Domingo das Mães

Padre João Medeiros Filho

No Ocidente, durante o mês de maio, os católicos homenageiam Maria Santíssima. No primeiro domingo, celebra-se Nossa Senhora com a invocação de Mãe dos Homens, um dos oragos mais antigos da Virgem de Nazaré. E no domingo seguinte, festejam-se as mães terrenas.

Na primavera europeia, quando as flores desabrocham, quis a Igreja comemorar a beleza da existência humana na pessoa de Maria e de nossas genitoras, “rosas de Deus”, na expressão de Santo Ambrósio, que inspirou a invocação mariana de “Rosa Mística”. A patrística greco-latina é rica em textos e comentários a respeito daquelas que transmitem a vida. Santo Irineu, primeiro bispo de Lyon, as comparou à “face terrena do Divino.” Para São Clemente de Alexandria, elas são “um mimo celeste na terra dos homens.” São João Crisóstomo as denominou “luz de nossos dias, sol de nossas vidas, estrelas de nossas noites e travessias.” 

Justa e merecida é a homenagem que se presta a todas as nossas progenitoras, sobretudo no mês dedicado à Virgem Santíssima. É relevante o seu incondicional amor, carinho e doçura, desvelo e dedicação. Reconhece-se a bondade de Deus, ao exaltar a figura daquelas que nos geraram. Participantes do mistério do Criador e de sua clemência, elas encarnam a benevolência divina, orientando nosso destino de criaturas, filhas do Eterno e Absoluto.

É praticamente impossível conseguir descrever o quanto elas são especiais. Dotadas de sensores de alta sensibilidade, não raro, chegam a captar o que não foi dito. Têm um olhar penetrante como as sondas ultrassonográficas de última geração. “Mapeiam o coração de seus filhos e rastreiam marcas de dor e sofrimento, apenas ouvindo o seu timbre de voz e por ele medir a temperatura da alma de seus filhos”, escreveu Padre Gleiber Dantas. Ultrapassam a ciência, pois estão em profunda comunhão com Deus. O próprio Cristo, tendo dispensado bens terrenos, não se privou do colo materno e do sorriso meigo daquela que Ele legou à humanidade para conceder a sua bênção.

No patíbulo da cruz, antes de dar sua vida pela nossa salvação, dissera, olhando para Maria Santíssima: “Mulher, eis o teu Filho.” Depois volta-se para o discípulo amado (João) e exclama: “Eis tua Mãe” (Jo 19, 27). 

Deus sabe que um coração materno pode expressar sua ternura. O Papa João Paulo I, iluminado pelo Espírito Santo, afirmara à multidão na Praça de São Pedro: “Deus é Mãe.” Desde o século III, São Cipriano de Cartago, inspirado no profeta Isaías (Is 49, 15), referia-se a Maria Santíssima como “um rosto materno divino, manifestado por Deus ao ser humano.” É esse lado sobrenatural de nossas genitoras que se pretende enaltecer.

Homenageando quem nos gerou, proclama-se a ternura de Deus, invadindo o íntimo de seus filhos. No coração materno, a grandeza do Criador torna-se acessível a todas as criaturas. Sua magnificência e capacidade de amar ou perdoar se encarnaram numa criatura. Nela, o Pai celeste quis legar um sacramento universal de seu Amor. Concretizou o seu plano de misericórdia no coração materno.

A celebração do Domingo das Mães é o memorial da sublimidade da vida. Lembrança da suprema beleza eterna, que Deus reserva a seus filhos. Não poderia faltar no calendário uma data do reconhecimento de alguém, que participa do mistério da bondade suprema. As mitologias greco-romanas e orientais apresentam deusas-mães. O cristianismo dá-nos uma Mãe celestial e uma terrena a fim de nos acompanhar em todos os momentos e dimensões da caminhada terrestre. Mãe é Amor.

E Deus o é em plenitude, como define o evangelista João em uma de suas cartas (1Jo 4, 8). Que Maria venha cobrir com o seu manto sagrado todas aquelas que nos transmitiram o dom da vida, protegendo e abençoando-as. Elas são como uma centelha celeste na existência. Vem-me à lembrança o belo soneto “Mãe”, do poeta sergipano Hermes Fontes: “Teu nome, ó minha mãe, tem o sabor de um cacho de uvas diáfanas, cor de ouro e pérola…Um filho que tem mãe, tem todos os parentes…” Como esquecer as palavras tocantes do bispo São Boaventura: “Nossas progenitoras são os umbrais do afeto eterno!” 

A saga dos aeroportos

"Realmente, voar, hoje em dia, virou uma grande e chata aventura" - Arte: Kiko
“Realmente, voar, hoje em dia, virou uma grande e chata aventura”Arte: Kiko

“Então é hora de recomeçar tudo de novo, sem ilusão e sem pressa, mas com a teimosia do inseto que busca um caminho no terremoto.”

Carlos Drummond de Andrade

Eu sei que os assuntos sérios e importantes dominam nosso dia a dia. Assistimos, perplexos, a um possível acordo para livrar os condenados pelo Supremo na tentativa de golpe. Alguns, incautos, talvez até de boa-fé, não percebem que essa é só a porta de entrada para desmoralizar o julgamento do STF e depois passar anistia, impeachment de ministros da Corte e a volta triunfal dos golpistas. Também ocupa o noticiário o apagão na Europa, com preocupação de crime cibernético por parte dos russos. Mas o que me exaspera, hoje, é uma questão simples, banal, do cotidiano.

Tenho um amigo muito rico que costuma dizer que a grande vantagem, desses realmente ricos, é que eles não fazem check-in. Usam avião privado. Realmente, voar, hoje em dia, virou uma grande e chata aventura. Nós, privilegiados, que podemos pegar avião para trabalhar ou para lazer, enfrentamos todo tipo de aperreio.

Depois de encarar aeroportos absolutamente cheios, vamos enfrentar os aviões. Tudo começa com as filas para prioridade por determinação legal. Quando é o caso de você ter que pegar um ônibus, que levará o passageiro até a aeronave, a desorganização das companhias é colossal. Com muita dificuldade, você consegue entrar numa fila mal organizada e é um dos primeiros a entrar no ônibus que deixará os passageiros ao pé da escada. Já dentro do ônibus, você vê uma pequena multidão entrar e apertar quem entrou primeiro nos fundos. E, quando finalmente chega à escada do avião, aquele passageiro que tinha prioridade ficou por último. Tinham que esclarecer que a preferência era só para entrar no ônibus. Não no avião.

Dentro do veículo que transporta todos até a aeronave, a impressão é a de que estamos num hospício. Alguém ao lado grita, descontrolado, com o fone no ouvido, dando ordens para um funcionário e explicando como deve ser feito para burlar uma licitação. As pessoas ouvem, perplexas. Não tem como não ouvir, pois o cidadão fala muito alto. Não percebe que está ali fazendo uma quantidade razoável de futuras testemunhas do crime.

Menos grave, e até curioso, uma menina conta, também ao telefone e com voz alta, alguns detalhes da noite anterior em uma festa. Sinto que as pessoas fazem cara feia para o passageiro que instrui o funcionário a cometer um crime, mas seguem com curiosidade querendo acompanhar o romance. E as gaiatices não param nunca. Ao lado, um homem de terno grita e destrata alguma mulher, como se o fone de ouvido desse a ele o direito de incomodar a todos, que são obrigados a ouvir as maiores sandices. As pessoas perderam qualquer noção de civilidade e de como viver em sociedade respeitando os outros.

Na entrada do avião, alguns riscos são reais. Os passageiros entram com enormes mochilas nas costas e vão batendo na cabeça e nos ombros dos outros. Sem nem pedido de desculpas. Mas o pior é quando a aeronave aterrissa. Um dos poucos legados do pós-pandemia foi a maneira com que as companhias aéreas organizavam o desembarque. Saíam em ordem as fileiras, respeitando a lógica de quem senta na frente. Sem empurrões. Sem atropelos. Agora, voltou o vale tudo. Mal pousamos e os passageiros parecem enlouquecidos, um alívio incontido por sair daquele espaço estranho que é uma cabine de avião.

Eu, que sou da roça, não consigo deixar de me lembrar dos currais da fazenda do meu pai, quando abríamos as porteiras para as vacas saírem depois de uma noite trancadas para encontrar os bezerros no curral ao lado. É um Deus nos acuda. Mas o interessante foi o comentário de um casal sentado atrás de mim, “Eu falei pra gente ir de ônibus. É silencioso. Civilizado. As pessoas são respeitosas, sai no horário”. Fica a dica.

Lembrando-nos de Gilles Deleuze: “O verdadeiro charme das pessoas reside nos seus traços de loucura. As pessoas só ficam realmente interessantes quando começam a sacudir as grades de suas gaiolas”.

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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Narrativas, sofismas, falácias

Padre João Medeiros Filho

Atualmente, grassam as narrativas, uma espécie de sofisma, temperado com falácias e mentiras. Na Grécia Antiga, os sofistas ensinavam retórica. Com a técnica do discurso tentavam demonstrar como o interlocutor deveria ser seduzido, independente da veracidade das mensagens. Sócrates, Platão e Aristóteles condenaram seus métodos, considerando-os desonestos e farsantes. Para Aristóteles eles enganavam o público, recorrendo ao erro travestido de aparente argumentação. No sofisma, interessa fundamentalmente seduzir o ouvinte ou leitor, conduzindo-o ao ilusório com promessas de possíveis vantagens econômicas, políticas, científicas ou religiosas. As escolas sofistas não ficaram apenas na antiguidade clássica. Atravessaram séculos, influenciando o pensamento humano.  Hoje, é possível dizer que há um novo tipo de sofisma, veiculado pelas recentes tecnologias de comunicação, cada vez mais velozes.

Há uma proliferação de boatos, engodos e inverdades, uma contínua guerra de informações em busca de seguidores. O apelo proposital ao espetacular e emocional constitui a expressão dessa luta para tentar a validade das palavras e tornar reais as patranhas. Muitas vezes, a objetividade já não tem tanta relevância para formar a opinião pública. Em seu lugar, impõe-se a despudorada e antiética arquitetura das versões de uso rotineiro de muitos ideólogos, políticos e governantes. Abre-se o caminho para o embuste, a desconfiança e as aleivosias repetidas incansavelmente. O apóstolo Paulo ensinava: “Deixando a mentira, cada um diga a verdade” (Ef 4, 25).

Hoje, a forma importa mais que o conteúdo. É o que se verifica neste mundo das famosas redes sociais. Sobre isso chamava a atenção o Papa Francisco, destacando a necessidade de cultivar uma comunicação verdadeira, à luz da afirmação de Jesus Cristo: “A verdade tornar-vos-á livres” (Jo 8, 31). É próprio do ser humano comunicar-se e interagir. A linguagem gera participação e amor. O homem é a única criatura que tem a capacidade de expressar e dizer algo sobre o verdadeiro, o bom e o belo. Entretanto, é também capaz de ludibriar e mentir com uma aparência de verdade. Saint Exupéry, em O Pequeno Príncipe, já dizia que “a linguagem é uma fonte de mal-entendidos.”

Em tempos de redes sociais, conflitos partidários e sociais, presencia-se algo surpreendente: informações infundadas, fraudes, maledicências, desconstruções e calúnias transmitidas em tempo real. Deste modo, dados inexistentes, distorcidos ou tendenciosos são divulgados com objetivos predeterminados. Geralmente ocorre para influenciar opções políticas, ideológicas, auferir lucros ou dividendos eleitoreiros. E o pior, tais notícias falaciosas são, não raro, fruto de inveja, intolerância, radicalismo e ódio. Com elas, reputações são destruídas celeremente sem que os atingidos tenham condições de se defender. As narrativas, novos nomes dos sofismas, estão contaminando a sociedade e fazendo vítimas. Nem sempre é fácil desvendá-las ou erradicá-las. Isso exige atenção, serenidade, sabedoria para confrontar fontes e fatos. Muitas dessas notícias parecem verdadeiras e atraentes, indo de encontro aos interesses de vários. Por isso, são imediata e automaticamente encaminhadas a amigos ou conhecidos.

Os cristãos devem focar a capacidade de discernimento, visando à verdade. Isto significa formar para avaliar e pesar os desejos e inclinações que surgem para não ser disseminadores da mentira. Em Os Irmãos Karamazov, Dostoievski aborda esse tema: “Quem mente a si mesmo e repete sistematicamente as próprias mentiras, chega ao ponto de já não poder distinguir a verdade dentro de si, nem a seu redor. Assim começa a perder a credibilidade por parte de outros.” Há necessidade e urgência de discutir como conciliar razão e emoção, discurso e prática. Como filtrar incontáveis informações, invadindo os espaços virtuais e hospedando dados sem cair nas malhas da desonestidade, da farsa e do logro? De que modo ajudar os outros a pensar e discernir sobre seus questionamentos e problemas, sem a influência invasora e interesseira de gurus de plantão? É tarefa dos cristãos contribuir para preencher o vazio existencial de muitos, mantendo neles a capacidade de refletir para fazer suas escolhas e assumir as consequências. No Brasil hodierno, muitos estão grávidos de malícia, por isso darão à luz inverdades. O apóstolo Paulo já advertia: “Há os que trocam a verdade pela mentira” (Rm 1, 25).

Éticos

Marcelo Alves Dias de Souza

Conheci José Adalberto Targino Araújo, há muitos anos, nas fronteiras do Rio Grande do Norte com a Paraíba. Procurador do Estado no RN, Secretário de Estado da Justiça na PB, afetuoso amigo e sempre um “gentleman”, Adalberto circulava – e ainda circula – com imensa e igual fidalguia por essas duas províncias. Sou testemunha do seu trabalho ético como profissional/prático do direito e da política.

Membro das academias norte-rio-grandense e paraibana de letras jurídicas, Adalberto agora nos presenteia, a partir da sua vocação acadêmica/filosófica, com um livro deveras singular: “A ética aplicada à política e às relações sociais”.
É um livro que merece ser lido. Aliás, degustado com carinho.

É um trabalho sobre a ética – na concepção aristotélica, a ciência que estuda o comportamento humano com o objetivo de alcançar o equilíbrio/virtude (“areté”) e a felicidade (“eudaimonia”) –, um saber intimamente relacionado ao direito, à política, às relações sociais, à filosofia e, por que não, à literatura. O autor, que já laborou ou ainda labora como governante, promotor, procurador, acadêmico e muitas coisas mais, dela, porque também a segue fielmente, entende muito bem.
Entretanto, o livro de Adalberto vai muito além do estudo tradicional da ética.

É primeiramente um delicioso passeio pela história universal. Como o autor explica, ele tem como “objetivo geral identificar as convergências e discrepâncias filosóficas e teológicas entre os filósofos desde o período pré-socrático até os filósofos considerados modernos no que concerne à ética aplicada à política e relações sociais”. Para atingi-lo, busca “compreender a ética, a política e o bem comum em Platão e Aristóteles; compreender a moral no universo cristão medieval; analisar a filosofia moral no período do Iluminismo; expor pensamentos sobre a real dimensão da ética de ordem objetiva; e analisar a crise ética da modernidade na abordagem de pensadores pós-modernos”. Ao finalizar a sua jornada, o texto bem apresenta a síntese das divergências e das convergências entre os pensamentos e os pensadores que construíram a nossa história ética.

E é sobretudo um estudo interdisciplinar pelos vários saberes da humanidade (quer algo mais academicamente contemporâneo?), visando à ampla compreensão e ao aperfeiçoamento da realidade ética que nos cerca. Para além da política, do direito, da sociologia, da filosofia (da qual a ética seria um dos seus principais temas ou ramos), o livro faz excelente uso da literatura (de ficção, para ser mais claro). Por exemplo, dois de meus autores prediletos são objeto de análise. Tolstói (1828-1910), com o seu “O Diabo”, sob o ponto de vista da moral iluminista e, bem detalhadamente, sob uma leitura kantiana. E o insuperável Shakespeare (1564-1616), com os seus “Hamlet” e “Macbeth” e, sobretudo, o seu “Rei Lear”, num mundo eticamente às avessas. Na verdade, na literatura universal, há inúmeras estórias que enfrentam e resolvem os denominados “problemas éticos”. Os grandes autores, se não filósofos, relatando a casuística da vida em linguagem mais elegante e acessível do que a linguagem dos acadêmicos, são frequentemente excelentes professores de filosofia e de ética. A partir da casuística narrada, eles tornam a coisa bem menos abstrata, mais pé no chão, mais vida vívida. E essa abordagem “literária” da filosofia, sua história e sua ética, confesso, é o que mais me encanta em “A ética aplicada à política e às relações sociais”.

Por fim, sem querer mais adiantar o conteúdo, mas para fortemente recomendar a leitura, apenas asseguro: Adalberto e o seu livro são pessoal e academicamente éticos, na precisão integral deste termo.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Cheiro de cadeia

Presídio
Articulista afirma que prisões do 8 de Janeiro sensibilizam extrema-direita, tradicionalmente contra direitos dos presos, e abre caminho para avançarmos no debate sobre o sistema carcerário; na imagem, presidiário durante revista em celas do Centro de Recuperação Penitenciária do Pará 2.

Deixei de rezar. 
Nas paredes rabiscadas de obscenidades, nenhum santo me escuta. 
Deus vive só e eu sou o único que toca a sua infinita lágrima.
Deixei de rezar. 
Deus está noutra prisão.” 
–Mia Couto.

Assim que começaram a ser presos os que invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes, em Brasília, no fatídico 8 de Janeiro, o que se ouvia dos bolsonaristas era: “Se prenderem o Bolsonaro ou um general, o Brasil vai parar”. Depois de mais de 520 golpistas condenados, definitivamente, pelo Supremo Tribunal, ainda se escutavam, agora com vozes mais tímidas, as mesmas falácias sobre certa bravata em defesa dos líderes da organização criminosa armada, na definição do chefe do Ministério Público.

Em 14 de dezembro de 2024, o país amanheceu com a notícia da prisão do general de 4 estrelas, ex-ministro-chefe da Casa Civil e ex-ministro da Defesa do governo Bolsonaro, Braga Netto, por ordem do relator do inquérito, ministro Alexandre de Moraes. Em 14 de março de 2025, a 1ª Turma do Supremo manteve, com unanimidade, a sua prisão preventiva com fundamento na tentativa de interferir nas investigações. O Brasil não parou.

Em 26 de março, também por unanimidade, os 5 ministros da 1ª Turma receberam a denúncia e o ex-presidente Bolsonaro, os generais Braga Netto, Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira, o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, o ex-comandante da Marinha Almir Garnier, o ex-diretor da Abin Alexandre Ramagem e o ex-ajudante de ordens Major Cid viraram réus. O processo caminha, com respeito ao devido processo legal, a passos largos para uma condenação de todos a penas próximas dos 30 anos. Depois do trânsito em julgado, a cadeia será o caminho natural. E o país não vai parar, ao contrário, a estabilidade democrática estará fortalecida.

Hoje, é comum ouvir que o general Braga Netto está preso, mas em uma sala na Vila Militar. É assim que tem que ser. A lei tem que ser cumprida. Ele está encarcerado em uma dependência militar e tem esse direito. Mas está preso. Com as restrições inerentes ao momento processual. Se condenado, e será, com o trânsito em julgado da decisão do Supremo Tribunal, o seu destino será inapelavelmente a prisão comum.

Para ele, provavelmente, será Bangu 8, no Rio. Bolsonaro deverá ir morar na Papuda, em Brasília. É assim que determina a legislação vigente. Lula ficou preso, sem condenação transitada em julgado, por 580 dias numa sala da Polícia Federal. Foi absolvido e teve suas condenações anuladas e conseguiu a liberdade. Tivesse sido condenado, ao final, a lei seria cumprida e ele teria ido para a Papuda. Na verdade, os que estão presos provisoriamente não conhecem aquilo que o detento comum no Brasil tem que conviver: o cheiro da cadeia! As verdadeiras masmorras medievais fazem com que o prisioneiro tenha que conviver com condições sub-humanas. 

Sem dignidade. Sem um espaço minimamente digno. Sem uma alimentação que possa ser chamada de razoável. Um lixo. Uma afronta aos direitos dos apenados. Quem perde a liberdade não perde os demais direitos inerentes à pessoa humana. Talvez o cárcere desses integrantes da extrema-direita sirva para uma discussão sobre a situação dramática dos presídios brasileiros. Quando os golpistas foram presos, começamos a receber telefonemas de bolsonaristas horrorizados com as condições desumanas nas cadeias.

Reclamavam da comida, das celas superlotadas, da sujeira dos presídios, da dificuldade para receber visitas e do constrangimento das revistas íntimas. Ou seja, de repente a extrema-direita se humanizou! Resolveu desistir do discurso de que “bandido bom é bandido morto” e que nós, humanistas, somos “defensores dos direitos humanos dos bandidos”. Penso que esse momento único, em que integrantes da extrema-direita golpista serão condenados a penas perto de 30 anos, e que começarão a viver no chão da cadeia, sentindo o seu cheiro, poderá propiciar uma discussão séria sobre o sistema

penitenciário. Durante anos, dediquei-me a discutir o podre sistema carcerário no Brasil. Nunca consegui ser ouvido pela direita desumana e banal. Agora, nós podemos avançar. Em nome dos direitos humanos de todos. Sei que eles estão ainda em um estado de medo e perplexidade. Mas logo sentirão aquilo que vai impregná-los para todo o sempre, nas roupas, nas entranhas, no imaginário e nas noites de insônia: o cheiro da cadeia. Recorro-me ao grande Pessoa, no “Livro do Desassossego”: “Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há. E capricho, às vezes, em aprofundar essa náusea, como se pode provocar um vômito para aliviar a vontade de vomitar”.

Poder 360

Falsas simetrias

Marcelo Alves Dias de Souza

Uma das coisas que mais escutamos hoje, para fins de crítica ao Poder Judiciário, são alegações que não passam de falsas simetrias: “absurdo! Decidiram assim neste caso e assado naquele; absolveram Fulano e condenaram Sicrano; concederam a liberdade [ou a tal prisão domiciliar, hoje muito em moda] a este, mas não concederam àquele”.

Bom, está certo Ronald Dworkin (1931-2013) na assertiva de que a “igualdade perante a lei” é quem nos oferece a explicação irrefutável e definitiva da necessidade de decisões semelhantes para casos semelhantes. A igualdade não pode ficar apenas no plano normativo. Tem seu lugar, talvez de maior destaque, na solução dos casos concretos na vida em sociedade. O jurisdicionado não compreende/aceita duas decisões antagônicas resolvendo o mesmo princípio, a mesma regra e, sobretudo, os “mesmos fatos”. Em resumo, nada mais justo que casos “iguais”/semelhantes sejam resolvidos de modo semelhante; ao revés, nada mais injusto que esses casos semelhantes sejam decididos, arbitrariamente, de modos diversos.

Todavia, é pressuposto, para que os julgamentos de dois casos estejam condicionados (por uma questão de igualdade perante a lei), que haja realmente uma identidade entre os fatos dos dois casos.

E que identidade é essa? Deve ser absoluta? Óbvio que não, sob pena de invalidarmos a própria possibilidade de aplicação do princípio da igualdade. Afinal, já dizia Heráclito de Éfeso (500-450a.C.), “nós não podemos nunca entrar no mesmo rio, pois, como as águas, nós mesmos já somos outros”. Para ser mais claro: dois casos nunca são inteiramente iguais.

Mas, se a identidade absoluta é impossível, precisamos encontrar uma regra segura para, evitando as falsas simetrias, exigirmos a igualdade de tratamento para dois casos de alguma forma semelhantes. Há critérios para isso. Na verdade, como já ensinava Karl N. Llewellyn (no clássico, que faço questão de citar aqui, “The Branble Busch: some Lectures on Law and its Study”, Columbia University School of Law, 1930), há que se atribuir um nível correto ou apropriado de generalidade aos fatos constantes dos dois casos. Eles devem ser considerados, baseado em critérios de generalidade apropriados, como representativos de uma categoria abstrata de fatos. Ao fato é atribuída significância não por si só, mas como membro de uma categoria. Ademais, o critério para o correto grau de extensão dado à generalização deve ter por parâmetro e limite a constatação de não haver razão jurídica que leve à distinção entre os fatos dos dois casos cotejados, caso a se decidir e caso parâmetro, pertencendo ambos, na situação dada, à mesma categoria de fatos.

O problema é que as pessoas, hoje em dia, no afã de criticar (e de esculhambar mesmo) o Poder Judiciário, generalizam tudo, absurdamente, desavergonhadamente. Colocam tudo no mesmo saco. Consideram tudo “o mesmo rio”, sem sequer minimamente ler as águas – ops, os fatos – dos dois casos comparados, tanto especificamente como, em seguida, no devido grau de generalidade. E, na verdade, se lidos/observados os fatos, um caso demanda mesmo condenação; o outro, não. Se alguém, dadas as suas circunstâncias, merece uma “prisão domiciliar”, outrem, por sua vez, pode ser que não. Temos de conhecer/ler o processo/fatos. É o básico do básico. Já dizia a menina Mafalda, do genial Quino (1932-2020), “viver sem ler é perigoso. Te obriga a crer no que te dizem”.

Bom, para evitar falsas simetrias, encerremos sem mais filosofia: dois casos (mesmo que enganosamente parecidos) às vezes são muitíssimo distintos; às vezes, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Quem é Judas: O Teatro da Traição

Todo ano, como um roteiro repetido de má fé, ressurge na cidade a figura do “Judas”. Um personagem criado por um ex-prefeito, que se dizia justiceiro do povo, mas que usava essa encenação para desviar o foco de suas próprias alianças e conveniências.

Mas este ano, o Judas veste Prada.

Circula elegante, polido, articulado — um verdadeiro mestre do verniz. Por trás do verniz refinado, esconde-se alguém sem escrúpulos, capaz de vender a própria mãe e ainda entregar a mercadoria, tudo em nome do poder. A família inteira já colhe os frutos da ascensão. Os bolsos transbordam, e a alegria parece infinita — como num conto de fadas à la Alice no País das Maravilhas. Os dentes, recém-colocados e afiados, estão prontos para dilacerar novas vítimas. Porque Judas não perdoa: por 30 moedas, ele beija, sorri… e trai.

Se apresenta como imaculado, acima de qualquer suspeita, mas já foi reconhecido pelas lentes mais atentas do poder como alguém disposto a trair por conveniência. O tipo de sujeito que sorri para a foto e aperta a mão enquanto afia a lâmina. Dizem que toda cidade tem o Judas que merece. Mas e quando o Judas se fantasia de salvador? E quando o criador da farsa não percebe que acabou virando personagem do próprio engodo?

A pergunta permanece: quem é, hoje, o verdadeiro Judas da cidade?