O jurista federal

Amaro Cavalcanti (1849-1922) foi provavelmente o maior dos juristas nascidos na província/estado do Rio Grande do Norte. Muito cedo ele ganhou o mundo. Foi estudar, ensinar e exercer o jornalismo e a advocacia nas províncias do Maranhão e do Ceará. Foi mandado aos Estados Unidos da América para aprender ainda mais. Ali, mais precisamente no estado de New York, cursou e diplomou-se em Direito, habilitando-se ao exercício profissional na famosa Federação. Voltou ao Brasil e não parou mais de prestar serviços ao nosso país. Já residindo no Rio de Janeiro, ainda no Império, foi professor (no Colégio Pedro II), jornalista e advogado. Pelo seu Rio Grande do Norte, já na República, foi vice-Governador, Senador e Deputado Federal. Prestigiado, foi nosso Ministro Plenipotenciário no Paraguai. No governo de Prudente de Morais, foi Ministro da Justiça e Negócios Interiores. Como ministro, chegou ao Supremo Tribunal Federal em 1906, aposentando-se em 1914. Foi prefeito do Distrito Federal (então o território do município do Rio de Janeiro). Foi por muitos anos membro/juiz da Corte Permanente de Arbitragem em Haia. E exerceu ainda o sempre prestigiado cargo de Ministro de Estado da Fazenda. Após uma vida tão profícua, faleceu no belo Rio de Janeiro, onde se acha sepultado.

Segundo nota biográfica no site do Supremo Tribunal Federal, Amaro Cavalcanti é o autor, entre outros, dos seguintes títulos: “A Religião” (1874), “A meus discípulos, polêmica religiosa” (1875); “Livro popular: Miscelânea de conhecimentos úteis” (1879); “Educação elementar nos Estados Unidos da América do Norte” (1883), “Ensino Moral e Religioso nas escolas públicas” (1883); “Notícia cronológica da educação popular no Brasil” (1883), “Meios de desenvolver a instrução primária nos municípios” (1884); “The brazilian language and its agglutination” (1884), “O meio circulante no Brasil” (1888); “Finances (du Brésil)” (1890); “Resenha financeira do ex-Império do Brasil em 1889” (1890), “Reforma Monetária” (1891); “Política e finanças” (1892), “Projeto de Constituição de um estado, com várias notas e conceitos políticos” (1890), “O meio circulante nacional” (1893), “Elementos de finanças” (1896), “Tributação Constitucional, polêmica na Imprensa” (1896), “Regime Federativo e a República Brasileira” (1900), “Breve Relatório sobre Direito das Obrigações, arts. 1011-1227” (1901), “Responsabilidade Civil do Estado” (1905), “Revisão das sentenças dos tribunais estaduais pela Suprema Corte dos Estados Unidos” (1910), “O caso do Conselho Municipal perante o Supremo Tribunal Federal” (1911), “Pan-american questions means looking to the mutual development of american republics” (1913) e “A vida econômica e financeira do Brasil” (1915).

Dessas obras, gostaria de destacar aqui “Regime Federativo e a República Brasileira” (1900), cuja edição que utilizo é de 1983, da Editora Universidade de Brasília, como volume 78 da “Coleção Temas Brasileiros”.

Um clássico das nossas letras jurídicas, escrito no estilo da época, a virada do século XIX para o XX, nele afirma Amaro que, embora tivéssemos adotado na República (1989) o sistema político-administrativo federativo, é coisa sabida que ainda “predomina grande ignorância do mesmo para a maior parte do nosso público. Muitos dos principais atos e assuntos das novas instituições têm sido, muitas vezes, resolvidos ou praticados, podia-se dizer, por simples outiva…”. E era necessário “firmar, enquanto é tempo, a boa regra e doutrina contra certas ideias preconcebidas e a continuação de práticas abusivas, cujos efeitos, não se ignora, já têm assaz contribuído, não só, para apreciações desfavoráveis dos governos, mas ainda, para duvidar-se da própria excelência do regime instituído”.

Assim, o livro de Amaro é o resultado do seu “sincero empenho de concorrer para a satisfação da necessidade apontada”. Possui uma Parte Geral, belo exercício de historiografia jurídica e de direito comparado, estabelecendo uma firme teoria geral sobre a temática, e uma Parte Especial, que trata especificamente da Federação brasileira de então.  

É sobre a primeira parte – “a teoria do regime federativo, tão completa quanto possível nos limites traçados”, servindo-se, para isso, “da melhor lição dos autores, que no estudo da matéria são reputados os mais proficientes e abalizados” –, até porque atemporal, que faremos alguns comentários. Rogo apenas um tico de paciência.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Senhor procurador-geral: Bolsonaro tem o direito de ser processado

Na imagem, o procurador-geral da República, Paulo Gonet.
Por Kakay 19.jul.2024 
“Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.”
–Geraldo Vandré.
O Brasil, realmente, não é para amadores. A repetição sistemática dos escândalos da família e do grupo político do ex-presidente Bolsonaro faz com que todos nós, que pensamos o país, tenhamos que ficar, também, repetitivos.
A divulgação das investigações sobre os crimes cometidos pela trupe se dá de uma maneira em série. Mal dá tempo do cidadão, que quer acompanhar os fatos gravíssimos revelados, aprofundar-se na análise do que é publicado. Parece até que a estratégia bolsonarista é difundir os fatos apurados em série para que o mais recente faça sombra no crime de ontem. Por isso, refiro-me a ele como um serial killer. Muito ruim para o país que tem que se ocupar de outras prioridades.

Neste momento, temos todos que dar valor à independência e à seriedade da Polícia Federal. Uma polícia séria e republicana é muito importante. Especialmente em um país que viveu, muito recentemente, uma tentativa grotesca de manipulação do seu aparato.
Bolsonaro disse, clara e inequivocamente, que queria o controle da Polícia Federal para proteger sua família. Em uma reunião ministerial, ocorrida em 22 de abril de 2020, o então presidente da República, de maneira descarada, disse: “Eu não vou esperar foder minha família toda, de sacanagem, ou amigos meus, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final!”. A fala dispensa comentários.

Dentre outros motivos, só esse já seria o suficiente para a sociedade apoiar e reconhecer a atitude do atual governo no que diz respeito à postura republicana no trato com as instituições. O presidente Lula foi injustamente processado, perseguido, preso e, ainda assim, em nenhum momento, tentou aparelhar a Polícia Federal ou o Ministério Público e o Poder Judiciário. Um comportamento de estadista fez com que, mesmo com sofrimento e enorme certeza da injustiça, o tempo desse razão e mostrasse “quem é quem” na disputa de poder.
O país amadureceu. A operação Lava Jato, braço criminoso dos bolsonaristas e a principal responsável pela eleição de Bolsonaro, foi desmascarada e desmoralizada. Hoje, seus líderes andam pelas tabelas cabisbaixos à espera dos processos que se anunciam.

O Conselho Nacional de Justiça, sob o comando do ministro Salomão, produziu um relatório fortíssimo no qual aponta a possível responsabilidade criminal, por peculato, corrupção e organização criminosa, do ex-juiz Sergio Moro, do seu procurador adestrado, Deltan Dallagnol, e de outros atores da República de Curitiba. Os investigados pelos inúmeros inquéritos na Polícia Federal, inclusive Bolsonaro e sua família, certamente são acometidos por uma angústia profunda que lhes tira o sono e a paz. A simples existência de uma apuração criminal é avassaladora para o investigado.
O investigado tem o direito de ver o Estado acusador promover com a rapidez possível toda a condução do inquérito e da ação penal. Não pode o Estado, com todo seu aparato investigatório e repressivo, levar o processo penal além da conta. É um dever ser técnico, isento e rápido. Em uma República que se respeite, a estrutura do poder não pode nem proteger nem perseguir. Isso é o que delimita os limites de um Estado Democrático de Direito.
Todos nós, numa sociedade civilizada e com formação humanista, devemos lutar por um processo penal democrático e com respeito às regras constitucionais que asseguram os direitos de todos. Inclusive o direito a uma duração razoável de uma investigação e de um processo penal. Bolsonaro e seu grupo mais próximo têm o direito de serem processados de maneira técnica e com responsabilidade. As apurações não podem se perpetuar.

A atual proposta que está tomando corpo em vários setores –a de esperar as eleições municipais para a PGR apresentar as denúncias– contraria frontalmente todos os princípios constitucionais que regem o processo penal. É tentar submeter o Ministério Público a um interesse político. Uma instrumentalização inadmissível da PGR. O argumento, que impressiona os incautos, é o de que uma acusação formalizada antes das eleições municipais daria discurso aos denunciados para posar de vítimas e se dizer perseguidos. Faz parte do jogo político, é um direito deles, mas não cumpre a cartilha democrática do direito processual penal republicano.

Ademais, cabe lembrar que no Brasil existem eleições de 2 em 2 anos. Ou seja, neste ano de 2024 teremos as eleições municipais e, em 2026, serão as estaduais, as federais e a de Presidente da República. Nesse contexto, jamais chegaríamos a um fim em qualquer investigação.
Os valores democráticos que devem pautar a República e os Poderes, evidentemente, não podem estar presos a tais conjecturas. Por paradoxal que possa parecer, o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus auxiliares mais próximos têm o direito de serem processados. Até para poder se defender. Com a palavra, o procurador-geral da República.
Sempre nos lembrando do grande Ruy Barbosa, na sua “Oração aos Moços”: “Justiça atrasada não é Justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”.
www.poder360.com.br

Um americano normal, típico e o guarda da esquina

Donald Trump sofre atentado em comício na Pensilvânia
Donald Trump sofre atentado em comício na Pensilvânia – Foto: reprodução

Por Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay.

“Já vem o peso do mundo
Com suas fortes sentenças.
Sobre a mentira e a verdade
Desabam as mesmas penas.
Apodrecem nas masmorras, juntas,
A culpa e a inocência.”
Poema Romance LI ou das Sentenças, Cecilia Meireles

Em um primeiro momento, foi impossível não pensar no estranho e obscuro episódio da facada em Juiz de Fora. Um  ex-presidente americano, candidato dos Republicanos à Presidência dos  EUA em 2024, exibindo-se como herói, punho fechado, rosto e peito se oferecendo como alvo, apenas 10 segundos após os tiros, com a bandeira americana ao fundo e sendo segurado no alto por seguranças, parecia uma imagem montada de uma propaganda de campanha. Uma facada ianque. Mas o desenrolar das investigações indica que houve sim um atentado. O  atirador, um lobo solitário, errou o alvo e atingiu, de relance, na orelha, o candidato Trump. Acertou, precisamente, a Democracia.

Tudo é assustador nesse episódio. Mas o que mais impressiona, e preocupa, até agora, é a definição do jovem terrorista que atentou contra a vida de um ex-presidente americano. A imprensa o define como um jovem dócil, sem passado de violência, gentil com os amigos, que fez um curso médio com louvor, embora muito jovem, e sem histórico de participação em atividades extremistas. Esse jovem frequentava cursos de tiro. A arma que usou, um fuzil AR-15, foi comprada pela família em uma loja regular que vende armas indiscriminadamente. Ele mantinha em seu carro explosivos, também comprados legalmente, e usava uma camiseta que fazia apologia às armas. Ou seja, um americano médio, normal.

Esse atirador, que foi morto logo após o atentado, era fruto de uma onda de extrema direita que assola o mundo. O ex-presidente, alvejado por ele, sempre desprezou a Democracia. Com recorrência, incita, pública e oficialmente, a violência. Incentivou o ataque ao Capitólio, tentou derrubar a Democracia, falou, aberta e despudoradamente, contra a legalidade das eleições nas quais ele foi derrotado, não aceitou o resultado das urnas eainda apoiou e insuflou o golpe contra o Estado democrático de direito.

Vejam! Estou falando do ex-presidente dos EUA e não do seu seguidor tupiniquim. É nesse ambiente que florescem os “homens de bem”, frequentadores dos cultos em reverência aos deuses estranhos e que, depois, saem fortemente armados para atentar contra a vida, até de um ex-presidente da República.

Esse dramático e grave episódio me remete a outro, também da extrema direita. Em 1968, em meio à sangrenta e cruel Ditadura militar no Brasil, os generais resolveram baixar aquele que seria um dos mais terríveis golpes na Democracia: o AI-5. Conta a história que o então vice-presidente da República, Pedro Aleixo, instado a assinar o ato, negou-se. O General que o procurou argumentou que ele poderia confiar, pois a concentração de poder estaria nas mãos dos generais e que o vice-presidente conhecia bem todos eles. A resposta do Pedro Aleixo se adequa, ainda hoje, à sanha golpista da direita radical: “General, o que me preocupa não são os generais, mas os guardas da esquina”.

Os  terroristas de 8 de janeiro, o bolsonarista que matou o petista no dia do aniversário, o jovem que atirou e acertou a orelha de Trump, todos esses, insuflados pelo ódio e pela violência da extrema direita, são os “guardas da esquina” que atentam contra o Estado democrático de direito.

Remeto-me ao poeta Augusto dos Anjos, no poema Versos Íntimos:

“Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem,que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.”

Fonte: www.ultimosegundo.ig.com.br

O som da história

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Eu tenho certeza de que já falei aqui sobre algumas séries/documentários de TV que foram fundamentais para a minha formação: “Civilização” (“Civilisation”, 1969), “A escalada do homem” (“The Ascent of Man”, 1973), “A era da incerteza” (“The Age of Uncertainty”, 1977) e “Cosmos” (“Cosmos: a Personal Voyage”, 1980). Produzidas pela BBC e pela PBS (apenas no caso de “Cosmos”), essas séries nos apresentam, sob a visão de Kenneth Clark (1903-1983), Jacob Bronowski (1908-1974), John Kenneth Galbraith (1908-2006) e Carl Sagan (1934-1996), a história da humanidade através das artes, das ciências, da economia/sociologia e do universo/cosmos, respectivamente. Assisti-as, lá pelo fim dos anos 1980 e começo dos 90, em companhia do meu pai. Era o tempo de TV aberta e do videocassete. Alteradas as tecnologias e as companhias, não canso de reassisti-las.

Essas séries/documentários têm uma característica em comum. A seus modos expandidas, elas foram transformadas em maravilhosos livros. E isso é bastante curioso, uma vez que, em regra, os livros é que são transformados/adaptados, quase sempre resumidos, para filmes ou séries de TV. Li-os e reli-os – falo dos livros decorrentes das séries nominadas – também inúmeras vezes. E aqui, sendo hoje um homem mais do texto do que da tela, disso canso menos ainda.

O fato é que outro dia, garimpando raridades no sebo Cata Livros (sito na Av. Prudente de Morais, nº 2907, Natal/RN), despretensiosamente caiu em minhas mãos, por apenas 20 reais, mais um livro da preciosa espécie dos acima citados, cujo título é “A música do homem” (“The Music of Man”, no original), cujo autor/protagonista é o grande violinista e maestro Yehudi Menuhin (1916-1999). A série/documentário para a TV, de 1979, foi produzida pela Canadian Broadcasting Corporation/CBC. A edição do livro que possuo, em bom português, é da Martins Fontes e da Editora Fundo Educativo Brasileiro, de 1981. É uma daquelas edições de formato grande, cheia de desenhos e fotografias. Seguramente, porque adaptado da TV, é um livro prazerosamente visual. E está em razoável estado de conservação, asseguro.

No livro, em nota ao leitor, é dito que “A música do homem é a ampliação de uma série de televisão, constituída de oito programas, produzida pela Canadian Broadcasting Corporation. Seu objetivo é levar-nos a melhor conhecer e apreciar o milagre da música e sua influência sobre toda a humanidade, através dos tempos”. Deixa-se ainda claro que “o livro não pretende esgotar a história da música”. Ou muito menos pretende tratar de todo o conhecimento acumulado sobre aquilo de denominamos “música”, termo que, para além de referir-se à arte por todos nós conhecida, designa também a sua ciência. E aqui lembremos do quadrivium ensinado nas escolas gregas: a aritmética, a geometria, a astronomia e… a música. A série/livro “A música do homem” cuida da “evolução da criação musical desde suas origens até hoje” sobretudo “a partir de uma perspectiva histórica e social”, cronologicamente linear, clara e bem definida. É a história de Bach, de Elvis e de tantos outros mitos do passado e do nosso tempo, de suas respectivas obras, do som, do canto, da harmonia e dos instrumentos musicais, é verdade. Mas é também – e sobretudo – uma infinita trilha sonora da história de todos nós.

Estou adorando “A música do homem”. No momento, infelizmente me encaminhando para o final do livro, leio o som da virada do século XIX para o XX, com os seus Debussy, Richard Strauss, Gustav Mahler. Mas já andei até xeretando o YouTube para assistir à respectiva série de TV. E ela está lá, pelo menos os seus três primeiros capítulos. Viajarei nela, também asseguro.

Na verdade, estou gostando tanto da coisa que, outro dia, pretensiosamente, busquei no deveras organizado Seburubu (sito na Av. Deodoro da Fonseca, nº 307, Natal/RN) algo da mesma estirpe: um passeio na história por intermédio de uma arte ou ciência. O proprietário me disse que sabia de uma “história da humanidade através da matemática”. Prometeu encontrá-la para mim. Só não sei se a matemática pura é tão divertida quanto a música. Mas isso aqui faz pouca diferença. O que importa é conhecer os muitos tons da nossa história.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Kakay ‘lamenta’ não estar na lista de espionados da Abin paralela: “Desprestígio”

Considerado um dos maiores advogados criminalistas do país, Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, reagiu com ironia às novas revelações sobre a “Abin paralela”, esquema de espionagem montado dentro da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) durante o governo Bolsonaro, que vieram à tona com a nova operação da Polícia Federal (PF) contra investigados no inquérito. 

Nesta quinta-feira (4), a PF saiu às ruas para deflagrar a 4ª fase da Operação Última Milha no âmbito da investigação da  “Abin Paralela”, estrutura supostamente liderada pelo ex-diretor da Abin, o atual deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), que utilizava um software israelense para espionar desafetos políticos de Bolsonaro, autoridades públicas e até mesmo aliados do ex-presidente. 

No relatório sobre a investigação que baseou a operação desta quinta, a PF traz uma lista uma série de pessoas que foram espionadas pela “Abin paralela” bolsonarista, que inclui desde ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), passando por parlamentares e até mesmo jornalistas. 

Em comentário enviado à Fórum, Kakay reagiu à revelação dos espionados pelo governo Bolsonaro “lamentando” o fato de não constar na lista. 

“O que a Polícia Federal tem que vir a público explicar é a ausência de alguns nomes , que historicamente combateram estes crápulas, na lista dos grampeados e perseguidos pela organização criminosa. Sinto que o fato do meu nome não estar nesta lista é um sinal grave de desprestígio e só posso imaginar que houve manipulação. Não estar nesta lista é uma mancha na minha vida contra o árbitro e o fascismo”, brinca o criminalista. 

“Terei que peticionar para ter acesso a todos os que foram investigados e , se meu nome não constar na lista, penso ser o caso de propor uma indenização por dano moral”, prossegue Kakay em sua ironia. 

Modus operandi

O advogado Kakay afirma que “não há nenhuma surpresa na revelação de que o gabinete do ódio, coordenado pela família do ex-presidente e por alguns asseclas, monitorava e perseguia adversários políticos, jornalistas e intelectuais”. 

“O uso de informações obtidas de maneira criminosa sempre foi o modus operandi desta organização criminosa que chegou ao poder, em boa parte exatamente por este uso inescrupuloso e pelas mentiras usadas sem nenhum pudor. O governo Bolsonaro sempre foi lastreado na estratégia deliberada das fake news”, analisa o criminalista. 

Entenda o caso da ‘Abin paralela’

A Polícia Federal investiga a chamada “Abin Paralela”, um esquema suspeito de utilizar a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) para espionagem ilegal e monitoramento político durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. As investigações foram desencadeadas após denúncias de que a Abin teria sido instrumentalizada para fins políticos e de espionagem pessoal.

As investigações começaram em 2023, no âmbito das operações “Última Milha” e “Vigilância Aproximada”. A PF descobriu que a Abin utilizou um software espião chamado First Mile, desenvolvido pela empresa israelense Cognyte, para monitorar ilegalmente diversas pessoas, incluindo políticos, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e outras figuras públicas.

A principal acusação é que a Abin foi utilizada para proteger aliados do governo Bolsonaro e monitorar adversários políticos. Entre os monitorados estavam o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, a ex-deputada Joice Hasselmann, e os ministros do STF, Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes. Além disso, foi identificado que a promotora do caso Marielle Franco também foi alvo de monitoramento ilegal.

Até o momento, dois agentes da Abin foram presos e cinco dirigentes da agência foram afastados. Alexandre Ramagem, que foi diretor da Abin durante a gestão Bolsonaro e é próximo da família do ex-presidente, está entre os principais investigados. Ramagem teria coordenado a utilização do software espião para fins ilícitos e chegou a ser alvo de busca e apreensão da PF. Mandados de busca e apreensão também foram realizados em propriedades ligadas a Carlos Bolsonaro, filho do ex-presidente.

A investigação da PF revelou mais de 60 mil consultas feitas pelo software First Mile, muitas delas durante o período eleitoral de 2020. Essa quantidade significativa de consultas levanta suspeitas sobre o uso da Abin para influenciar processos políticos e eleitorais, intensificando as preocupações sobre a integridade das instituições democráticas durante o governo Bolsonaro.

www.revistaforum.com.br

Conviver, arte delicada

Padre João Medeiros Filho

Atualmente, o desrespeito e a agressividade nas relações entre as pessoas são frequentes. Aumenta a dificuldade ou inabilidade em saber conviver. Muitos sequer se apercebem disso. Um olhar pelas ruas de nossas cidades é o suficiente para presenciar flagrantes, que evidenciam a impressionante incapacidade de se desfrutar de uma vida social saudável. Parece que se abriu mão de muitos avanços positivos da civilização. E no tocante ao relacionamento humano, tem-se, não raro, a impressão do retorno à idade da pedra. A deterioração do tecido e relacionamento social chegou ao nível em que uma pessoa polida e urbana se torna uma joia rara, suscitando por vezes desconfiança ou escárnio. Noções básicas de polidez e civilidade parecem ter sido esquecidas e abolidas. A gentileza assume ares de fraqueza, exibicionismo ou esnobação.

O Papa Francisco afirmou em uma de suas alocuções: “As coisas estão se invertendo cada vez mais. O feminismo saudável está se transformando num machismo de saia, relegando a um segundo plano a grandeza da mulher e sindicalizando a dignidade feminina.” Para muitos, ser gentil e solidário denuncia insegurança ou carência de aceitação comunitária. A noção de coletividade e pertença a um grupo – em que os direitos de outrem devem ser observados – virou uma metáfora pejorativa. A Ética tornou-se algo ultrapassado e sem espaço no mundo hodierno. As pessoas ignoram o seu significado e importância. Egoísmo, impaciência, intolerância, grosseria, radicalismo e arrogância passaram a dar o tom no dia-a-dia. “Honrai a todos. Aos irmãos amai; a Deus temei” (1Pd 2,17), aconselhava o apóstolo Pedro.

Tudo isso tem suas causas. As condições educacionais, o desprezo e abandono da axiologia, a repulsa dos valores morais, como o escárnio pelo respeito, a ausência de prática religiosa (seja qual for), no parâmetro de vida, estão destruindo nossas tradições e hospitalidade. A educação tradicional foi substituída por uma lamentável permissividade. O que se constata hoje é a consequência dessa mudança imbuída da insanidade pela qual o mundo enveredou. Como pode se comportar um jovem criado sem limites e carente de preparo emocional e psíquico? Chegando à vida adulta, enfrentará uma sociedade altamente competitiva, escravizada pelo consumismo desenfreado, pela incontida fome de lucro, injustiça, corrupção, violência e por um culto mórbido à aparência física e social. Vive-se no mundo do descarte ao respeito, do culto ao ter, poder, prazer e aparecer. Isto é facilmente verificável em vários segmentos da vida pública. Noções e modos comezinhos do conviver são ignorados. O uso hipócrita das formas oficiais de tratamento, mesuras e rapapés não ofuscam essa degradação. Não se deve confundir autenticidade, convicção ideológica ou discordância de ideias com insultos, impropérios, baixarias e agressões. Projetos e conveniências pessoais ou partidárias nem sempre visam ao bem-estar coletivo.

Muitos concordam que a educação permissiva fracassou e o antigo modelo também se revelou inadequado. Na verdade, o atual sistema educacional tem se mostrado aquém do almejado. A ênfase dada por algumas instituições de ensino é centrada no Exame Nacional do Ensino Médio (ou o equivalente), como se o futuro do ser humano se restringisse apenas ao mercado de trabalho ou à profissão. A escola prioriza a transmissão de muitas informações e subestima relevantes postulados humanos, desencadeando a fácil tentação da ideologização. O ensino superior propõe-se a preparar profissionais, esquecendo o cidadão e a família. Faltam líderes com exemplos e testemunhos de vida.

“É preciso humanizar o homem” insistia Jacques Maritain, em sua obra “O humanismo integral”. E Charles Chaplin reiterava: “Sois homens e não máquinas.” É preciso incentivar noções claras de uma cordial convivência em sociedade. Isto pode soar aos ouvidos de vários como algo inútil e obsoleto. No entanto, é uma reivindicação imprescindível. Não lograram grande êxito os métodos rígidos, excessos de lições de moral. Tampouco cabe o laxismo. É fundamental que reine o respeito entre todos. O cristianismo tem a missão de aprimorar o ser humano. Assim nos ensina a Sagrada Escritura: “Ninguém agrida, desrespeite, desconsidere e oprima o seu próximo. Somente Eu estou acima de vós e sou o vosso Deus” (Lv 25, 17).

O gosto

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

O “gosto” é algo complicado. “Tem gosto pra tudo”, afirma o ditado popular; “(…), cada um tem o seu”, encerra um dito ainda mais enfático e escrachado. Essa sabença geral é confirmada pelos especialistas em estética. Virgil C. Aldrich, no seu “Filosofia da arte” (Zahar Editores, 1976), lembra que, “ao falar sobre obras de arte [e, aqui, eu incluo realizações da literatura, da música, das artes plásticas, da arquitetura e por aí vai], as pessoas frequentemente dizem que gostam mais de uma do que de outra ou, então, que simplesmente não podem suportá-las”. E Jean Lacoste chega mesmo a ter, como um dos tópicos do seu livro “A filosofia da arte” (Jorge Zahar Editor, 1986), “o gosto como problema”. Acho que é por aí mesmo – e quem sou eu para contestar o povo e os doutos?

De toda sorte, sempre me pareceu que podemos enxergar certos consensos sobre algumas coisas. O convencionalismo é uma grande arma para enfrentarmos a inconsistência do gosto e apontarmos o que é “belo”. Um desses consensos é a cidade de Paris, no caso sua arquitetura/ambiência, de modo geral glamorosa. Eu acho Paris bela. Você provavelmente também acha. E algo entre meio mundo e mundo e meio concorda conosco.

Paris, ouso dizer, é belíssima. A Torre Eiffel, o Arco do Triunfo, a Avenida dos Campos Elísios, a Ópera, os Inválidos, o Museu do Louvre, o rio Sena, a Catedral de Notre Dame, o Jardim de Luxemburgo, os grandes bulevares, as ruelas do Marais, de Saint-Germain-des-Près e do Quartier Latin, a boemia de Montmartre e a Sacré-Cœur, os muitíssimos cafés da cidade… etc. etc. etc. Até a cor de Paris encanta: de dia, nos seus prédios, um tom bege que a tudo predomina; à noite, uma Cidade Luz, iluminada e iluminista. Paris é excitante como sentenciou Hemingway: “Se, na juventude, você teve a sorte de viver na cidade de Paris, ela o acompanhará sempre até ao fim da sua vida, vá você para onde for, porque Paris é uma festa móvel”. E Paris é, e talvez sobretudo, romântica.

Foi por causa da reconhecida beleza romântica de Paris que ficamos preocupados com o causo de um primo muitíssimo querido. Há alguns anos ele foi para Paris em lua de mel. Viagem dos sonhos de qualquer casal. Passear de mãos dadas à beira do Sena, tomar um vinho nacional, namorar à luz de velas e de Paris, isso é muitíssimo mais do que muito para qualquer par de amantes. Imaginem para os recém-casados. Mas a mulher do meu primo não gostou de Paris, “definitivamente”, nos disse. Detestou talvez seja um qualificativo forte. Mas foi algo próximo daí. Separaram-se pouco tempo depois. Ficamos sem entender. E aqui me refiro ao “desgosto” de Paris.

Entretanto, outro dia, para além das complexas lições dadas pela filosofia sobre o problema do “gosto”, encontrei uma explicação até plausível – assim pelo menos eu quero crer – para os padecimentos parisienses do meu querido primo.

Há algumas semanas, quando voltamos da França em viagem familiar, meu pai perguntou ao nosso pequeno João o que ele tinha mais gostado de Paris. Eu estava na hora e esperava que João dissesse a Torre Eiffel (vi a empolgação dele embaixo daquele colosso de ferro onde estivemos duas vezes) ou a Euro Disney (por motivos óbvios). Mas ele disse os “esgotos”. Isso mesmo: os esgotos de Paris, embora aqui devamos ler o “Museu dos Esgotos de Paris” (Musée des Égouts de Paris), que visitamos, por promessa minha e exigência dele, numa malcheirosa, mas divertidíssima, tarde ao derredor do Sena.

É isso. Eles – o outrora casal de primos – apenas não foram na Paris certa. Pelo menos é isso que eu agora gosto de crer. E gosto… Bom, cada um tem o seu.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL