: “Democracia? É dar, a todos, o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, isso depende de cada um”.

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8 de janeiro, um dia que já dura 2 anos

Imagem: Fellipe Sampaio/STF.

Por Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay.

Há exatos dois anos, em 8 de janeiro de 2022, eu estava sentado neste mesmo restaurante de onde escrevo, em Trancoso, quando recebi um telefonema de um ministro relatando movimentos estranhos e perigosos que colocavam em risco a Praça dos Três Poderes. A princípio, não dei muita importância ao relato, devido à falta de detalhes. Mas rapidamente chegaram informações que indicavam uma tentativa grave de tomada das sedes dos poderes. A intenção era clara: depredá-las e, ao desestabilizar as instituições, criar uma oportunidade para um golpe.

Para quem acompanhou, com apreensão e com cuidado, os movimentos golpistas de Bolsonaro durante seus 4 anos de governo, era claro que estávamos sob e uma tentativa de golpe de Estado. Não era um ato isolado. Essa percepção cresceu à medida que recebi telefonemas de outros ministros do Executivo e do Judiciário, de governadores — especialmente de Celina Leão, de Brasília, com quem falei várias vezes — e de outras autoridades do Legislativo. Impressionou-me a postura firme e decidida do então ministro da Justiça, Flávio Dino, com quem também conversei diversas vezes e que liderou as ações para conter a ameaça e preservar a democracia.

Em conversas, quando ouvi menções a GLO (Garantia da Lei e da Ordem), compreendi o plano golpista: caso fosse aceita, o próximo passo seria a intervenção das Forças Armadas. A experiência democrática de Lula e Dino evitou que se abatesse sobre o Brasil o vendaval de uma ruptura institucional. Muitos contribuíram para conter a ameaça, mas esses dois tiveram especial importância.

Apreensivo, retornei à minha casa em Trancoso para acompanhar o desenrolar dos eventos. Informações desencontradas chegavam, mas todas apontavam para a gravidade da situação. Estávamos diante do que poderia ser o ápice da implantação de uma ditadura militar no Brasil. Certa autoridade pediu para que eu voltasse a Brasília. Enquanto eu providenciava um avião, assisti, estarrecido, aos golpistas depredando o plenário do Supremo Tribunal Federal — um espaço que considero quase sagrado como advogado, após 40 anos de exercício profissional. Emocionei-me em pranto silencioso ao ver aquele local, onde tantas vezes defendi os preceitos democráticos, ser vandalizado. Tive a certeza de que, caso os ministros estivessem presentes, seriam mortos de forma cruel e violenta.

Quem acompanhou os passos vacilantes da democracia brasileira nos últimos anos, especialmente durante o governo fascista de Bolsonaro, compreendeu o enredo. À época, o Executivo atuava ativamente para desestabilizar as instituições. Jair Bolsonaro, pessoalmente, arquitetava estratégias para enfraquecer os pilares democráticos. Ao mesmo tempo, grande parte do Legislativo estava cooptada ou era conivente. Durante esses anos sombrios, o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral assumiram a resistência, sustentando a democracia. A história há de reconhecer, em sua plenitude, este papel.

É irônico que o Judiciário — historicamente reacionário, patrimonialista e elitista, especialmente nos tribunais estaduais — tenha afiançado a nossa estabilidade democrática. Mas foi o que ocorreu. No final da noite do dia 8, quando recebi um telefonema de um ministro do Supremo que, do plenário destruído, notei em sua voz que chorava. Ao seu lado, o presidente Lula também estava emocionado. Naquele momento, ainda muito tenso, estávamos vivendo a resistência democrática em sua essência, em nome da Constituição e das instituições.

Foi um longo dia aquele 8 de janeiro de 2022. Tão longo que parece ainda não ter terminado. O Judiciário agiu com rapidez, surpreendendo os golpistas. Mais de mil foram presos naquele mesmo dia, e hoje 313 já foram condenados pela Suprema Corte. Entre os detidos, estão altas autoridades, incluindo um general de quatro estrelas, aguardando julgamento. É urgente que o procurador-geral da República apresente denúncias contra Bolsonaro, generais, militares, financiadores, políticos e golpistas em geral, para que possamos alcançar a estabilidade democrática almejada.

A recente revelação de que uma tentativa de assassinato contra o ministro Alexandre de Moraes só não foi levada a termo por detalhes operacionais desestabilizou até mesmo quem ainda dizia que as condenações estavam muito rigorosas. É hora de julgar e punir os responsáveis por tentar instaurar o terror no Brasil. Só assim poderemos retornar à normalidade democrática. Nós merecemos.

O errado não deixa de ser errado só porque a maioria concorda e participa.”
— Leon Tolstói

Fonte: www.cartacapital.com.br

 

Os Chacais

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

“Envolvente em sua indiferença, admirável em sua frieza, pertinaz em sua determinação, ele é o Chacal, um assassino de aluguel contratado pela OAS, Organização do Exército Francês, inimiga da independência da Argélia, para fulminar o General De Gaulle com uma bala de fuzil. Sem identidade, mas com gestos refinados e elegantes, o Chacal trabalha nas sombras e mata friamente quem se interpõe em seu caminho. Um plano macabro. Conseguirá o inominável Chacal executá-lo?”, essa é a chamada da contracapa do célebre romance “O dia do Chacal” (Abril Cultural, 1980), do inglês Frederick Forsyth (1938-2010).

Evidentemente, não vou responder à pergunta. Não faço spoiler.

Quero aqui, na verdade, para além de ressaltar a excelência desse best-seller, falar do seu caráter duplamente “imitativo”, já que ele imita a vida e a vida acaba o imitando.

Segundo consta, Forsyth teria imaginado o enredo de “O dia do Chacal” quando, trabalhando para a agência Reuters, observou a labuta das forças de segurança em torno do General De Gaulle. Escrito em estilo marcadamente jornalístico, o livro principia narrando um fato histórico: a tentativa frustrada, em 22 de agosto de 1962, patrocinada pela OAS (no original “Organisation de l’Armée Secrete”), através do tenente-coronel Jean-Marie Bastien-Thiry, de assassinar o heroico líder francês. Nesse ponto, o livro é um bom exemplo de ficção histórica.

Se a arte imita a vida como no princípio de “O dia do Chacal”, é também danado para, a partir da ficção policial, numa mistura infeliz de loucura com pura criminalidade, a vida imitar a arte. “O dia do Chacal” parece ser um caso clássico desse tipo de influência no mundo real. O próprio método para adquirir passaporte e identidade falsos, como descrito no romance, restou doravante imitado e conhecido, sobretudo no Reino Unido, como “Day of the Jackal fraud”. Consta que vários assassinos e terroristas eram fanáticos leitores do romance de Forsyth. Com Yigal Amir, que assassinou primeiro-ministro de Israel Yitzhak Rabin em 1995, foi encontrada uma cópia em hebraico de “O dia do Chacal”. Sobretudo temos o caso do terrorista venezuelano Ilich Ramírez Sánchez, notadamente apelidado de “Carlos, o Chacal”, uma vez que também teria sido encontrada uma cópia do romance nos pertences do dito cujo. Tido como marxista-leninista radical, ele foi o responsável por uma série de assassinatos e atentados terroristas nos anos 1970 e 1980, inclusive na França. Esteve entre os criminosos internacionais mais procurados. Foi finalmente capturado no Sudão e transferido para a França, onde atualmente cumpre várias penas de prisão perpétua. Quem sabe algum dia não falamos sobre o caso real de Carlos, o Chacal?

É fato que o romance “The Day of the Jackal”, desde quando originalmente publicado em 1971, tem sido um sucesso de crítica e de público. Venceu o prêmio Edgar, da Mystery Writers of America, no ano seguinte ao seu lançamento. Ainda hoje popular, figura sempre nas listas dos romances mais lidos da literatura inglesa e universal. E, já em 1973, com o mesmo título, foi excelentemente adaptado para a grande tela, com direção de Fred Zinnemann e estrelado por Edward Fox e Michael Lonsdale. O filme ganhou um BAFTA, além de outras merecidas indicações para o mesmo prêmio, para o Globo de Ouro e para o Oscar. Tornou-se um clássico.

Por sinal, acabei de descobrir que o livro de Forsyth foi recentemente adaptado para a TV. “The Day of the Jackal” (2024) é uma nova série da televisão britânica, estrelada por Eddie Redmayne e Lashana Lynch, que, desde a estreia em novembro último, virou sucesso mundial. Logo indicada ao Globo de Ouro (melhor série – drama), batendo recordes de audiência nos Estados Unidos e no Reino Unido, com a segunda temporada já anunciada, ela chegou ao Brasil por meio da plataforma de streaming Disney+. Para quem quer menos badalação no verão, esse “novo” Chacal é uma boa opção, não?

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

“O ódio fascista que foi inoculado pelos bolsonaristas precisa ser enfrentado”, diz Kakay

Advogado Antonio Carlos de Almeida Castro
Advogado Antonio Carlos de Almeida Castro (Foto: Alessandro Loyola/PSDB)

Por Kakay!

O advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, afirmou que as ameaças dirigidas à jornalista Natuza Nery, da GloboNews, não podem ser subestimadas. “É importante que a gente leve a sério ameaças como a da Natuza. Este modo covarde de agir destes bolsonaristas teve repercussões no caso concreto porque a Natuza é muito conhecida e imediatamente tomou providências”, disse ele. “Este policial que faz esta ameaça a uma mulher é o perfil do que mata e agride”, acrescentou. O advogado, que se colocou à disposição para defender a jornalista, reforçou ainda que “este ódio fascista que foi inoculado pelos bolsonaristas tem que ser enfrentado. Este é o legado maldito do Bolsonaro.”

A jornalista Natuza Nery foi alvo de ameaças por parte de Arcênio Scribone Júnior, policial civil de São Paulo, após ser abordada de forma agressiva em um supermercado na noite do dia 30. No boletim de ocorrência registrado por Natuza, Arcênio teria proferido declarações como “pessoas como vocês deveriam ser aniquiladas”, gerando uma reação imediata da vítima e de sua equipe.

O agressor, identificado como Arcênio Scribone Júnior, apagou seus perfis nas redes sociais após a repercussão do caso, mas deixou rastros de seu comportamento bolsonarista através de postagens que atacavam as urnas eletrônicas, defendiam tentativas de golpe de estado após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva e criticavam as Forças Armadas por não apoiarem Jair Bolsonaro nas eleições de 2022.

Após a abordagem no supermercado, Natuza tentou identificar o policial para formalizar a denúncia, encontrando-o próximo ao caixa acompanhado de sua esposa, que o repreendeu diante das ofensas. Inicialmente, Arcênio negou as ameaças, afirmando ter apenas “feito uma crítica ao trabalho” da jornalista. Contudo, durante o registro da ocorrência na delegacia, foi revelada sua ocupação como policial civil, levando ao encaminhamento do caso à Corregedoria da Polícia Civil.

A Secretaria de Segurança Pública (SSP) de São Paulo informou ao jornal O Globo que a Polícia Civil “instaurou inquérito para apurar a acusação de ameaça”. A corregedoria assumiu as investigações, realizando diligências no supermercado em busca de imagens e testemunhas, além de abrir uma investigação administrativa contra o agente, o que pode resultar em seu afastamento do cargo.

As investigações revelaram que Arcênio, mesmo após apagar suas redes sociais, mantinha postagens críticas à imprensa, ao Judiciário e às Forças Armadas, além de expressar apoio a manifestações golpistas e questionar a confiabilidade das urnas eletrônicas. Em uma publicação recente na rede social Threads, em novembro deste ano, ele respondeu a uma pergunta sobre onde estaria “se fizesse tudo que tem vontade” com a frase “Preso ou morto”. De acordo com o contracheque divulgado pelo governo de São Paulo, o policial recebia uma remuneração bruta de pouco mais de R$ 14 mil em novembro de 2025.

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Outros natais

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Nesta véspera de Natal, chafurdando no site da BBC, seção de cultura, dei de cara com uma matéria cujo título dizia: “A melhor história natalina de fantasmas: como o filme de terror dos anos 1980, A Mulher de Preto, aterrorizou a Grã-Bretanha”. A matéria faz referência ao filme “The Woman in Black”, direção de Herbert Wise (1924-2015), originalmente exibido pela ITV na véspera do Natal de 1989, a partir de uma adaptação do romance homônimo, de 1983, de Susan Hill (1942-). Consta que assustadoramente arruinou o sono de muitas pessoas naquela noite de Natal. E, segundo a BBC, a tal “Mulher” representa o pináculo de uma tradição britânica de festivas estórias de fantasmas. Tem boa razão.
Com pequenas variações que decorrem das naturais adaptações, a aterrorizante estória de “A Mulher de Preto” basicamente gira em torno da experiência do jovem advogado Arthur Kipps, em viagem de trabalho, na pequena e chuvosa cidadezinha de Crythin Gifford (que, embora imaginária, estaria situada na costa leste da Inglaterra). Em dado momento, o jovem advogado vê uma estranha “mulher de preto”. Os locais temem falar do assunto. Trata-se, segundo a crença local, do fantasma de uma mãe, que em vida foi separada do filho, em busca de vingança. A vingança, para infelicidade de pais e mães, recai sobre as crianças do lugar, já que, após cada aparição da “mulher de preto”, uma ou mais delas inesperadamente morrem. Para dar ares ainda mais sombrios à coisa, boa parte da trama, temporalmente situada no começo do século XX, se passa em uma abandonada mansão, localizada em uma remota ilhota na costa, cujo acesso só é possível quando a maré está baixa. Uma ilhota tipo o Mont Saint-Michel, na Normandia francesa, algo que, aliás, embora menos conhecido, a Inglaterra também tem: o St Michael’s Mount, na Cornualha (que nome terrível!), no extremo sudoeste da Ilha Britânica. De toda sorte, os montes reais, o francês e o inglês, são belíssimos e (quase) nada aterrorizantes.
Morando/estudando em Londres, tive a oportunidade de assistir a duas “versões” de “A Mulher de Preto”. O filme “The Woman in Black”, de 2012, com direção de James Watkins (1973-) e Daniel Radcliffe (o queridinho Harry Potter) e Ciarán Hinds nos papéis principais. E a célebre peça homônima, então já há vários anos em cartaz no Fortune Theatre (bem no miolo de Covent Garden). Em dois atos, com só dois atores no elenco, esta tinha um ambiente ao estilo filme noir, onde, dentro da peça, se encenava outra peça. Com essa habilidosa mistura de “peças”, inconscientemente o espectador ficava transitando entre dois (assustadores) mundos e, em dado momento, não sabia mais se lidava com fantasmas imaginários ou reais. Adorei.
É verdade que assistir aos filmes “The Woman in Black” e (necessariamente) à peça na cidade de Londres dá um toque a mais à coisa. Tem um “espírito assustador” londrino que é sentido/vivido in loco. E esse eu conferi, já impressionado e tarde na noite, voltando para casa, cruzando estranhas ruelas e becos. A verdade é que basta olhar para o lado – ou, para os mais incrédulos, ir checar nas inúmeras publicações sobre a “Haunted London” – para se enxergar que fantasmas e Londres têm tudo a ver. Em Covent Garden mesmo, são “histórias” e mais “estórias” de violência, morte e aparições nas cercanias. Uma pequena amostra da cidade de “Jack, o estripador”, da Torre de Londres, seus enforcados e seus espíritos. Sinistro.
Mas é verdade também que, para aqueles desejosos de espantar seus fantasmas, sobretudo os imaginários, havia sempre – e ainda há – os pubs de estilo.
Bons tempos, posso dizer, embora correndo o risco de parecer demasiadamente saudosista – mas quem não o é no Natal? –, quando o mundo era grande e pequeno e, nos natais, nos preocupávamos apenas com os fantasmas festivos.
Hoje, com a terra e a vida tão estreitas, temos outras preocupações maiores. E nada sobrenaturais.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Noite de Natal: entre a melancolia e a tristeza.

Na imagem acima, o coreto da praça do Coreto Municipal, em Patos de Minas, iluminado com a decoração de Natal.

Por Kakay!

“Ainda estou vivo  mas as moscas já me picam os olhos.” -Masaoka Shiki, Haikus do livro “Aves dormindo enquanto flutuam” Nascer e crescer no interior de Minas Gerais dá um certo tom diferente em cada um de nós, mineiros. O contorno das montanhas, que para alguns de fora significa a imposição de limites, para nós é aconchego e segurança. Como não temos mar, acostumamo-nos com a imensidão dos prados e nossas ondas parecem substituídas por conversas sem fim, que vão e voltam. O mineiro tem um jeito manso que engana e embala. Nas noites frias de Patos de Minas, a poesia e as serenatas eram companheiras inseparáveis. Como não conhecíamos o mar, não sentíamos falta. Era um tempo sem televisão, sem telefone, sem computador e sem imagem. O mundo era preto e branco e tinha música no ar.

Em 1948, em uma currutela perto da metrópole Patos de Minas, meu avô concorria ao cargo de vereador. Na disputa política, tentaram matá-lo e o tiro acertou um dos seus testículos quando ele pulava uma janela. Ele caiu e ficou refém dos inimigos políticos. Para libertá-lo, a família contratou um ator que passava pela cidade e se fantasiou de agente federal. Entrou no covil dos adversários e resgatou o ferido. Os oponentes espalharam que ele havia sido atingido e que, ao perder um testículo, ficaria impotente. O velho respondeu ao jeito mineiro: já tinha 7 filhos e tratou de ter outros 7. Mostrou que o melhor é não provocar um mineirinho.

Anos depois, a vida passava modorrenta, mas havia uma época de tristeza intrínseca, dessa que a gente parece só sentir nas Minas Gerais. O Natal tinha um quê de alegria estranha e tristeza injustificada. A gente tinha o hábito de fazer nossos brinquedos. Quando brincávamos de fazendeiros, as nossas vacas e bois eram limões, com palitos fazendo o lugar de pernas, chifres e olhos. E as brincadeiras mais emocionantes eram montar em bezerro bravo, andar a cavalo em pelo e nadar nos córregos. Engoli muita piabinha viva para aprender a nadar. Mas, no Natal, tinha que ter presente. A imposição do comércio e a pressão dos varejistas levavam a um costume de quase obrigar as famílias a comprar alguma coisa para a noite de Natal.

Tinha um lado místico e misterioso, porém, uma tristeza inexplicável. Mamãe fazia um presépio lindo e enorme, com um papel que imitava pedra, contendo um aquário com peixe imitando lagoas e os santos e animais eram muito bem-feitos. As pessoas pediam para entrar em casa para ver. E havia o berço onde Cristo iria ficar ao nascer, meia-noite do dia 24. Cada menino tinha o direito de colocar uma palha no bercinho, desde que fizesse uma boa ação. E a gente se desdobrava para poder fazer do berço um lugar aconchegante.

Reconheço que não acreditava muito em quase nada daquilo, todavia, na dúvida, fazia umas boas ações para me tranquilizar. Sabe-se lá… Patos era uma cidade, à época, em que não se via muita pobreza explícita. Mas, é claro que as diferenças sociais eram perceptíveis. Em um certo Natal, meu pai tinha acabado de quebrar e perder tudo. Tivemos que, inclusive, mudar de casa. E ele era o homem mais bem-humorado e divertido do mundo. Não só de Patos, era do mundo mesmo. Impossível tirar o humor dele. Pois não é que o espírito natalino foi tal que ele se endividou para comprar presentes para os 5 filhos! Eu, embora menino, fiquei perplexo.

Sem entender muito esse tal “espírito natalino”. E cada vez mais, ao longo da vida, tenho andado com a sensação de tristeza nesse período do ano. Neste Natal, foi difícil não lembrar que, segundo a ONU, cerca de 14.500 crianças foram mortas na Faixa de Gaza. Ou seja, Israel mata uma criança a cada hora na Palestina. Quando visitei a Basílica da Natividade, em Belém, 10 km ao sul de Jerusalém, naquela região montanhosa que chamam de Terra Santa, reconheço que me emocionei. A cidade, cercada por muros, fica na Cisjordânia, a pouco mais de 60 km da Faixa de Gaza. De acordo com as Sagradas Escrituras, o rei Herodes mandou matar todas as crianças com menos de 2 anos que se encontravam em Belém para poder matar o menino Jesus.

São os chamados Santos Inocentes, ainda hoje celebrados pela Igreja Católica. Conta a história que, na Gruta de São José, a sagrada família foi advertida do massacre das crianças e fugiu para o Egito. À época, não existia o poderio bélico de Israel. Se fosse hoje, quase certamente o menino Jesus estaria dentre tantos que estão sendo mortos covardemente. Talvez, por isso, o N
atal continue sendo uma data melancólica, quase triste. Remete-me a Manuel Bandeira, no poema “Noturno do morro do encanto”:

“Este fundo de hotel é um fim do mundo!

Aqui é o silêncio que tem voz. …

Ouço o tempo, segundo por segundo,

Urdir a lenta eternidade.

….

Falta a morte chegar… Ela me espia,

neste instante talvez, mal suspeitando

Que já morri quando o que eu fui morria.”

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A César

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Por estes dias, assistindo ao noticiário internacional cada vez mais conturbado, soube que os chamados “rebeldes” na Síria, que derrubaram a ditadura de Bashar al-Assad, estão sendo instados, por grupos ainda mais radicais mundo afora, a instalar no país um governo – e especialmente um direito – baseado na denominada “Sharia” islâmica.
Sobre a Sharia, reproduzo aqui uma definição (leiga) fornecida pela BBC News Brasil: “A Sharia é o sistema jurídico do Islã. É um conjunto de normas derivado de orientações do Corão, falas e condutas do profeta Maomé e jurisprudência das fatwas – pronunciamentos legais de estudiosos do Islã. Em uma tradução literal, Sharia significa ‘o caminho claro para a água’. A Sharia serve como diretriz para a vida que todos os muçulmanos deveriam seguir. Elas incluem orações diárias, jejum e doações para os pobres. O código tem disposições sobre todos os aspectos da vida cotidiana, incluindo direito de família, negócios e finanças. (…). A lei também pode conter punições severas. O roubo, por exemplo, pode ser punido com a amputação da mão do condenado. O adultério pode levar à pena de morte – por apedrejamento”.
É claro que, mundo afora, existem “versões e versões” da Sharia, com sua aplicação variando enormemente nas comunidades islâmicas. Assim, ela pode servir apenas como orientação para as condutas de muçulmanos em países laicos. Mas ela pode também ser “a base do sistema de Justiça em países islâmicos onde o Estado não é laico – onde o Corão praticamente se torna a Constituição”. Embora não seja especialista em direito islâmico, a partir do meu ponto de vista ocidental, cristão e liberal, acho essa derradeira versão “sinistra”.
Mas também no que toca à nossa civilização dita “cristã”, suspeito enormemente da mistura da religião com a administração do Estado e especialmente do Direito – coisa que, por sinal, alguns têm tentado emplacar, em proporções bem menores que uma Sharia islâmica, mas com relativo sucesso, aqui e alhures. Para além de outras implicações de ordem filosófica, sociológica e política, tenho a nossa Bíblia – talvez o maior livro jamais escrito, tanto sob o ponto de vista literário como de conteúdo e formativo – como um “péssimo” diploma legal.
E aqui aponto apenas uma razão simples. Desde a sua interpretação literal aos seus sentidos mais metafóricos, a Bíblia é mais do que pródiga em significados, seja para a mesma ou para as suas múltiplas passagens interconectadas. Não é à toa que o ramo filosófico da hermenêutica tem o seu desenvolvimento e lugar de destaque tanto na teologia como no direito. Bom, insegurança jurídica, em seus vários matizes, incluindo o interpretativo, é péssimo para o direito.  
Como resume John Riches (em “Bíblia: uma breve introdução”, L&PM, 2016), “talvez os leitores da Bíblia tenham de conviver com o fato de que ela apresenta um enorme potencial de gerar sentidos diversos. Talvez, aliás, devam aceitar esse fato não como um problema, e sim como uma parte da própria força da Bíblia. Isso traz sérias consequências. Significa, em primeiro lugar, que a função normativa da Bíblia para uma comunidade se enfraquece notavelmente. Se se reconhece que a Bíblia é, na própria essência, capaz de ter muitos sentidos, a possibilidade de utilizá-la como código de conduta ou mesmo como regra de fé será limitada. Mas não foi sempre assim? O fato de que os judeus recorram ao Talmude para prescrições sobre assuntos práticos e de fé e os cristãos recorram a alguma regra de fé ou aos cânones dos concílios ecumênicos para guiar seus assuntos sugere muito claramente que, na prática, sempre se aceitou que a Bíblia era rica demais, ou variada demais, ou vaga demais para cumprir a função de um Código Napoleônico”.
Talvez por isso o mais do que sábio Jesus tenha dito: “O meu reino não é deste mundo; (…) o meu reino não é daqui” (João 18:36). E nos tenha recomendado: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:21).
 
 

Marcelo Alves Dias de Souza

Procurador Regional da República

Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL