A arte fura a bolha do silêncio

A arte fura a bolha do silêncio
Arte: Paulo Márcio

Brasil é um país sem memória. Ainda hoje, pessoas públicas das mais diversas matizes ousam desprezar o óbvio e afirmam que não existiu o golpe militar e que sustentar que houve Ditadura no país é um excesso. Certamente esse foi um dos motivos que fez com que bolsonaristas, desinformados, obtusos e, em regra, de extrema direita, fossem às ruas pedir a intervenção e a volta dos militares. Um povo que não conhece a sua história tende a repetir os seus erros. Mesmo quando esses significam evocar a morte, a tortura, o estupro de mulheres grávidas e o desaparecimento de pessoas.

Foi preciso uma mulher de esquerda, que foi barbaramente torturada, assumir a Presidência da República para ser instalada a Comissão da Verdade, que jogou luzes no período sangrento e nebuloso da Ditadura militar. O Brasil não fez um museu, ou um memorial, para mostrar ao seu povo os horrores dos porões da barbárie. Agora, em 15 de fevereiro, haverá um debate sobre a construção de um museu-memorial no lugar do antigo DOI-CODI do II Exército, no bairro Paraíso em São Paulo. O local era chamado de “sucursal do inferno” pelo seu comandante, o torturador Brilhante Ustra, ídolo do fascista Bolsonaro. Estima-se que mais de 7000 pessoas foram barbarizadas naquele espaço. Quase todas torturadas e com o registro de 78 mortos por agentes do Estado. O Brasil merece que essa história seja contada, até para que não se repita. Com a lembrança do Mário Quintana: “O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente…”.

A esquerda brasileira é, em boa parte, ranzinza e mal-humorada. Ouvi críticas ao emocionante filme  “Ainda Estou Aqui” de pessoas que o consideraram romanceado demais e sem o foco na denúncia mais explícita da Ditadura e da tortura. Uma crítica exatamente ao grande mérito do filme, conduzido com maestria pelo genial diretor  Walter Salles, que soube tirar do excelente livro do Marcelo Paivauma comovente história conduzida com magia por  Fernanda Torres e Selton Mello. A participação da  Fernanda Montenegro é um momento de grande impacto e reflexão.

O filme, dentre outros méritos, teve a inteligência de conduzir a história por caminhos que, mesmo os que se negam a encarar de frente o período da Ditadura, querem ver e, certamente, serão tocados de alguma forma. Por isso, é emocionante constatar que não só o filme está sendo visto por milhões de espectadores ao redor do mundo, como a lembrança dos tempos da Ditadura é reforçada por cada matéria sobre o filme, em cada debate, em toda menção à história e ao enredo,a qual tem que ser explicada. Na entrega do prêmio GOYA, no discurso de agradecimento, a citação expressa à Ditadura militar no Brasil, com o mundo inteiro acompanhando, valeu milhões de vezes mais do que se o filme fosse panfletário e mais contundente, como reclama parte da nossa esquerda.

Não dou muito valor a essa história de  OSCAR, mas vai ser genial se a estatueta for para o filme. Os políticos e a elite brasileira, que esconderam a tortura, as mortes, os estupros e os desaparecimentos, vão ver o valor da arte do cinema, de magia que comove. Foi preciso reunir um grupo talentoso de artistas, um grande escritor e um diretor sensível para que, através da arte, a bolha do silêncio fosse furada.Mais uma vez, a arte salva.

Remeto-me, novamente, ao grande Mário Quintana, em Esconderijos do Tempo:

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“é quando as portas são fechadas e abertas ao mesmo tempo, é quando estamos metade na luz e a outra metade na escuridão, é quando o mundo real chama e preferimos outro…”

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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A Barragem de Oiticica

Padre João Medeiros Filho

Anuncia-se para breve a inauguração da Barragem de Oiticica, localizada no município de Jucurutu (RN). Há os que reclamam a autoria do projeto, ignorando a real origem da ideia. Aliás, poucos conhecem o relato dos acontecimentos. Há três anos, publiquei um artigo neste jornal, abordando o assunto. Os verdadeiros protagonistas de uma história nem sempre são lembrados. Por vezes, outros recebem os louros da vitória. Em 1951, o Nordeste brasileiro viveu uma de suas inclementes secas. À época, era bispo de Caicó Dom José de Medeiros Delgado, tendo como vigário geral Monsenhor Walfredo Dantas Gurgel. O deputado Stoessel de Brito – proprietário da Fazenda Baixio e amicíssimo do bispo – representava Jucurutu na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte.

Em abril de 1951, deflagrada a seca e diante do sofrimento da população, Dom Delgado convocou uma reunião naquela fazenda com as lideranças do Seridó para encontrar meios de amenizar as consequências do flagelo. Participou dessa reunião meu pai, então vice-prefeito de Jucurutu, levando-me consigo, vez que os anfitriões eram os meus padrinhos de batismo. Deveria acompanhá-lo para lhes pedir a benção e ao senhor bispo. Tempos depois, ouvi deles o relato completo da reunião. Em setembro desse ano, o prelado foi promovido por Pio XII a arcebispo de São Luís (MA) e seu vigário geral assumiu o segundo mandato de deputado federal.

Em geral, nos períodos de seca, o poder público organizava frentes de trabalho para os agricultores, impedidos de cultivar a terra. Tais ações eram coordenadas pelo Departamento Nacional de Obras contra as Secas – DNOCS. Na reunião, acatando a sugestão do bispo diocesano, os participantes decidiram à unanimidade propor ao governo federal um empreendimento duradouro e não mero paliativo. Optou-se por indicar a construção de uma barragem, perto de Barra de Santana, sobre o Rio Piranhas-Açu, para ser um reservatório hídrico, destinado também à pesca e irrigação. O prelado caicoense conhecia bem o potencial do rio, pois quando jovem residiu perto de sua nascente.

Dom Delgado viajou ao Rio de Janeiro para tratar do assunto junto ao governo federal. Encontrou-se primeiramente com o Ministro da Viação e Obras Públicas José Américo de Almeida. Este era sobrinho de Monsenhor Walfredo Leal, ex-governador da Paraíba (pelo lado materno) e Monsenhor Odilon Benvindo de Almeida (pelo lado paterno). Tios e sobrinho tinham profunda estima pelo bispo de Caicó, anteriormente pároco de Campina Grande (PB). Na capital da República, Dom Delgado foi recebido em audiência pelo Vice-Presidente Café Filho, estando acompanhado de Monsenhor Walfredo Gurgel e também de seu compadre Tristão de Athayde. Das tratativas nos encontros resultou o ato federal, autorizando o início da construção da Barragem de Oiticica. O engenheiro Clóvis Gonçalves dos Santos fora escolhido para dirigir as obras.

O Ministro José Américo alocou recursos para a barragem e enviou gêneros alimentícios destinados aos flagelados do estado do RN, cuja distribuição ficaria a cargo das dioceses para evitar a exploração das vítimas pelos “barracões” (armazéns), integrantes da “indústria das secas”. O referido ministro chegou a ser indicado pelo Presidente Vargas embaixador do Brasil junto ao Vaticano. Entretanto, declinou da honrosa escolha.

O bispado de Caicó pensou na assistência religiosa aos operários. O pároco de Jucurutu, Padre Deoclides de Brito Diniz, dedicava especial atenção aos trabalhadores. No início das atividades, o inesquecível sacerdote abençoou o canteiro de obras e leu uma mensagem profética de Dom Delgado: “O suor de tantos, aqui derramado, um dia converter-se-á em água abundante para matar a sede e fome de nosso povo.” Anos depois, não concluída, a barragem recebeu o nome de “Governador Iberê Ferreira”. Oiticica tem a Igreja como sua inspiradora. Deste modo e num ato de justiça e gratidão, sem detrimento à homenagem prestada a nosso ex-governador, dever-se-ia denominar todo o conjunto da obra de “Complexo Hídrico Dom Delgado”. Um dos primeiros operários da construção da barragem foi o jovem Raimundo Sérvulo da Silva, hoje pároco emérito de Acari, carregando no corpo a marca de um acidente de trabalho, ali ocorrido. Não se deve esquecer o alerta de Cristo: “Dai a Cesar, o que é de Cesar; e a Deus, o que é de Deus” (Mt 22, 21).

Os roubos de Shakespeare

Marcelo Alves Dias de Souza

Estes dias, xeretando a Internet, dei de cara com um verbete da enciclopédia “Britannica”, intitulado “Fontes de Shakespeare”, que interessantemente afirma: “Com algumas exceções, Shakespeare não inventou os enredos de suas peças. Às vezes, ele usava histórias antigas (Hamlet, Péricles). Às vezes, ele trabalhava a partir de histórias de escritores italianos relativamente recentes, como Giovanni Boccaccio — usando histórias bem conhecidas (Romeu e Julieta, Muito Barulho por Nada) e outras pouco conhecidas (Otelo). Ele usou as ficções em prosa populares de seus contemporâneos em Como Gostais e Conto de Inverno. Ao escrever suas peças históricas, ele se baseou amplamente em tradução de Sir Thomas North de Plutarco, Lives of the Noble Grecians and Romans, para as peças romanas, e nas crônicas de Edward Hall e Holinshed para as peças baseadas na história inglesa. Algumas peças lidam com história bastante remota e lendária (Rei Lear, Cimbelino, Macbeth). Dramaturgos anteriores ocasionalmente usaram o mesmo material (houve, por exemplo, as peças anteriores chamadas The Famous Victories of Henry the Fifth e King Leir). Mas, como muitas peças da época de Shakespeare foram perdidas, é impossível ter certeza da relação entre uma peça anterior perdida e a sobrevivente de Shakespeare: no caso de Hamlet, foi plausivelmente argumentado que uma ‘peça antiga’, conhecida por ter existido, era meramente uma versão inicial da própria peça de Shakespeare”. Aliás, o fato de William Shakespeare (1564-1616) ter, digamos, as suas “fontes” já era algo sabido e falado à sua época, como atestam documentos contemporâneos referidos no curioso verbete.

Bom, teria então sido o grande Shakespeare um “plagiador”?

O que se sabe, com segurança, acerca da vida de Shakespeare, é muito pouco. Até a sua própria existência, embora isso seja um evidente exagero, é às vezes contestada, com várias teorias conspiratórias sendo sugeridas. Quem sabe algum dia não falaremos sobre elas? Certamente, em Shakespeare, há mais mistérios do que ousa imaginar nossa vã filosofia.

Mas, de logo, afirmo: o Bardo não era um plagiador.

Ao contrário. Ben Jonson (1572-1637), contemporâneo de Shakespeare e durante certo tempo até mais aclamado que ele, considerava Shakespeare um escritor premiado pela natureza com o dom da genialidade. Dizer, sim, que Shakespeare foi um gênio e que ele representa o que de mais sublime há na língua inglesa ou mesmo na natureza humana é afirmar uma verdade hoje quase “científica”.

E, se Shakespeare é considerado um gênio natural, autodidata, isso se deve, em grande medida, à sua capacidade de rapidamente extrair maravilhas das suas fontes, reformulando-as, em tragédias e comédias, quase ao ponto da perfeição. É dito que “Shakespeare provavelmente estava muito ocupado para estudos prolongados. Ele tinha que ler os livros que podia, quando precisava”. Mas há também evidências de que ele, quando necessário, lia acuradamente os clássicos gregos, para fins de elaboração de cada uma de suas peças, assim como as reescrevia e revisava frequentemente.

Na verdade, o escritor de gênio deve ter suas boas fontes. Deve saber das muitas ideias e compreendê-las. Deve interpretar esse seu mundo junto a outros universos e épocas. Deve sobretudo descobrir e dizer o ainda não dito a partir daquilo que já foi dito. O genial Mark Twain (1835-1910) certa vez disse: “Não existe uma nova ideia. É impossível. Nós simplesmente pegamos um monte de ideias antigas e, então, as colocamos em um tipo de caleidoscópio mental”. E assegurava Picasso (1881-1973): “Bons artistas copiam, grandes artistas roubam”.

Pois então Shakespeare era o gênio que tinha o dom de roubar/transformar o que já era muito em muito mais do que muito.

Marcelo Alves Dias de Souza

Procurador Regional da República

outor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Fuja das posses

Fuja das posses
ARTE: KIKO

A gente deve conhecer os sinais e os códigos do lugar em que você mora e no qual trabalha. Em Brasília, principalmente se você for advogado, fuja das posses. Todo dia tem alguém tomando posse com aquelas filas intermináveis. Só vá à posse se você for o empossando ou se a sua ausência for realmente sentida pelo empossado. Não tem nada mais chato.

Quando comecei a advogar, muito jovem, usava uns cabelos enormes, óculos vermelhos e ternos desconjuntados. Iniciei logo no Supremo Tribunal.  À época, era ministro o pernambucano Djaci Falcão. Homem culto, sério e um pouco circunspecto. Certo dia, agravei de uma decisão e ele, correto que era, reconsiderou-a. O assessor, naquele período só existia um assessor, Marcos Chaves, ao bater à máquina a decisão, comentou com ele: “Ministro, o senhor está elogiando muito o advogado. O senhor não é de elogiar”. Ao que o ministrou retrucou: “Achei brilhantes os argumentos, tanto que estou voltando atrás. Quero elogiar”. E o assessor arrematou: “Este advogado é aquele dos ternos estranhos, dos óculos vermelhos e dos cabelos longos”. A resposta do ministro foi cortante, com o inconfundível sotaque pernambucano: “”Ritire” os elogios!”. Essa é a Brasília que temos que conhecer.

Quando era dono do Piantella, o melhor restaurante que já fui na vida, eu não ia nunca às posses, mas não perdia as comemorações posteriores no restaurante. Certa vez, estávamos comemorando a posse do Mauro Santayana como adido cultural em Roma, no governo Sarney. Depois de muitos vinhos, entrou um invejoso e falou alto para o empossado: “Esse é o emprego que eu pedi a Deus. Morar em Roma e trabalhar com cultura”. A resposta veio seca: “Pediu para a pessoa errada. Eu pedi para o Sarney”. Em Brasília, sempre foi mais importante estar à mesa do Piantella do que em qualquer posse. E muito mais divertido.

No réveillon de 2001, estávamos em Búzios passando o final de ano na casa do nosso amigo Mauro Dutra. O então candidato Lula comentou que, a partir daquela semana, iria entrar duro na campanha para Presidente e que, daquela vez, era para ganhar. E falou comigo: “Se eu ganhar, quero comemorar a diplomação lá no Piantella”. Eu me esqueci daquela conversa regada a vinhos e whiskies. Lula ganhou e, no dia da cerimônia da diplomação, recebi um telefonema do Presidente eleito reforçando o convite para ir ao Tribunal Superior Eleitoral. Falei que não tinha o costume de ir a essas cerimônias, mas, daquela vez, era o próprio Presidente convidando. Fui. Ao meio-dia, ao abraçá-lo, escuto: “Tá lembrando que vamos comemorar no Piantella?!” . Claro que não estava, mas um simples telefonema organizou o melhor almoço que já foi feito em Brasília. Lá estávamos, na posse e na comemoração no Piantella.

Agora, em 2022, o Presidente e o ministro Zé Múcio me ligaram. Lula disse que, como a comemoração da diplomação no Piantella tinha dado sorte, ele queria celebrar lá em casa. Foi uma festa linda e, na mesma noite, 12 de dezembro de 2022, os golpistas estavam nas ruas em Brasília começando a tentativa de golpe. E reconheço que a posse foi emocionante. Acompanhar, de dentro do Palácio, o Presidente Lula subir a rampa, foi como ver a Democracia vencer a barbárie e o fascismo.

Já contei, até da tribuna do Supremo Tribunal, que, em dezembro de 2002, estávamos conversando eu, o Lula, o Zé Dirceu e o Márcio Thomaz Bastos sobre quem iria ocupar alguns cargos no governo que tomaria posse dali alguns dias, em 1º de janeiro de 2003. O Márcio me perguntou: “E você, em qual cargo teria interesse?”. Eu respondi de bate pronto: “Ex-ministro do Supremo. Se criarem o cargo de ex-ministro”. Agora, tanto tempo depois, eu ainda vejo uma vantagem extra: ex-ministro não tem nem posse. Naquele ano, recebi uma quantidade razoável de convites para posses. Recordo-me de que repassei todos para o Sigmaringa e me ataquei para Búzios. Acabei passando, de calção e cerveja na mão, em frente à televisão para desejar boa sorte ao  Brasil.

Quando recebo um convite para alguma posse, sempre me lembro de Groucho Marx: “Eu nunca faria parte de um clube que me aceitasse como sócio”.

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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O crítico

Marcelo Alves Dias de Souza

Karl Popper (1902-1994) é provavelmente o maior vulto da filosofia da ciência e um dos grandes nomes da filosofia dita liberal. Nascido em Viena, à época uma das capitais do Império Austro-Húngaro, sua família era culta e politizada. Sofreu deveras com a debacle do seu país na Primeira Grande Guerra. Na Universidade de Viena, envolveu-se com o marxismo e o Partido Comunista austríaco. Decepcionado com a morte de jovens companheiros, refutou e rompeu com essa ideologia. Fez-se professor. Doutorou-se em filosofia em 1928. Com o nazismo, em 1937, deixou a Áustria rumo à Nova Zelândia. Passada a Segunda Grande Guerra, em 1946, foi viver no Reino Unido, para ensinar na London School of Economics. Como filósofo da ciência, sua obra mais importante talvez seja “A lógica da pesquisa científica” (1934), em que expõe o seu “princípio da falseabilidade”. E junto a Ludwig von Mises, Friedrich Hayek e Milton Friedman, entre outros, Popper foi um dos grandes defensores do liberalismo clássico.

É de Popper uma das mais conhecidas e belas assertivas sobre a democracia, a liberdade e a tolerância. Basicamente, em seu livro “A sociedade aberta e seus inimigos” (1945), no que ficou conhecido como o paradoxo da tolerância, ele defendeu que, em ultima ratio, a intolerância não deve ser tolerada, uma vez que, se a tolerância permitir que a intolerância triunfe numa sociedade que não consegue se defender contra o ataque dos intolerantes, a própria tolerância seria destruída. Uma filosofia intolerante – que pregue, por exemplo, a incitação ao assassinato de governantes, o racismo, a eugenia ou a ruptura com o Estado Democrático de Direito – deve ser considerada ilegal e combatida até criminalmente. Reflitamos…

Mas é de outra sacada política e especialmente de outro livro de Popper, a sua “Autobiografia intelectual” (em publicação das Editoras Cultrix e da Universidade de São Paulo, 1977, que ando lendo), que gostaria de falar. Uma autobiografia que focaliza sobretudo as ideias do autor. “Um estudo pessoal da evolução das ideias popperianas e do ambiente intelectual onde se desenvolveram”, um ambiente onde “desfilam vultos como Carnap, Einstein, Godel, Polanyi, Russel, Schrödinger, Tarski, Wittgenstein, Woodger e outros de igual eminência”, com os quais Popper muito debateu, aprendeu e inspirou.

Na sua “Autobiografia”, Popper anota que foi criado em ambiente indiscutivelmente livresco: “Meu pai (…) tinha uma grande biblioteca e havia em casa livros por toda parte. (…) Assim, os livros fizeram parte de minha vida muito antes que eu pudesse lê-los”. E, para o grande filósofo da ciência: “Aprender a ler e, em menor grau, a escrever são, naturalmente, os acontecimentos mais significativos no desenvolvimento intelectual de uma pessoa”.

Como que antecipando a lição da menina filósofa Mafalda, para quem “viver sem ler é perigoso; te obriga a crer no que te dizem” – embora ele atribua isso não só à leitura, já que outros fatores, em especial a Primeira Grande Guerra, os anos de conflito e suas consequências, também entrariam na conta –, o fato é que Popper, desde jovem, tornou-se “um crítico das opiniões correntes, especialmente das políticas”. Agradeçamos…

Na Europa de então, havia a utopia do comunismo/marxismo, “um credo que promete a concretização de um mundo melhor. Diz-se basear-se em conhecimento: conhecimento das leis do desenvolvimento histórico”. Mas a própria história, ao submeter o marxismo à prova, anota Popper, refutou-o como pseudociência. Doutra banda, “por aquela época, poucas pessoas sabiam o que a guerra significava. Corria por todo o país um ensurdecedor brado de patriotismo, pelo qual até mesmo alguns membros do nosso grupo, anteriormente alheio às provocações de guerra, foram envolvidos”. E não muitos anos depois veio o degenerado cabo Hitler.

O problema estava – como de resto quase sempre está – nos extremos. O anticomunismo da época de Popper – assim como o atual anticomunismo tupiniquim, de baixíssimo nível e com complexo de vira-lata – se mostrava bem parecido, nas suas práticas e simbologias, com os movimentos autoritários que Popper denunciou como fascistas. E estes, sabemos, eram ontem – e são hoje – piores do que tudo!

Parodiando o criticado Marx, é de se indagar: a história agora se repete como tragédia ou como farsa? Leiamos e pensemos. Sejamos críticos…

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Por que a Bélgica?

Padre João Medeiros Filho

Indagam-me com frequência sobre o motivo pelo qual fui estudar na Bélgica. Em 1960, o reitor do Seminário de João Pessoa, Cônego Luís Gonzaga Fernandes, escreveu ao bispo diocesano de Caicó, indicando-me para cursar Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. O prelado caicoense, verificando as finanças da diocese (que já mantinha um seminarista naquela instituição de ensino superior), respondeu ao reitor: “O bispado não tem condições financeiras de arcar com mais um aluno em Roma. Para ser vigário das paróquias desta diocese, não precisa ser graduado na Gregoriana. Lá não estive e hoje sou bispo. Porém, se a família quiser mantê-lo às suas expensas, nada tenho a opor.” Meu pai, ao ser consultado posteriormente, agradeceu a honra da indicação. Disse que poderia colaborar, mas seria muito complicado para um comerciante e produtor rural de Jucurutu – onde sequer havia agência bancária, carteira de câmbio, telefone etc. – manter sozinho um filho estudando na Europa. A proposta de papai não foi acolhida.

Na impossibilidade de ir para Roma, fui enviado ao Seminário de Olinda. Acatei a decisão, sem traumas e mágoas. Almejava tornar-me sacerdote, “cura de aldeia”. Nasci na paróquia mais simples do bispado, na qual nem sacerdote residente havia. Era reitor do Seminário de Olinda Monsenhor Marcelo Pinto Carvalheira. Informado por Cônego Luís sobre a minha situação, quis conversar comigo. Avisou-me que o governo belga estava oferecendo bolsas de estudos a estudantes brasileiros. Havia vaga para o curso de Teologia, na Universidade de Louvain. Perguntou se aceitaria o desafio e me submeteria ao processo seletivo. Assenti que me candidataria, pois nada tinha a perder e sim a ganhar. Em Caicó e Mossoró, entre 1952 e 1955, estudei com os padres lazaristas holandeses. Estes descreviam como eram os Países Baixos, a Bélgica e as famílias reais. Discorriam com entusiasmo sobre a Casa Real Belga, cujos monarcas eram católicos. Segui as palavras do salmista: “Entrega ao Senhor o teu caminho… e Ele agirá” (Sl 37/36, 5).

Dia e hora aprazados, compareci ao Consulado Belga do Recife para os testes. Quanto à aptidão física: saúde excelente. Fui criado com leite do curral, tapioca com manteiga da terra, carne de sol, rapadura, cuscuz, queijos e bolachas de Jucurutu (papai foi pioneiro na fabricação delas). Solicitaram uma redação sobre as relações entre o Estado brasileiro e o Reino da Bélgica. Veio-me à mente o que ouvia e aprendia dos mestres neerlandeses. Mostrei os vínculos entre a família real belga e a casa imperial brasileira. Narrei que as dinastias de ambas: Saxe-Coburgo-Gota-Orleans (Bélgica) e Orleans e Bragança (Portugal e Brasil) se entrelaçavam. Balduino, então Rei da Bélgica, era bisneto da Rainha Maria José de Bragança, filha de Dom Miguel, sobrinha de Pedro I, Imperador do Brasil. Dona Maria José era mãe de Isabel da Baviera, esposa de Alberto I e genitora de Leopoldo III, pai de Balduino. Este, portanto, era sobrinho trineto de Pedro I. A Princesa Leopoldina de Bragança, filha de Pedro II (e neta de Pedro I com sua primeira esposa Maria Leopoldina, da Áustria) casou-se com o Príncipe Luís Augusto de Saxe-Corburgo-Gota (da família dos soberanos belgas), oficial da Marinha Alemã e almirante da Marinha Brasileira.

Continuei citando os elos entre as duas nações. Assinalei que Alberto I visitou o Brasil durante os preparativos das comemorações do centenário de nossa Independência. Nessa ocasião, plantou uma palmeira real no campus universitário da Praia Vermelha. Recebeu do Presidente Epitácio Pessoa o título de “Doutor Honoris Causa” da Universidade do Brasil (recém-criada), hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Concluí, lembrando que Leopoldo III abdicou do trono, em favor do filho Balduino, vindo residir por um tempo no Brasil com a segunda esposa, Liliana Baels. Leopoldo era apaixonado por botânica e desejava pesquisar sobre o bioma amazônico. Aqui foram bem acolhidos. Com o resultado da seleção, recebi uma bolsa de estudos, inclusive passagens de ida e volta. Lá, vivi oito anos acadêmicos, em dois momentos. Hoje, direi como o poeta Virgílio: “Haec olim meminisse iubavit” (Um dia será agradável recordar estas coisas). Sempre procurarei seguir o salmista: “Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom” (Sl 118/117, 1).

O intelectual

Marcelo Alves Dias de Souza

Ainda durante o verão estou lendo “As ideias de Bertrand Russell” (Editoras Cultrix e da Universidade de São Paulo, 1974), livro de autoria do também filósofo A. J. Ayer (1910-1989).

Conheci Bertrand Russell (1872-1970), o 3º Conde Russell, aristocrata, matemático, lógico, filósofo, historiador, professor, popularizador da ciência/filosofia, escritor Prêmio Nobel de Literatura, liberal múltiplas vezes casado, ativista, pacifista e muitas coisas mais, quando, há muitos anos, encantado, li sua “História da filosofia ocidental” (1945) e sua “História do pensamento ocidental” (1959). Revisitei esses livros algumas vezes na vida. Eles consagram o dito: “Um livro que não merece ser relido não merece ser lido”.

Tenho Russell como um perfeito exemplo do que Horácio Gonzalez (1944-2021), em “O que são intelectuais” (Editora Brasiliense, 1981), chama de “intelectual cosmopolita”, uma vez que ele concebia “a vida cultural como uma forma de comunicação acima das particularidades nacionais, regionais e locais”. Acreditando que o objetivo da prática intelectual é o aperfeiçoamento tanto do patrimônio cultural como social da humanidade, ele era também um “intelectual iluminista”, já que buscava trasladar, para todos os cantos do mundo, uma “cultura” que achava a melhor. Era deveras engajado. E, por fim, embora sofrendo a crítica dos puristas, para nosso deleite ele soube fazer ciência/filosofia e escrever deliciosamente para os leigos.

Muitas vezes perseguido, impedido de lecionar, proibido de viajar e preso, tudo em razão das suas ideias, Russell passou por alguns perrengues na vida. Em boa medida, a “História da filosofia ocidental” foi o que os ingleses chamam de “turning point” na sua vida, já que, financeiramente um sucesso, livrou o autor, daí em diante, de problemas com dinheiro. E foi sobretudo na virada dos anos 1940 para os 1950 que as atividades de Russel ganharam vulto. Foi merecedor de “favores oficiais”, como a Ordem do Mérito e a eleição para várias sociedades britânicas. Em 1950, veio o Prêmio Nobel de Literatura. As publicações não pararam. Junto com Albert Einstein (1879-1955) e outros grandes cientistas, militou em favor da cooperação pacífica e do desarmamento nuclear. Como anota Ayer, Russell “correspondia-se com chefes de Estado e interveio tanto na crise cubana de 1962 como no incidente sino-indiano, provocado por questão de fronteiras. Defendeu a causa dos judeus na Rússia, dos árabes em Israel e dos prisioneiros políticos na Alemanha Oriental e na Grécia”. Criou até um “Tribunal Internacional de Crimes de Guerra”, do que qual Jean Paul Sartre (1905-1980) foi o integrante mais badalado. E por aí vai.

Como lembra o “biógrafo intelectual” Ayer, Russel “é figura singular entre os filósofos de nosso século, por haver combinado o estudo de problemas especializados não apenas com o interesse pelas ciências naturais e sociais, mas também com a dedicação a questões de educação, tanto primária como superior, e, ainda, com ativa participação em política. A celebridade internacional, de que gozou no fim da vida, teve, sem dúvida, por principal motivo, sua atividade política e a ação de pregador de ideias morais e sociais; contudo, o lugar que venha ocupar na história, ele o deverá a sua obra filosófica e, especialmente, à que produziu na juventude e nos primeiros anos de maturidade. (…). Em verdade, com a possível exceção de seu discípulo Ludwig Wittgenstein, não há filósofo de nosso tempo que tanto tenha inovado, não somente no que respeita ao tratamento de particulares problemas filosóficos, mas ainda no que concerne à colocação global da matéria”.

De toda sorte, impossibilitado de “entender” os seus “Principia Mathematica” – que,  publicados de 1910 a 1913 em coautoria com Alfred North Whitehead (1861-1947), muito provavelmente são sua obra-prima –, homenageio aqui as “Histórias” da filosofia e do pensamento de Bertrand Russell. Confesso que elas são em grande medida responsáveis pela minha paixão pela história das ciências e das artes e, em especial, do direito.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL