A passagem secreta

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

A Daunt Books, na região londrina de Marylebone, é uma belíssima livraria. Como comércio de livros, em princípio especializado em literatura de viagem, foi fundada em 1990, por James Daunt, um banqueiro também craque no ramo livresco, que depois foi trabalhar para as gigantes redes Waterstones (do Reino Unido) e Barnes & Noble (dos EUA). A Daunt Books virou uma pequena rede de livrarias, menos de dez no total, das quais eu estou lembrado de conhecer apenas a matriz em Marylebone, por sinal um bairro chique e muito aprazível da capital do Reino Unido. Acho que tenho uma das belas sacolas da rede – chamadas de tote bags –, das quais eles são, justificadamente, muito orgulhosos.

De toda sorte, fui poucas vezes à Daunt Books quando do meu período de estudos em Londres. Não era tão perto dos locais onde morei e, quase sempre, nas minhas vizinhanças, havia opções, digamos, mais convenientes. Mas, desta feita, hospedado por cinco noites no The Cumberland Hotel, nas abas de Marylebone, decidi alegremente me aventurar por esse comércio de livros. A mãe de João tinha ido fazer as compras de estilo na Oxford Street. Eu fiquei com o nosso pequeno. Então, passearia com ele na Marylebone High Street, rua agradabilíssima por sinal, cheia de lojas, restaurantes e gente, levaria ele na livraria e, quem sabe, dando tempo, ainda chegaríamos à estação de trens de Paddington, para ver o famoso urso – sua estátua, na verdade – chamado… Paddington.

O passeio pela Marylebone High Street foi divertidíssimo. Era uma manhã de sol – o que é sempre algo a se comemorar no abril londrino. Ia empurrando o carrinho de João. Ele com suas perguntas, que eu tentava – e ainda tento – responder da melhor forma possível. Olhamos muitas vitrines. Entramos em um par de lojas. Tomei um café. Dei o lanche de João. E chegamos à livraria.

A Daunt Books de Marylebone, que ocupa o prédio de uma antiga livraria da era eduardiana, é mesmo muito bonita. Embora mais simples, o seu interior lembra a famosa Livraria Lello do Porto. O trabalho em madeira escura nas estantes, nas balaustradas do andar superior, nos corrimãos e na escada que dá para o subsolo é realmente digno de nota. Belíssimo. A enorme janela/vitral no fundo da loja é encantadora. O teto envidraçado ilumina a nossa estada. Outrora especializada em livros de viagem, é hoje uma livraria bastante generalista. Seu acervo é bom. Muito melhor do que o da Lello, por sinal. E bem sistematizado. A livraria parece viver cheia. Tinha bastante gente no dia em que estivemos lá. Mas não eram “turistas”, tirando fotos para todos os lados, como no caso do comércio do Porto. Pareciam “locais” e realmente amantes de livros.

Pelo que me recordo, nada comprei. Mas algo deveras inusitado aconteceu. Uma lição, posso dizer. João insistiu em descer a bela escada de madeira, que dava para o andar mais baixo da livraria, onde ele afirmava haver uma passagem secreta. Tirei João do carrinho, que deixei atrapalhando o trânsito no andar térreo, e, carregando o requerente nos braços, nos aventuramos pelo subsolo, onde havia muitos livros, entre eles os de criança. Subimos depois de um tempo. Cheguei a colocar João de volta no carrinho. Mas ele pediu de novo para descer as escadas, com o mesmo argumento de que havia a tal passagem secreta. Desci já com um misto de cansado e encafifado. Demoramos mais um tempo e, para desgosto de João, subimos. Esse desce e sobe se repetiu mais uma vez. Foi aí que eu percebi haver deixado o carrinho de João verdadeiramente impedindo o trânsito dos leitores. Em especial, pedi desculpas a uma mulher que, curvada sobre o carrinho, tentava consultar a prateleira dos livros de filosofia. Envergonhado, colocando a responsabilidade no pequeno, disse: “É a imaginação dele. Insiste que descendo as escadas tem uma passagem secreta”. Ao que ela respondeu: “Mas tem ele razão. Lá está cheio de livros”.

Ainda hoje me pergunto o que João encontrou na sua passagem secreta…

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Sucata musical: mecânico natalense transforma “lixo” em instrumentos

O que para muitos seria sucata ou objeto de descarte, para Glauco é fonte de criatividade. Ao transformar o lixo em arte, o mecânico resgata o potencial do material, agregando novo valor para o que seria perdido. Aliando ao seu amor pela música, Glauco pôde, através da sua criatividade, poder realizar seu sonho de infância de aprender a tocar bateria, com a bateria que ele mesmo criou.

A história de Glauco Rocha com a reciclagem de materiais se deu pela vontade que teve, ainda criança, de aprender a tocar bateria. Sem condições de comprar sua própria bateria, já na juventude Glauco foi desenvolvendo seu próprio arranjo com tambores e baldes para poder dedicar-se ao seu sonho, aperfeiçoando-se com outros materiais até ficar conhecido entre os amigos como o referencial técnico no conserto e na produção dos instrumentos.

“Ainda adolescente eu vi que eu tinha talento para toda essa reforma que faço nos materiais, por isso persisti tanto em dar continuidade. Até porque, é uma coisa que me faz muito bem. Gosto muito de poder dar nova vida aos materiais que vou encontrando”, conta Glauco.

Apesar do amor tão antigo pela música, o encontro de Glauco com o seu ‘Rock N’ Roll’ chegou em sua vida por um acaso. “Minha família sempre gostou de música, isso eu não posso negar. Mas eles sempre foram mais chegados em músicas animadas e dançantes, e eu sempre frequentei com eles esses espaços. Porém, foi apenas quando cheguei em Brasília que eu pude conhecer o Rock e perceber :‘Meu Deus, é isso que eu quero pra mim’”, relembra, com emoção.

Com seu pai militar levando a família a se deslocar pelo Brasil, com seus pais e irmãos, Glauco chegou a Brasília com idade próxima aos 10 anos e, junto à família, pôde desfrutar do cenário musical que estava então nascendo na capital brasileira. “Viver minha juventude em Brasília foi fundamental para eu desenvolver a minha paixão musical e, consequentemente, ser quem eu sou hoje”, reflete Glauco.

Em Brasília, Glauco pôde descobrir o Rock Nacional e aproveitar o desabrochar de bandas como Legião Urbana, Titãs, e Capital Inicial, aproveitando também para imergir no famoso cenário musical dos anos 80. “Iniciei naquela época o meu interesse pelo gênero, e também foi quando passei a gostar de colecionar CDs e Vinis, que continuo até hoje”, conta o baterista.

Mesmo com a participação da sua família na descoberta do novo gênero, Glauco conta que não teve apoio dos pais no seu interesse em aprimorar o seu talento musical, e relembra até mesmo que os pais chegavam a jogar os seus CDs no lixo, para distanciar o adolescente do gênero. Mas, mesmo assim, Glauco não desistiu de sua paixão, e ainda adolescente confeccionou a sua primeira bateria, dando início ao desabrochar do seu talento musical.
“Minha afinidade sempre foi com a bateria e instrumentos de percussão. Já até perdi a conta de quantos instrumentos eu já fiz de lá pra cá, pois nunca fui de ficar guardando. E também sempre que um amigo precisava de algum reparo, era a mim que eles procuravam, pois sabiam que eu, não apenas tinha habilidade, como também sempre tive o interesse de fazer qualquer reparo com perfeição. E isso eu também fui trazendo para o meu trabalho”, conta o mecânico.

Glauco relembra que logo percebeu a necessidade de ter que afastar-se da família e sair da casa dos pais para poder dar seguimento ao seu sonho, dando então início a sua vida profissional. De volta a Natal, ainda adolescente, o jovem fez curso de elétrica no Senai, percebendo que a sua criatividade e habilidade manual se estendiam para além dos instrumentos musicais. “Ainda no curso eu pude perceber que eu tinha interesse para sempre fazer mais e melhor do que aquilo que era proposto. Lá era mais voltado para serviços de elétrica a nível industrial, e nunca foi o que eu queria. Pelo contrário, queria distância do sistema de patrões e coisas do tipo, e sei que essa minha ideologia veio muito das influências musicais que eu tive na minha juventude”, explica Glauco.

Aos 19 anos, após concluir o curso, o mecânico deu início à sua vida profissional já no bairro onde hoje reconhece ser o seu lugar. “Desde o meu primeiro trabalho eu estou aqui na Ribeira e sei que é aqui que eu preciso estar. Foi aqui que comecei a minha vida profissional, que dei continuidade às minhas artes, e que criei a minha família. Já morei no Rio de Janeiro e em Brasília, mas não largo a minha Ribeira por nada”, declara o artista.

Mesmo com a vida profissional iniciada, Glauco não abriu mão de seguir com a sua paixão pela música: continuou a criar baterias e instrumentos de percussão com o material que ia encontrando pelas ruas e oficinas da Ribeira e, ainda jovem, passou a integrar uma banda de rock, onde conseguiu desde então realizar seu desejo antigo de ser baterista.

A decisão de ter a própria oficina aconteceu em 2004

Glauco iniciou a sua própria oficina aos 29 anos, em 2004, e desde então concilia seu trabalho como mecânico com as suas criações. Dos instrumentos expostos na sua oficina, estão desde baterias criadas com tambores de pneu e pratos feitos com fundos de toneis, a até mesmo um carrilhão feito a partir dos canos de alumínios que antes pertenciam a cortadores de grama quebrados que lá foram descartados.

“Onde muitos enxergam lixo, eu vejo o potencial que o material tem. Muitas vezes estou aqui trabalhando e ao descartar um objeto, largar ele em qualquer lugar, escuto o som que fez e já começo a pensar o que posso criar a partir daquilo”, conta. Glauco também utiliza seu talento para criar outros tipos de peças não musicais, como esculturas de bonecos ou animais, a partir de fio de cobre.

Sempre perfeccionista, Glauco percebe que é referência também entre os colegas mecânicos pela sua dedicação para realizar os reparos em máquinas com maestria, chegando até mesmo a criar novas máquinas para realizar o seu próprio trabalho com maior precisão. Mostrando todo o resultado do seu esforço e capacidade, Glauco apresenta o seu torno que, diferente de outros modelos da máquina, realiza os reparos difíceis com uma precisão milimétrica. “Eu iniciei sonhando em poder tocar bateria enquanto tinha dinheiro para comprar apenas a baqueta. Então, poder montar máquinas do zero é de certa forma uma continuidade do meu potencial que eu descobri lá atrás”, lembra o mecânico.

Hoje Glauco é conhecido pelo bairro pelo seu talento em confeccionar os instrumentos musicais com a sucata, e já até costuma receber o material de colegas e catadores que passam pela sua oficina ofertando as peças para serem futuros instrumentos.

Dando continuidade ao talento, o filho de Glauco surpreende o pai com a sua habilidade musical desde os seus 3 anos de idade, e hoje aos 13 anos junta-se aos pais para praticar dentro de casa. “A minha esposa entrou para a minha banda (Discarga Violenta) como baixista, hoje nós três somos apaixonados pela música e até tocamos juntos em casa. A minha família é a minha maior inspiração, são o meu grande suporte e incentivo”, conta.

Agora, sabendo da importância do seu trabalho, Glauco reconhece a influência positiva que as suas peças podem ter para futuros músicos, e tem interesse em expor mais as suas peças em feiras pela cidade. “Já participei de algumas feiras de artesanato, mas sozinho é difícil levar o material todo para algum lugar. Tenho interesse em participar de mais eventos, mas neste momento não posso arcar com o custo que é. Então seguirei aqui produzindo no meu espaço, sempre ativo e criativo”, conclui Glauco.

Gabriela Liberato
Repórter

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