O beijo do pai e o olhar doce da mãe

Kakay e pai na praia
Beijos, afeto e humor moldam a vida de um mineiro entre lembranças, perdas e o doce silêncio da velhice; na imagem, Kakay e seu pai, Alaor do Leão, posam para foto em um dia na praia de Copacabana, no Rio, em 1977.
“O beijo não vem da boca.” 
–Ignácio de Loyola 
Brandão Quando era adolescente, lá no interior das minhas Minas Gerais, uma das alegrias era receber os parentes e amigos nas férias. Como não tínhamos dinheiro para viajar, a emoção era colocar os primos paulistas para montar em bezerros, em pelo, e acompanhar os tombos. Outra emoção, mais sofisticada, era esperar as meninas que vinham passar uns dias na cidade. Certa vez, chegou a moça mais bonita que já havia pisado na terra. O ar ficou rarefeito. Todos se alvoroçaram.
Eu queria impressioná-la, eu e a torcida do Cruzeiro –a maior de Minas. Patos de Minas só tinha um prédio: o Alvorada, com 6 andares. Eu era amigo do porteiro –muito chique– e combinei com ele de levar a menina para “andar de elevador”. Porta pantográfica, um luxo. Quando o elevador começou a subir, notei que ela não estava se emocionando. Perguntei: “Você mora em casa ou apartamento em São Paulo?”. Ela respondeu: “Apartamento”. “Qual o andar?”, indaguei aflito. E ela disse: “29º!”. Quando chegamos no 6º andar, olhei um vale que se descortinava e mostrei um casebre de adobe ao fundo e falei que iria contar um segredo. Comentei que havia nascido no casebre e morava lá. Ela ficou encantada. Namoramos durante todo o período das férias. 
A minha casa em Patos de Minas era um espaço de amor, alegria e felicidade. E, principalmente, de humor. Vivia repleta de parentes, primos e amigos. Certa feita, um companheiro de Belo Horizonte, ao passar uma tarde conosco, ficou muito impressionado como o meu pai interagia com a meninada. Brincávamos de luta e os meninos adoravam. E eram milhares de carinhos e beijinhos sem ter fim. Despudorados. Amorosos. E eu fiquei alarmado quando ele me disse, ao me ver abraçar meu velho e lascar um monte de beijinhos: “Meu pai e eu nunca nos beijamos”. 
Essa verdade triste me acompanha até hoje. Tenho para mim que tudo isso ajuda a forjar nosso caráter. Ao longo da vida, passamos, e quem não passou, por poucas e boas. Dificuldades que davam a impressão de que o mundo tinha se virado contra nós. De todas as espécies. De quebrar financeiramente e ficar sem ter onde morar, inclusive, morando, mais tarde para estudar, num barraco de 12 m2 com teto de zinco e banheiro do lado de fora, até aprender a pegar carona de carro nas estradas, nas quadras para ir à aula na UnB e até em aviões da FAB nos aeroportos. 
Ou cantando em bares à noite para ter cerveja, caipiroska e um prato na madrugada. A gente aprende a se virar e um único companheiro nos acompanhou sempre: o humor. E, quando tivemos que mudar de uma casa grande para uma que era do tamanho da sala da anterior, eu ouvi do meu pai: “Aqui a gente fica mais juntinho, mais perto”. E tomem beijos, abraços, carinhos e 1.000 histórias contadas afetuosamente. Anos depois, já em Brasília, meu velho pai estava com 85 anos sem nunca ter sido internado e sem ir ao médico.

Foi convencido a procurar um hospital por causa de uma tosse. Um erro médico o levou. Partiu levando parte das nossas vidas e da nossa alegria. O mundo ficou meio sem cor sem aquele monte de beijos carinhosos. Sem a perspicácia de uma brincadeira de quem era vaqueiro, boiadeiro e olhava a vida com sinceridade. A sofisticação rara da sinceridade amorosa e sem culpa. E como a vida segue, tem que seguir, todos os nossos sentimentos se concentraram na minha mãe. Uma mulher doce, inteligente e mais fechada. Até vir, aos 90 anos, certo alheamento em relação às preocupações naturais do mundo.
Ficou leve. Sempre com um sorriso e sem as travas que lhe acompanharam a vida toda. Agora, aos 96, graças a Deus sem nunca ter sido internada, operada ou ficado doente, parece, às vezes, morar em um mundo só dela. Olha a todos com um olhar doce e meigo, mas, ocasionalmente, parece vagando. Nunca reclama e não consegue mais andar direito. Como não tem dor, graças a Deus, mantém um bom humor e um jeito amoroso. Reconhece todos, porém, no mais das vezes, não consegue interagir. Mas ainda surpreende e ganha uma partida de dominó. Quando está mais alheia, reage bem a um beijo carinhoso.

E devolve com a leveza profunda que só o beijo de mãe pode ter.
Como passamos a vida toda felizes juntos, com muito carinho desmanchado em toques e afetos, o fato de ela estar abstraída, em um mundo à parte, não nos entristece completamente. Emociona, sim. Mas o beijo carinhoso e maternal garante uma felicidade indecifrável. E eu sinto nos doces olhos dela, e em um silêncio amoroso, que ela também é feliz. Só Pessoa pode explicar esses momentos: “Há tanta suavidade Em nada se dizer E tudo se entender.”
Poder 360

Mediando

Marcelo Alves Dias de Souza

Há alguns anos, quando dava aulas de direito processual civil, sobretudo de teoria geral do processo, adorava tratar dos chamados “meios de solução dos conflitos de interesses”. A autotutela, a autocomposição, a arbitragem e a jurisdição, era assim que classificávamos a coisa à época. Na autotutela, gostava sempre de alertar, vigorava infelizmente a “lei” do mais forte. Na desejada autocomposição – seja por renúncia à pretensão, renúncia à resistência ou mesmo pela velha e boa transação –, discutíamos os métodos, direcionados para tanto, da conciliação e da mediação. Eu era também um entusiasta da arbitragem, na qual o conflito é solucionado por um terceiro imparcial que não o Estado-juiz. Falávamos muito – e sobretudo – da (morosa) jurisdição e seus corolários, já estávamos estudando teoria geral do processo. Sem falar que, vez por outra, misturávamos tudo, afinal nada melhor que uma boa transação, seja antes, durante ou mesmo depois de um processo. Bons tempos de aprendizado e juventude.

Fiz essa introdução – que bem demonstra o meu entusiamo pelos “meios/métodos alternativos (à jurisdição) de solução dos conflitos de interesses” – para falar de uma dissertação de mestrado, “Mediação institucional de conflitos: uma proposta para criação de colegiado temático para o legislativo estadual do Rio Grande do Norte”, de autoria de Ana Paula Vendramini, de cuja banca examinadora tive oportunidade da participar esta semana na querida Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

O trabalho é muito bom. Na verdade, é até desafiador, como se verá, aqui, ao final.

A autora destaca os meios/métodos alternativos de solução dos conflitos de interesses como essenciais para que as partes envolvidas e, sobretudo, um sistema de justiça alcancem seus objetivos. E vai além: ferramentas como a mediação, a conciliação e a arbitragem não são apenas “alternativas”, mas, em muitos casos, as “soluções” mais adaptadas à natureza de dada controvérsia. No que toca ao nosso sistema de justiça, ela faz uma crítica implícita à denominada “cultura da sentença” e defende a “mediação e os métodos consensuais como caminhos para a gestão de disputas” que vêm ganhando cada vez mais adesão entre processualistas, acadêmicos e gestores. Tem bastante razão a autora. Vejo isso no Ministério Público Federal – e no sistema judicial federal como um todo – onde trabalho.

Também não resta dúvida de que a mediação, de natureza multidisciplinar e pautada pela ética, “se apresenta como um recurso indispensável na gestão de conflitos na administração pública, proporcionando soluções rápidas, eficientes e pautadas no diálogo, além de promover a transparência e a sustentabilidade nas relações institucionais”.

Até aí tudo bem. O problema – ou o desafio – é que a autora pretende regulamentar e implementar institucionalmente um “Colegiado Temático de Mediação” na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte, em um ambiente legislativo típico, para atender às demandas/dinâmicas internas (supondo-se que até entre os seus parlamentares) e externas da casa legislativa. A questão é que a ALRN, atualmente composta por 24 deputados dos mais variados matizes, é um órgão eminentemente parcial, partidário mesmo, como não poderia deixar de ser com uma casa legislativa. O conflito, o confronto mesmo, entre situação e oposição e suas nuanças, é da sua natureza, e assim tem de ser com esta ou qualquer outra casa legislativa. Essa “trocação” de ideias, essa desinteligência, contanto que num nível respeitoso, é algo típico, necessário mesmo, à democracia parlamentar. Como mediar isso?

Essa situação, que ponho como um desafio ao projeto da nova mestre, me faz lembrar um fato curioso, até cômico, da minha vida profissional. Há muitos anos, entusiasta da temática, me inscrevi em um curso que o Ministério Público Federal ofereceu em Brasília, cujo título era, se me lembro bem, “Resolução de conflitos”. Durava duas semanas. Acontece que, só quando cheguei na capital, descobri que o curso era de “resolução de conflitos interiores”. “Conflitos consigo mesmo”, posso dizer. Passado o susto inicial – ou mesmo a decepção –, veio a boa surpresa. O curso – orientado pelo grande mestre, de quebra potiguar, Professor Hermógenes (1921-2015) – era nada menos que fantástico. Até hoje me lembro da técnica para adormecermos ensinada pelo mestre, que tento aplicar, com relativo sucesso, nestes dias de angústia.

Bom, talvez só o Professor Hermógenes para mediar conflitos parlamentares Brasil afora.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Chatos e chatices em ascensão

Padre João Medeiros Filho

A maioria das pessoas passa por situações incômodas, inoportunas e inconvenientes. Outrora, o telefone fixo era o campeão de aborrecimentos. Os tempos mudaram. Hoje, há muitas vítimas das redes sociais. O toque do celular é constrangedor, fora de hora e lugar. É aborrecido, quando alguém interrompe uma conversa importante para atender o telemóvel, como dizem os lusitanos. Com o advento desse aparelho o encontro presencial passou a ser secundário, o interlocutor fica em segundo plano e compasso de espera. Não se respeitam os avisos para desligar os celulares em igrejas, teatros, auditórios, hospitais, clínicas, salas de aulas etc. Existem sempre os “esquecidos”, transgredindo essa regrinha básica de convivência social. Faz-nos lembrar o livro de Guilherme Figueiredo “Tratado Geral dos Chatos”, publicado em 1962 pela Editora Civilização Brasileira.

O autor descreve a chatice como falta de educação, inconveniência, grosseria etc. Cita vários tipos de chatos: o etílico, o donjuanesco, o confidencial (que fala ao pé do ouvido e cospe na cara do interlocutor), o chato-de-galocha e outros tipos: o pseudo-erudito, puritano-virtuoso, professoral, orador de ocasiões, o verborrágico ou diarreico de palavras, o que padece com prisão de ventre de ideias, em suma, uma pletora de chatonildos. Poder-se-ia acrescentar outras categorias desses personagens. Entretanto, é impossível fazer um levantamento completo, pois eles se multiplicam numa velocidade estonteante, acompanhando o avanço tecnológico. Recentemente, apareceram com força o e-chato, o politicamente correto, o academicamente exato, o fundamentalista religioso etc. Há os que pregam mudanças (imposições), através de um determinado partido, considerado por eles o escolhido de Deus. Molestam demasiadamente, quando pretendem convencer que seu discurso é o científico e ético, o único capaz de mudar e salvar.

Segundo alguns psicólogos, a proliferação dos chatos decorre do crescimento da intolerância entre as pessoas. Relacionam entre tantas causas: o declínio do sentido de civilidade e o surgimento de novas conquistas técnicas sem a contrapartida de regras sociais específicas para o seu uso. Uma análise acurada da vida cotidiana, da organização familiar e social poderia trazer maior clareza sobre as fontes e causas do aumento do número de chatos e chateados no mundo. Existe algo que deixa uma pessoa preocupada: a possibilidade de ser igualmente um chato, mesmo inconsciente ou involuntariamente. Ninguém está imune a tal defeito, que afeta milhares de seres humanos, contagiando outros tantos. Assegura-nos o apóstolo Paulo: “Aquele que vos perturba, seja quem for, terá o merecido castigo” (Gl 5, 10).

Muitos são vítimas de ligações desagradáveis, aborrecedoras e chatas. São aqueles que insistem em telefonemas, oferecendo empreendimentos de diversos tipos. Recebem-se chamadas de instituições filantrópicas, operadoras de telefonia ou televisão a cabo, internet etc., com planos mirabolantes. Existem os que oferecem túmulos e planos funerais. Essa é uma realidade inexorável, mas não deverá ser abordada em horas impróprias. Há quem ofereça, mediante pagamento, o repasse de cadastros de telefones, endereços, e-mails para mala direta, ao arrepio da Lei nº 13.709/18. Como se não bastassem, há outros tipos de chatices no whatsApp. Exemplo: as famosas correntes supersticiosas, deixando os indivíduos constrangidos, caso pensem em quebrá-las. Os anos eleitorais são pródigos dessas atividades, marcados por uma enxurrada de cartas, panfletos e telefonemas, gravados por algum artista ou pelo próprio candidato.

Deverá haver alguma medida jurídica para diminuir tanta coisa que nos apoquenta. Um amigo encontrou uma maneira de diminuir telefonemas impertinentes e tediosos. Ao verificar que se trata de chamadas de “telemarketing” ou “spam”, oferecendo isso e aquilo ou pedindo contribuição para entidades (cuja idoneidade é duvidosa ou desconhecida), ele emprega os métodos dos importunadores. Atende à ligação e diz: “Um momentinho, por favor!” Coloca uma música e deixa o interlocutor esperando. Interrompe duas vezes e diz: “Não desligue, converso já.” Isso faz com que a chamada tenha uma duração longa, atrasando a meta prevista de contatos. Não se deve esquecer que chatear alguém é falta de educação e caridade. O Livro dos Provérbios faz uma recomendação prática: “Afasta o pé do teu vizinho, para que saturado de ti, não venha a te detestar” (Pr 25, 17).

Popularidade jurídica

Marcelo Alves Dias de Souza

Estes dias, na Internet, vi resultados de pesquisas de avaliação da imagem/desempenho do nosso Supremo Tribunal Federal perante os vários atores da cena política nacional.

Primeiramente, chamaram-me a atenção os resultados do trabalho realizado pela Futura Inteligência, ouvindo 1 mil pessoas país afora, entre os dias 19 e 22 de março, publicados no site da CNN Brasil: “são 52,6% que veem a Suprema Corte de forma negativa. Já 26,8% dizem ser ótimo ou bom. Outros 20,2% avaliam como regular. Não sabe ou não respondeu ficou em 0,4%”. Dá para notar algumas coisas desses números. Esse “não sabe” de apenas 0,4% mostra que o nosso STF é hoje mais conhecido do que a seleção brasileira. E que, pela avaliação negativa com praticamente o dobro da positiva, o STF não está bem na fita para com a população em geral (registrando, entretanto, que há um movimento politicamente direcionado para isso).

Não desconheço que a legitimidade do Poder Judiciário, e de uma corte suprema/constitucional em particular, está relacionada à aceitação de suas decisões pela opinião pública. Há até quem identifique – erroneamente, frise-se – uma coisa com a outra. De fato, não é saudável essa “impopularidade” do STF, muitas vezes fomentada e ilegalmente barulhenta e violenta. Essa constatação, todavia, demanda uma análise da complementaridade entre a democracia e o Estado de Direito. Se a democracia é o governo da maioria, o Estado de Direito consagra a supremacia da Constituição e das leis do país e o respeito aos direitos fundamentais. A regra da maioria ou da democracia só se legitima se respeitados, na forma da lei e da Constituição, mesmo em desfavor da turba, os direitos de todos, inclusive os das minorias. Em condições normais de temperatura e pressão, o STF é sobretudo um poder contramajoritário, que atua para defender os direitos fundamentais e as minorias mesmo contrariamente à vontade da maioria. Isso deve se dar no Brasil, nos Estados Unidos da América ou em qualquer outra democracia civilizada.

Chamou-me também a atenção uma pesquisa, feita pelo Ranking dos Políticos (uma iniciativa que visa avaliar o desempenho dos nossos congressistas), que li no Correio Brasiliense, aqui mais pelo resultado, para mim inesperado: “Avaliação do STF piora entre deputados, mas melhora com senadores”. Segundo publicado no Correio, “a pesquisa mostra que 55,9% dos deputados consideram a atuação dos ministros ruim/péssima, um aumento de 1% em relação a 2024. Já no Senado, a percepção negativa sobre os ministros do STF caiu 4,4%, de 42,9% para 38,5%. A avaliação positiva caiu 12,6% na Câmara, atingindo 20,7%, e no Senado, aumentou 9%, chegando aos 42,3%. Sobre a invasão de competências pelo STF, 48,6% dos deputados acreditam que a Suprema Corte invade usualmente, e 31,6%, que a invasão ocorre ocasionalmente. Entre os senadores, essa percepção é de 42,3% usualmente, e 34,6%, ocasionalmente”. E essa alegada “invasão” das competências do Poder Legislativo pelo Poder Judiciário cria uma onda para fazer avançar projetos de lei que revisariam as prerrogativas do STF. Isso, claro, feito no calor da política, não é bom. Sobretudo vindo de onde está vindo. Essas coisas às vezes a gente até sabe como começam, mas não sabe como terminam.

É fato que a aceitação da atividade judicial – e, em especial, das decisões de uma corte suprema – pelos demais Poderes do Estado é dado fundamental para avaliar o bom funcionamento de um sistema jurídico. Mas não se deve decidir apenas com o propósito de agradar os demais Poderes. Se assim fosse, não teríamos, desde o caso Marbury v. Madison 5 US 137, 1 Cranch 137, 2 L.Ed. 60 (1803), o “judicial review of the constitutionality of the legislation”. O reconhecimento e a aceitação da atividade judicial pelos demais Poderes deve ser natural e progressiva, mesmo havendo, como é normal na história, alguns momentos de crise.

Ao fim, a maior legitimidade do STF virá naturalmente se houver a obediência a determinados valores (estabilidade, previsibilidade, igualdade e celeridade), o respeito a uma teoria de precedentes e com a expressa fundamentação das suas decisões na Constituição e nas leis do país, fornecendo-nos, assim, uma Justiça verdadeiramente legítima e consensual. Espero que isso se dê – ou continue se dando – no Brasil.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Sobre coelhos, colombas e ovos de páscoa


Padre João Medeiros Filho
Durante anos, elaborei projetos de cursos de teologia a fim de obter autorização de funcionamento do Ministério da Educação. Ali, incluía no perfil do teólogo a assessoria teológico-cultural a órgãos públicos e privados. Se houvesse tais graduados nas fábricas de chocolates Nestlé, Garoto, Kopenhagen, Cacau Show, Cacau Brasil etc., talvez os empresários mudassem de direcionamento e não produzissem coelhos, colombas e ovos pascais. Não se sabe exatamente quem fez a ligação de chocolate com a Ressurreição de Cristo. É corrente citar o coelho como símbolo de fertilidade e os ovos, o princípio da vida. Para muitos trata-se de uma metáfora um tanto forçada. Na Páscoa comemora-se a vitória de Cristo sobre a morte. Por isso, sua força renovadora requer algo mais simbólico, como a Luz do Círio, elemento litúrgico da Vigília Pascal. Cristo dissera: “Eu sou a Luz do mundo” (Jo 8, 12).
Há tempos, Luiz Fernando Veríssimo escreveu uma crônica sobre o tema. Reproduziu parte do diálogo entre um menino e seus pais sobre essa festa. A narração termina com a observação da criança: “Acho que se deveria substituir o coelho por uma galinha. Esta põe ovos, aquele não.” Não convêm histórias que podem confundir ou deformar a mente das crianças e pessoas incautas. Os textos bíblicos e litúrgicos não fazem referência a coelhinhos, colombas e ovos, elementos atuais da comemoração pascal.
Historiadores narram que antes do cristianismo, celebrava-se entre os povos anglo-germânicos a deusa Eostre (conhecida como “deusa da aurora”), da primavera e da fertilidade. Ainda hoje, ela é celebrada na tradição celta. Na Europa o período pascal ocorre sempre na primavera. Considerando a fecundidade dos coelhos, fizeram uma ligação com a Páscoa e o aumento de cristãos nos primeiros séculos. Entretanto, nela vivencia-se a renovação da vida espiritual e não a procriação ou fertilidade. Nas igrejas de ritos orientais (bizantino, ucraniano etc.) há o costume de pintar ovos e presenteá-los aos vizinhos na oitava pascal. Para eles, os ovos lembram o princípio da vida. Todavia, teólogos cristãos consideram elementos pouco significativos da plenitude da Vida em Cristo. O apóstolo Paulo já advertia: “Que ninguém vos faça prisioneiros de filosofias e conversas sem fundamento” (Col 2, 8).
Ultimamente, para simbolizar a Páscoa, optou-se pela pomba. Para alguns é mais icônica. A passagem do Gênesis sobre o dilúvio e a Arca de Noé (Gn 6, 11-20) narra que a pomba voou, apanhou um ramo verde de oliveira e o trouxe até Noé. Ela passou então a ser símbolo de vida. Uma das telas comoventes de Picasso é uma menina com uma pombinha em suas mãos. Os Evangelhos ressaltam que o Espírito Santo no momento do batismo de Jesus, “desceu sobre Ele em forma de pomba” (Lc 3, 22). Talvez, esses dados tenham influenciado a fabricação de colombas pascais, um tanto desfiguradas, segundo vários artistas sacros. Nenhum desses símbolos expressa com profundidade a Vida nova, trazida pela Ressurreição de Cristo.
Muitos desconhecem o significado da Páscoa. Continuam associando aos coelhos, ovos, colombas e outras guloseimas de chocolate. Desconhecem o seu sentido e não a celebram com uma mentalidade bíblico-religiosa. No período que antecede a Semana Santa, há toneladas de ovos de chocolate e outros produtos similares, em supermercados e lojas. Não há uma palavra sequer sobre o que representa a Páscoa. Fabricantes cristãos de tais produtos poderiam pôr ao menos nas embalagens um folheto explicativo sobre essa importante festa do cristianismo. Como faz falta um conhecedor da cultura religiosa. Quando estudava na Bélgica, ouvi de um sacerdote da Igreja Ortodoxa Russa que nela a Ressurreição é a solenidade máxima dos católicos. O comunismo, com todas as suas narrativas e imposições, não foi capaz de destruir a alma do povo, tocada pela fé cristã. No alvorecer do Domingo de Páscoa – retratado pelo clarão do Círio – as pessoas saem pelas ruas e se cumprimentam: “Cristo ressuscitou!” Responde-se com um largo sorriso: “Sim, Ele está vivo!” Na minha primeira noite pascal em Louvain, um jovem presenteou-me um Círio e dissera: “Cristo ilumine a tua vida e o teu Brasil.” Recomenda o apóstolo Paulo: “Faz-se necessário renovar-vos pela transformação espiritual de vossa mente” (Ef 4, 22-23).

Peripatético

Marcelo Alves Dias de Souza

Por estes dias, um amigo, apaixonado pelas coisas do Reino Unido, me perguntou se eu sentia saudades do período em que morei/estudei em Londres. Saudade é sentimento muito peculiar e, observando o todo, prefiro dizer que não. Olhando retrospectivamente, posso até dizer que, comigo, a coisa se dava/dá mais ao contrário. Parafraseando o que certa vez disse João Cabral de Melo Neto (1920-1999) quanto ao seu Recife, eu, quando estou no exterior, tenho saudades do Brasil, quando estou no Brasil, tenho saudades de Natal, e, quando estou em Natal, tenho saudades de quase mais nada. E, se a saudade às vezes bate, o é das coisas que vivi pisando no chão dos meus antepassados, da minha gente, dos que ainda estão aqui e dos que já se foram.

É claro que eu sinto falta de alguns lugares (livrarias, sebos, museus, pubs) que frequentava e de coisitas (caminhar, tomar um café à toa) que fazia prazerosamente em Londres.

Vou dar um exemplo relacionado à sétima arte apenas para relembrar de um tempo em que eu tinha tempo para exercitar a cinefilia. Frequentei bastante o British Film Institute – BFI, complexo dedicado ao cinema, que fica à margem sul do Tâmisa (Southbank), mais precisamente abaixo da Waterloo Bridge. No meu tempo, acho que eram quatro salas de exibição, mais voltadas para o cinema britânico, mas que também exibiam, vez por outra, os lançamentos da hora. Junte a isso restaurantes e cafés, para bate-papos antes e depois das sessões. Havia a Filmstore do BFI, uma mistura de loja de DVDs e livraria, que era um achado para qualquer cinéfilo, em variedade e qualidade e, às vezes, se pegássemos uma promoção, em preço. Melhor ainda, até porque de graça, era a Mediatheque, onde se podia explorar boa parte do acervo do BFI. Milhares de produções para o cinema e para a TV que podíamos ver sentados em uma confortável poltrona e com uma telona só para nós. Ainda me lembro da então recém-inaugurada BFI Library, com uma das maiores coleções de livros, periódicos etc., sobre cinema e televisão, do mundo todo. Era aberta tanto para os especialistas como para o público em geral. Da última vez que estive lá, como turista apressado, vi algumas mudanças (se não estou enganado, a lojinha havia sido descontinuada ou reduzida em tamanho). Mas essas reformas são normais. Quase sempre são para melhor. E o que vale a pena é o complexo do British Film Institute. A sua atmosfera. Sinto falta, sim, das minhas tardes por lá.

De toda sorte, o que sinto deveras falta da minha estada em Londres está mais relacionado a coisas simples, que posso chamar de solitude (não de solidão) e de movimento, do que aos grandes aparelhos culturais que essa metrópole oferece.

Por exemplo, adoro café e gosto mais ainda de frequentar cafés. Sentar sozinho, ler um livro tomando um latte, escrever um pouco ou apenas ver a rua passar. Fiz muito isso em Londres. Para tanto, não precisava de um Deux Magots. Podia ser num daqueles Starbucks, Costa ou Nero de estilo, que pululam nas esquinas de Londres. É difícil fazer isso na terrinha. Conhecemos muita gente. Seria interrompido, tido como em crise existencial ou mesmo, quem sabe, como estando meio assim sei lá da bola. Faltaria a bendita solitude. Como diria Jean-Paul Sartre (1905-1980), por sinal habitué do citado Deux Magots, aqui o inferno são os outros.

E, acima de tudo, na segurança e no clima de Londres, amava andar a pé, a qualquer hora do dia ou da noite, de casa à universidade, à biblioteca ou já em direção a algum rendez-vous de ocasião. Amava caminhar, mesmo que sozinho, por avenidas e vielas, parques e praças, sem pressa e perdidamente, vendo as coisas, os animais e as pessoas. Amava assim flanar, uma “ciência” que Honoré de Balzac (1799-1850) definiu, poeticamente, como a “gastronomia dos olhos”. E amava, claro, pensar caminhando, como outrora fazia o gigante Aristóteles (384-322a.C.) junto a seus discípulos.

Bom, não dá muito para caminhar, seja à toa ou ao cinema, aqui em Natal. Tem a insegurança. Tem o clima. Não dá para ser pacificamente peripatético num calor dos diabos.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Viva a gastronomia brasileira!


Segundo os evangelistas, Cristo apreciava os alimentos e bebidas, chegando a ser acusado pelos adversários de “comilão e beberrão” (Mt 11, 19). Na Eucaristia, Ele transubstancia o pão e o vinho em seu corpo e sangue. Valoriza o alimento e proclama a sua sacralidade, ao se definir “Eu sou o Pão da Vida” (Jo 6, 8). Nesse contexto é costume entre os cristãos começar as refeições com uma prece de agradecimento. Os mosteiros medievais legaram-nos receitas de pratos e bebidas. Os monges eram exímios fabricantes de vinhos, licores, cervejas, tortas, biscoitos etc., além de desenvolver várias práticas agrícolas.
Anualmente, há um concurso internacional para os profissionais da gastronomia, denominado “Bocuse d’Or. Recebeu tal nome em homenagem ao organizador. O evento acontece, em Lyon (França), junto com a feira do Salão Internacional de Restaurantes, Hotelaria e Alimentação – SIRHA. Trata-se de uma prestigiada competição do mundo da gastronomia. A preparação dos pratos acontece diante do público. Na ocasião são organizados outros eventos, como o concurso mundial de “patisserie” e pães. Em 2017, os chefs Luiz Filipe Souza e Giovanna Grotti demonstraram, na versão latino-americana do Bocuse d´Or, que os sabores brasileiros podem agradar aos diferentes paladares. À época, tais estrelas de nossa culinária elaboraram receitas inéditas, capazes de encantar outras nações. No Bocuse d’Or, enquanto acontecem as provas e demonstrações, empresas de vários países mostram o diferencial dos ingredientes a milhares de compradores internacionais, difundindo sua cultura e tradições. As melhores lojas desse tipo de negócio disputam a atenção do mercado consumidor.
“A cada evento os clientes vão conhecendo as diversas formas de usar os produtos brasileiros e se encantam com os ingredientes que oferecemos”, afirmou o chef Luiz Fernando Arruda. Este levou para um desses encontros a tapioca hidratada e o leite de coco, produtos dos mais requisitados por quem buscava novidades. Sobressaíram igualmente o açaí e as polpas de frutas, oriundas do norte e nordeste brasileiro. Muitos compatriotas se deslumbram com comidas e bebidas importadas. O Brasil produz uvas de exportação e cachaça de excelente qualidade. Renova-se aqui o convite para revisitar o inesquecível Mestre Câmara Cascudo, em sua obra “Prelúdio da Cachaça”. Mas, para alguns, degustar pratos e bebidas alienígenas pode parecer chique, conferindo status. Cristo já dizia: “Em sua própria terra, um profeta não é valorizado” (Mc 6, 4).
Com ingredientes de todas as regiões, o Brasil detém uma riqueza imensurável de matéria prima, combinações, condimentos e temperos, que revelam nossa rica diversidade gastronômica. É preciso estudá-la e difundi-la. Foi assim pensando que a UniCatólica do Rio Grande do Norte, em Mossoró, aceitou o desafio e através de um curso de tecnólogo (um dos poucos no RN) defende nossas tradições e hábitos alimentares. A diversidade de clima e biomas que o Brasil possui, faz com que os experts em gastronomia possam contar com um manancial de produtos característicos. Isso possibilita levar à mesa de outros países a riqueza de sabores que temos a oferecer. Assim pensando, a Associação Brasileira de Restaurantes e Bares-ABRASEL promoveu em Natal, entre 18 e 20 de março, o seu 42º Encontro Nacional com a temática “Inovação na Gastronomia brasileira, conectando tradição e modernidade.”
No The Best Chef Awards 2024, ocorrido em novembro nos Emirados Árabes Unidos, o talento de dezessete chefs brasileiros foi reconhecido a nível internacional, recebendo significativa premiação, com mais de oitenta por cento da pontuação. Dentre eles estão: Alex Atala (do Dom, em São Paulo); Manoella Bufara (Manu, em Curitiba); Alberto Landgraf (Oteque, Rio de Janeiro); Fabrício Lemos e Lisiane Arouca (Origem, em Salvador); Ivan Ralston (Tuju, São Paulo); Janaina Rueda (Bar da Dona Onça, São Paulo); Jefferson Rueda (A Casa do Porco, São Paulo); Rafa Costa e Silva (Lasai, Rio de Janeiro). Padre Vieira, do púlpito da Igreja dos Jesuítas de Salvador, já defendia nossa cultura e apresentava matizes de nosso legítimo patriotismo: “Por que buscais tão longe aquilo de que necessitais, se tendes aqui em abundância e melhor?” Diz o salmista: “[Deus] fartou a alma sedenta e encheu de bens a faminta” (Sl 107/106,9).