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Menos, por favor

Marcelo Alves Dias de Souza

Estes dias o Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento do HC 232.627/DF, no qual se discute a manutenção da chamada “prerrogativa de foro”, nos casos de crimes cometidos no cargo público e em razão dele, mesmo depois que a autoridade tenha deixado a função. Prevaleceu, por 7 x 4, o entendimento do relator, Ministro Gilmar Mendes, pela concessão da ordem, para reconhecer a competência do STF para processar e julgar a ação penal originária, com a fixação da seguinte tese: “A prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício”. Ter-se-á, segundo consta, a aplicação imediata do novo entendimento aos processos em curso, com a ressalva de todos os atos praticados pelo STF e pelos demais Juízos com base na jurisprudência anterior. Por derradeiro, o Ministro Flávio Dino ainda propôs acrescentar à proposta de tese um item II com a seguinte redação: “Em qualquer hipótese de foro por prerrogativa de função, não haverá alteração de competência com a investidura em outro cargo público, ou a sua perda, prevalecendo o foro cabível no momento da instauração da investigação pelo Tribunal competente”.

Bom, não vou entrar no mérito da decisão. Pode até ser o melhor direito. E nós, operadores jurídicos, a aplicaremos devidamente (já me manifesto expressamente nesse sentido).

O problema aqui está em ser essa, nos últimos anos, a enésima mudança de entendimento do STF sobre o tema, sem que, na maioria das vezes, haja alteração do texto constitucional ou na disciplina legal pertinentes.

Com todo respeito ao nosso STF – a quem atribuo um papel fundamental na manutenção do nosso Estado Democrático de Direito, sobretudo nos últimos anos –, essa “constante mudança” (desculpem a contradição em termos) de entendimento na temática causa grave perplexidade (ainda muito discutiremos os detalhes e as nuanças, que serão várias, da novel interpretação), tumulto (começará nos próximos dias um sobe e desce de inquéritos e processos), morosidade (esse sobe e desce causará um prejuízo enorme à celeridade da persecução penal) e impunidade na administração da Justiça (com a extrapolação desarrazoada dos prazos previstos, sabemos que a Justiça, entre nós, tarda e falha).

Um direito estável é salutar para qualquer país. A instabilidade, com regras de direito constantemente reformuladas e aplicadas de maneira diversa, prejudica muito a confiabilidade no sistema. Se, infelizmente, a instabilidade do direito parece já fazer parte da tradição brasileira, sofrendo o nosso sistema jurídico, num grau altíssimo, desse problema, contribuir jurisprudencialmente o nosso STF para isso é inadmissível. Com todo respeito, claro. Ademais, como de há muito aprendi com o saudoso mestre Arruda Alvim (em “Tratado de Direito Processual Civil”, RT, 1990), a partir da sua requerida estabilidade, deveríamos fomentar uma previsibilidade ou certeza (até bem futura) do que é o direito. A atividade jurisdicional, no seu conjunto e a do STF em especial, deve traduzir e, sobretudo, proporcionar essa certeza, para que os operadores do direito e os jurisdicionados, havendo já uma previsão de como as questões a eles relacionadas seriam tratadas judicialmente, possam melhor ordenar seus negócios e suas condutas. E isso sem falar na igualdade (talvez o fundamento derradeiro da Justiça) de tratamento decorrente de um entendimento jurisprudencial devidamente perene. Nada mais justo que casos semelhantes sejam sempre tratados de maneira semelhante; ao revés, nada mais injusto que esses casos (semelhantes) sejam tratados, se foi ontem ou é hoje, de modos diversos.

Dito tudo isso, rogo, para a temática aqui referida e para tantas outras tão importantes para o nosso país: mudanças, menos, por favor!     

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

“Pedaços de mim mesmo”

Padre João Medeiros Filho

Eis o título de um livro de Dom José de Medeiros Delgado, primeiro bispo de Caicó (RN), há 37 anos na Casa do Pai. Nutro por ele profunda admiração, respeito e gratidão. Tentarei acrescentar outros fragmentos, não registrados naquela obra. Ao conferir-me o sacramento da confirmação, tocou-me sua belíssima homília sobre o Sermão da Montanha, dirigida aos fiéis de Jucurutu. Hoje, posso aquilatar a profundidade teológica e espiritual de sua pregação. Era o Ano Santo de 1950. Ele preparava-se para ir a Roma. De volta do Vaticano, trouxe-me um terço, bento por Pio XII e dissera-me: “Seja devoto de Nossa Senhora. Ela é a ternura divina, face maternal de Deus. A Igreja precisará de você.” Dom Delgado não tinha a imponência heráldica que caracteriza alguns “príncipes da Igreja”. Seus gestos inspiravam humildade, abertura, serviço, ternura e amor. Poucos sabiam que ele era amicíssimo e compadre de Tristão de Athayde (Alceu Amoroso Lima) e outros líderes. De grande conhecimento didático-pedagógico, impressionou o Ministro da Educação, Gustavo Capanema. Sua transferência para São Luís (MA) foi de uma comoção, só repetida em Caicó, quando do sepultamento de Monsenhor Walfredo Gurgel. Queira Deus que o bispo eleito do Seridó conheça seu pensamento e obra pastoral.

Em Caicó, o legado de seu primeiro prelado é ingente. Contemplou as etapas da vida humana. Fundou a “Pupileira”, primeira creche do Seridó, campo de estágio das alunas da Escola Doméstica Darcy Vargas (obra sua) e abrigo seguro para as crianças, cujas mães necessitavam trabalhar. Além do Ginásio Diocesano, criou oito escolas paroquiais para educar jovens de menos recursos financeiros. Os candidatos ao sacerdócio tiveram sua formação no Seminário Cura d’Ars por ele fundado. Para os idosos deixou o Abrigo Dispensário Prof. Pedro Gurgel. Transformou um cemitério desativado em centro de reflexão e treinamento para o laicato.

Considero-me privilegiado por ter conhecido, antes do Concílio Vaticano II, um prelado de tanto espírito ecumênico, profunda visão pastoral, sensibilidade humana e dinamismo social. “Ele apascentava no poder do Senhor e na sublimidade de seu Deus” (Mq 5, 4). Eis alguns de seus gestos icônicos. Em 1942, ao fundar o Ginásio Diocesano, convidou um farmacêutico (Zezinho Gurgel) e uma linguista (Myrtilla Lobo), ambos de confissão evangélica, para ministrar aulas de ciências e língua portuguesa. Por esse motivo, denunciaram-no à Nunciatura Apostólica. O Núncio quis ouvi-lo. Respondeu-lhe: “Convidei-os, não para ensinar religião, mas para transmitir o que eles conhecem bem. Por outro lado, os futuros líderes e doutores de amanhã precisam, desde cedo, aprender a conviver com as diferenças.”

Em 1949, recebeu em sua diocese um seminarista salesiano (Luís de França). Os superiores negaram-lhe a ordenação, pois o jovem sofria de epilepsia, considerada à época, desaconselhável para o presbiterato. Após meses observando o jovem, resolveu ordená-lo. Mais denúncias à Nunciatura. Respondeu ao representante do Vaticano no Brasil: “Sou responsável diante de Cristo pelo rebanho que me confiara. Conheço as necessidades do bispado. Deus não discrimina pessoas. O rapaz não é culpado de padecer dessa enfermidade. Os fiéis têm mais compreensão e sensibilidade do que nós, padres e bispos.” Iria ordenar o levita. Mas, este veio a falecer, não da doença, mas de um infarto fulminante, de tanta emoção, ao comprar o cálice para a sua primeira missa.

A caridade de Dom Delgado surpreendia quem não estava acostumado a ver gestos de benignidade evangélica. A marca característica de suas atitudes era a prática da compreensão e misericórdia divina. Em 1964, quando arcebispo de Fortaleza, acolheu dois membros da Igreja Católica Brasileira: Dom Raimundo Simplício de Almeida e Padre Enemias Freire de Almada, que solicitaram à Santa Sé retorno ao catolicismo romano. Sugeriu que morassem na residência arquiepiscopal, pois careciam de adaptação e mais estudos. Um dia, seu secretário particular dissera-lhe: “Dom Delgado, esse bispo e o padre da Igreja Brasileira não regulam bem.” Respondeu o arcebispo: “Você diz isso por puro preconceito, pois vieram da Igreja Brasileira. Quantos padres desequilibrados você conhece na Igreja Romana e os aceita! Estes dois são simples. Deus poderá se servir deles para fazer o bem.” Disse Jesus: “Misericórdia eu quero e não sacrifícios” (Mt 9, 13).

Codicismos

Marcelo Alves Dias de Souza

Nos sistemas jurídicos filiados à tradição romano-germânica, tem vigorado o primado da lei, fonte quase que exclusiva do direito. E, mais do que isso, a partir do século XVIII, ocorre na Europa um movimento codificador, que encontrou o seu ápice no Código Napoleônico, precursor das muitas codificações modernas, granjeando o aplauso tanto de legisladores como de estudiosos do direito, da época e de hoje.

Houve até um tempo de um tipo de “codicismo”, digamos, hiperinflacionado. Nos albores da vigência do Código Napoleônico, sob o domínio da Escola da Exegese, a lei era aplicada exatamente como ela estava escrita, sem fazer “interpretações”, mesmo que fossem necessárias. Para os defensores desse tipo de “codicismo”, não havia um só caso concreto que não fosse previsto no Código. Nenhuma hermenêutica, ainda mais quando externa ao texto codificado, era minimamente permitida. Dogmatismo legal à décima potência.

Argumentos em prol da supremacia da codificação das leis são fáceis de colecionar. Anota Felix M. Calvo Vidal (em “La Jurisprudencia: fuente del Derecho?”, Editora Lex Nova, 1992) que os “critérios de segurança, de permanência, de estabilidade aparecem sempre como proeminentes. Para a doutrina, a codificação apresenta uma série de vantagens que não se dão em outros casos em que o direito não haja sido condensado em normas legais harmonizadas e organizadas”. E, citando boa doutrina, arremata: “se o Código supõe uma facilidade para o teórico, não é esta menor para o prático, que sabe com relativa facilidade onde buscar com segurança as leis com as quais vai resolver um caso determinado”.

Todavia, o sistema que prega a legislação, seja ela codificada ou não, como uma única fonte do direito, mostra-se, hoje, insuficiente, sobretudo no que diz respeito à necessária correspondência entre o que está previsto em tese na legislação e a realidade nos tribunais e juízos, seja no campo do direito material, seja no campo do direito processual.

E mais: a crise por que passa o direito brasileiro, em especial o seu Poder Judiciário (frequentemente vítima de campanhas orquestradas e injustas), atinge profundamente verdades que se têm por estabelecidas. Aproveitando uma feliz assertiva do já citado Vidal, essa nova situação política e institucional há de implicar também “uma grande flexibilidade técnico-jurídica de adaptação não somente às novas circunstâncias históricas normais, mas também às circunstâncias excepcionais e transitórias”.

Foi por isso que fiquei muito feliz quando li, no site do Senado Federal, que a futura lei para regulação do dito “processo estrutural”, segundo a Comissão ali criada para elaborar o respectivo anteprojeto (presidida pelo ex-procurador-geral da República Augusto Aras), deverá “ser concisa e adaptável para assegurar resultados concretos”. Para quem não sabe, “a expressão processo estrutural surgiu entre as décadas de 1950 e 1970 nos Estados Unidos. O termo se refere a demandas que chegam ao Poder Judiciário quando políticas públicas ou privadas são insuficientes para assegurar determinados direitos. Nesses casos, a discussão é transferida para a Justiça, que usa técnicas de cooperação e negociação para construir uma solução efetiva para o problema”. Temática importantíssima.

Meu receio era que a comissão caísse em um segundo tipo de “codicismo”, que é a mania, em voga na França até hoje, de se criar códigos, longos e detalhadíssimos, para tudo.

Mas não. O anteprojeto será curto. Terá um texto flexível, que privilegie o consenso entre as partes e não a opinião do juiz. Como afirma o relator da referida comissão de juristas, Desembargador Edilson Vitorelli, o papel do anteprojeto de lei “é não atrapalhar”, “é construir”. E, como arremata o vice-presidente da comissão, o potiguar Marcelo Navarro Ribeiro Dantas, a futura lei não pode trazer retrocessos. Há de se encontrar um texto moderado em prol da eficiência: “todos querem flexibilidade porque o processo estrutural, embora exista e funcione, trabalha na base da tentativa e do erro. Se você amarrar muito as coisas, não pode fazer experimentações. Mas essa flexibilidade não pode prejudicar o fluxo do processo estrutural porque há também um compromisso de que a coisa termine”.

Pois, então, abaixo os codicismos! E viva a moderação!

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Muito além da arte

Kakay 6 mar online - ARTE KIKO
“Ser poeta não é uma ambição minha. É a minha maneira de estar sozinho.”
Fernando Pessoa, na pessoa de Caeiro
A vitória espetacular do filme Ainda Estou Aqui no Oscar vai muito além do mundo da arte, do cinema. Em um momento tão delicado e estarrecedor, com o crescimento da extrema direita no mundo, o filme levou para todos os cantos uma crítica, um alerta e um apelo contra a ditadura. A obra ter mostrado, ainda que de maneira quase leve, a dor do desaparecimento covarde e cruel de um marido, de um pai, de um deputado, de um brasileiro foi um soco no estômago desses fascistas que cultuam a tortura e a morte. E só teria a repercussão que está tendo pela inteligência no enfrentamento de um tema tão grave e doloroso. A cena da família posando para a foto com todos sorrindo é a imagem que mais marca, é o símbolo da resistência contra a violência. É emocionante.
O atual contexto é de uma gravidade imensa. A extrema direita perdeu qualquer limite. No mundo inteiro, assistimos a cenas grotescas de recrudescimento da violência, como o casamento macabro de Trump e Musk. A falta absoluta de qualquer critério, até estético, choca e preocupa. Não se pode imaginar aonde chegarão esses métodos teratológicos de tratar as pessoas e a coisa pública. A vida passou a ter outro significado. A maneira de compreender a política foi drasticamente banalizada. O mundo emburreceu.
Até por isso, o significado dessa vitória cresce. Além da mensagem do filme, é relevante lembrar que, em todas as homenagens, nas mais de 40 comemorações de prêmios diversos, a crítica à tortura, ao covarde desaparecimento e à ditadura estava, de alguma maneira, presente. E chegou a milhões de pessoas mundo afora. Enquanto no Brasil, há muito pouco tempo, nós tivemos que conviver com fascistas que cultuam a tortura e que têm o torturador Brilhante Ustra como ídolo, o mundo inteiro – incluindo o povo brasileiro – parou para acompanhar a dor de uma família vítima da violência da ditadura. E por isso mesmo é importante gritar aos quatro cantos, com uma voz forte, para que nunca mais volte o horror da ditadura que os fascistas de 8 de janeiro tentaram restabelecer: ainda estamos aqui!
Lembrando Mario Quintana, no poema Emergência:
“Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela abafada, esse ar que entra por ela. Por isso é que os poemas têm ritmo – para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

Significado religioso-bíblico das cinzas

Padre João Medeiros Filho

O ato da imposição de cinzas remonta ao Antigo Testamento. O livro de Ester narra Mardoqueu vestindo-se com pano de saco e cobrindo-se de cinzas, ao saber do decreto de Assuero (Xerxes I, da Pérsia), condenando à morte os judeus ali residentes (cf. Est 4,1). Atitude semelhante teve Jó, demonstrando o seu arrependimento (Jó 42, 6). Daniel, ao profetizar a tomada de Jerusalém pela Babilônia, escreveu: “Voltei o olhar para o Senhor Deus, procurando fazer preces e súplicas com jejuns, vestido de tecido rústico e coberto de cinzas.” (Dn 9, 3). Após a pregação de Jonas, o povo de Nínive se vestiu de roupas grosseiras, impondo-se cinzas. O rei levantou-se do trono e sentou-se sobre elas (Jn 3, 5-6). Tais exemplos demonstram a prática religiosa do uso das cinzas como símbolo de arrependimento, tristeza, penitência, conversão e dor. Cristo aludiu igualmente a esse costume, quando se dirigiu aos habitantes das cidades de Corazim e Betsaida que não se arrependiam de seus pecados, apesar de terem presenciado milagres e ouvido a Boa Nova. “Se em Tiro e Sidônia tivessem sido realizados os milagres feitos no meio de vós, há muito tempo teriam demonstrado arrependimento, vestindo-se de cilício e cobrindo-se de cinzas”, advertiu o Mestre. (Mt 11, 21).

A Igreja, desde os primórdios, continuou este ritual com um simbolismo análogo. Tertuliano aconselhava o pecador a “vestir-se com um tecido de estopa e cobrir-se de borralho.” Eusébio, primeiro historiador da Igreja, relata que Natálio se apresentou com esses trajes, diante do Papa Zeferino, para suplicar-lhe o perdão. No cristianismo medieval, quando o penitente saía do confessionário, o sacerdote impunha-lhe cinzas para significar que o “velho homem” tinha sido destruído, dando lugar ao “novo homem” (Ef 4, 24), do qual fala o apóstolo Paulo.

Por volta do século VIII, as pessoas que estavam prestes a morrer, eram deitadas no chão sobre um tecido rude e nelas se jogava pó. O sacerdote, aspergindo-as com água benta, dizia: “Lembra-te, ó criatura, que és pó e nele te hás de tornar.” (Gn 3, 19). Este rito foi tomando uma nova dimensão místico-espiritual e passou a significar morte ao pecado, em seus diversos aspectos: mentira, orgulho, injustiça, inveja, ódio, violência, insensibilidade etc. Assim, com o passar dos anos, tal costume foi associado ao tempo quaresmal. Neste, somos convidados a sepultar o velho homem existente em nós para ressurgir com Cristo, na Páscoa.

Na liturgia atual, as cinzas utilizadas na quarta-feira são obtidas com a queima de sobra das palmas bentas no Domingo de Ramos do ano anterior. O sacerdote as abençoa e impõe sobre os fiéis, dizendo: “Lembra-te que és pó e nele te hás de tornar”, ou então, com outra fórmula: “Converte-te e crê no Evangelho.” (Mc 1, 15). Essa cerimônia é um convite à preparação para a Páscoa pela vivência da quaresma, tempo privilegiado para uma revisão de tudo o que nos aniquila em nossa caminhada de fé e amor.

Aceitando tal ritual, expressamos duas realidades fundamentais: a consciência de que somos criaturas efêmeras e nossa fé na ressurreição. Cristo ressuscitou dos mortos, prometendo-nos que também ressuscitaremos. É conhecida na mitologia grega a força de Fênix, que renasce das cinzas. Isto lembra-nos que delas também nós podemos surgir, como criaturas novas, pela graça inefável de Deus. Elas simbolizam mudança radical, na medida em que representam aniquilamento ou destruição. Por essa razão, somos chamados a nos converter ao Evangelho de Jesus Cristo, mudando nossa maneira de pensar, julgar e agir, libertando-nos da arrogância, do egoísmo e de tudo aquilo que nos afasta de Deus. A palavra marcante com que se abre a celebração da quaresma – a qual se inicia na quarta-feira, após o carnaval – é conversão. O termo, de origem hebraica, indica mudança interior, dir-se-ia, transformação da mente e do espírito. Foi isto o que Cristo veio trazer com sua mensagem. Ele indicou ao ser humano um novo caminho e modo de ser, pensar e viver. O apóstolo Paulo, de forma inspirada, o chama de “novo Adão”, qual seja, uma nova humanidade (Rm 5, 12-21).

O sentido da quaresma na liturgia

Padre João Medeiros Filho

A palavra marcante com que se abre a celebração quaresmal é conversão. O termo, de origem hebraica, indica mudança, interior, dir-se-ia, transformação na mente e no espírito. Foi exatamente isto o que Cristo veio trazer com sua doutrina. Indicou ao ser humano um novo caminho e modo de ser e viver, a tal ponto do apóstolo Paulo chamá-lo de: Novo Adão – nova humanidade (Rm 5, 12-21).

Durante quarenta dias, somos convidados a meditar sobre nosso destino e nossa condição de filhos de Deus. Sabemos que a Igreja muitas vezes se alimenta liturgicamente de simbolismos. O símbolo é aberto, enquanto a palavra linear é fechada e, não raro, limitada e pobre. Recorrendo amiúde à numerologia, a liturgia recorda-nos, os quarenta anos de marcha do Povo de Deus, em direção a Canaã, os quarenta dias e quarenta noites que o Senhor passou no deserto, antes de ser tentado por Satanás. Portanto, a palavra quaresma está sempre ligada à reflexão e caminhada.

Como nos rituais do Antigo Testamento, a quaresma cristã exorta-nos ao jejum e à conversão (em grego: metanóia). Na sociedade hodierna, fala-se muito na linguagem administrativa e biomédica em cortar gorduras. No jejum, deseja a Igreja que possamos ser capazes de cortar as gorduras do egoísmo, da vaidade, da violência, da injustiça e do desamor. Na sociedade hodierna de culto ao corpo, malha-se muito e inúmeras modalidades de exercícios são praticadas e ensinadas. Jejuar é malhar interiormente, eliminar os excessos nocivos à vida humana para dar lugar à fome do Deus Vivo.

A quaresma lembra também o êxodo do Povo de Deus em busca da Terra Prometida. A partir daí a Igreja chama a atenção sobre a nossa trajetória diária. A liturgia proporciona-nos um espaço interno e temporal, durante o ano, a fim de realizarmos uma viagem ao interior de nós mesmos. E assim, voltando ao que é verdadeiramente nosso, possamos nos deparar com o que ali deixamos, encontrando-o renovado. Às vezes, de volta à casa, depois de meses ou anos, muita coisa não existe mais. Da mesma maneira, o “que é velho”, no dizer do apóstolo Paulo, deverá desaparecer para dar lugar à novidade de Deus. Esse tempo privilegiado na vida cristã é a quaresma. Mas, esta não é apenas um período litúrgico. É também um momento ao longo de nossas vidas, em que devemos retornar, com a ajuda da graça divina, ao nosso interior. E ali, é indispensável realizar o encontro com nossos erros e virtudes.

A celebração quaresmal convida-nos ao despojamento para um renascer. A cerimônia de cinzas significa o fim de tudo o que nos afasta do Pai e de nós mesmos. É preciso reduzir a pó nossa mentira, nosso egoísmo, nossa insensibilidade, numa palavra, nossos erros, limitações e pecados, para que possa nascer em nós o “homem novo”, que Cristo Jesus veio trazer ao mundo. As cinzas traduzem simbolicamente nossa conversão, o queimar de nossos erros e o brotar de novos planos. Por isso deve surgir em cada um de nós um desejo autêntico de escuta da palavra de Deus. Caminhar ou viajar pode nos ensejar uma oportunidade de dialogar e ouvir outras pessoas. A quaresma é esse convite a uma escuta atenta e profunda de Deus Pai. É sua Palavra que ilumina nossa vida, nos convida à transformação interior e nos dá a verdadeira dimensão da misericórdia divina, do perdão e da graça do Senhor Jesus. “Somos pó e a ele voltaremos” (Gn 3, 19). Esta é mais uma das verdades sobre a qual a Igreja pretende nos conscientizar. Assim compreenderemos o significado da Quarta-feira de Cinzas. Há um apelo para destruir o velho homem dentro de nós a fim de ressurgir uma criatura totalmente renovada, segundo a expressão de Paulo (Ef. 4, 22-24). “Necessário vos é nascer de novo” (Jo 3, 3), falou Cristo a Nicodemos. Precisamos dar lugar à outra criatura dentro de nós. Eis o sentido das Cinzas que nos foram impostas, na cerimônia litúrgica, acontecida em nossas paróquias e comunidades, ao adentrarmos no tempo quaresmal, que nos levará à alegria da Páscoa do Senhor.

O direito de Shakespeare

Marcelo Alves Dias de Souza

Um dos “mistérios” sobre Shakespeare diz respeito ao direito. Como poderia o Bardo ter tanta intimidade com o mundo jurídico, ao ponto de retratar tão fielmente os procedimentos legais da época das suas produções teatrais? Como poderia ele, com tanta precisão, debater questões como Justiça, formalismo legal, bom-senso etc.?

Formação clássica em direito, Shakespeare não possuía. Ele foi certa vez testemunha em um caso envolvendo pessoas da sua convivência, é vero. Esse, aliás, é um dos acontecimentos mais relevantes para comprovar a existência da pessoa William Shakespeare (1564-1616). Mas isso, por óbvio, está deveras longe de fazer dele um profissional/conhecedor do direito.

Esse mistério do conhecimento jurídico do Bardo tem martelado em minha cabeça desde quando, morando em Londres, tive oportunidade de assistir a duas de suas obras: “Bem está o que bem acaba” (no National Theatre) e, sobretudo, “A Comédia dos Erros” (no Globe Theatre), peça cuja trama gira em torno da condenação à morte de um comerciante de Siracusa, apenas por violar estrita proibição legal de cruzar a fronteira entre sua cidade e Éfeso. “A Comédia” trata, então, do dilema da pena de morte, do legalismo exagerado e meandros dos procedimentos legais da época.

Esse “encafifamento” só aumentou depois que eu devorei, já no papel, as duas “peças jurídicas” de Shakespeare, assim classificadas por Daniel J. Kornstein em “Kill All the Lawyers? Shakespeare’s Legal Appeal” (University of Nebraska Press, 2005): “O Mercador de Veneza” e “Medida por Medida”. “O Mercador de Veneza”, notável “courtroom drama”, é uma crítica à vingativa visão de Justiça “olho por olho, dente por dente” e à visão formal do direito, em prol de uma Justiça de equidade, a partir de um bom-senso natural aplicado às especificações do caso. É também uma aula de direito contratual e, sobretudo, no que considero o clímax da peça, uma lição de hermenêutica inteligentemente revolucionária, embora, como sói ocorrer no bom direito, atenta à “letra da lei” e aos “exatos termos” do contrato. Já em “Medida por Medida”, onde nenhuma personagem é inteiramente boa ou má, aprendemos que “Leis para todas as faltas (…): são motivo de zombaria mais que de advertência”; e enxergamos a hipocrisia da Justiça absoluta aplicada pelos homens, uma vez que, no mundo real, de paixões e fraquezas, por não ser a medida certa, ela simplesmente não funciona. Pelo menos não no parecer do grande conhecedor da alma humana – certamente o maior de todos que, em poesia, dela tratou – que foi Shakespeare.

Há uma curiosa teoria que visa explicar essa sabença jurídica do Bardo. Segundo os autores do “Everyman’s Companion to Shakespeare” (J. M. Dent & Sons, 1978), Gareth Lloyd Evans e Barbara Lloyd Evans, existe a tese de que “Shakespeare foi assistente de advogado após deixar a escola”. Para eles, “isso, como uma defensável hipótese, não pode simplesmente ser colocada de lado. Não há prova factual, mas a evidência circunstancial é formidável: (a) durante a juventude, ele teria sido bem relacionado com os advogados de Stratford em razão dos afazeres do pai, tanto comerciais como na administração da cidade, e mesmo em litígios mais graves nos quais o volátil John Shakespeare estava envolvido, incluindo contravenções; (b) durante a vida, Shakespeare estava envolvido, como muitos do seu status social e econômico, com questões legais – em especial a compra, venda e aluguel de imóveis. Ele parece ter sido assíduo e informado nos seus negócios e tornou-se próspero; (c) suas peças são pródigas em profissionais do direito, em linguagem legal e mesmo em evidências de um bom conhecimento da ciência jurídica”.

Desconfio. Tanto quanto não gosto de teorias conspiratórias, desprecio teses mirabolantes. Prefiro acreditar que Shakespeare foi mesmo um gênio natural, autodidata, com insuperável capacidade de extrair maravilhas das suas fontes, reformulando-as nas tragédias e comédias que nos encantam até hoje. Ele lia e relia os livros que podia, sobretudo os clássicos gregos, para fins de elaboração de suas peças, assim como as reescrevia e revisava frequentemente. Ao ler e reler os clássicos, pensar e revisar as ideias de outrem e as próprias, ele se fez autodidata na apresentação literária do bom-senso e da Justiça.

Aliás, os próprios autores do “Everyman’s Companion to Shakespeare” lembram que a grande força do Bardo não estava no seu conhecimento ou bagagem cultural – isso Milton, Francis Bacon ou mesmo Ben Jonson tinham muito mais do que ele –, mas, sim, na forma poética e insuperavelmente encantadora como ele punha esse conhecimento no papel e no palco.

Isso, para o direito, que trabalha com a linguagem, é muito mais do que muito. E não se aprende em faculdade alguma.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL