A arquitetura jurídica (I)

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Os edifícios do Poder Judiciário são cheios de significados para a nossa compreensão do direito e da justiça. A própria ideia de edificar é um ato de poder. Significa o poder estatal e a relevância específica da atividade judicante. É uma arquitetura que se impõe e mesmo constrange. Ela visa tanto relembrar, rememorar, evocar e enaltecer como também instruir e inspirar. Ela busca conferir solenidade, dignidade, respeito e prestígio aos atos e às decisões ali proferidas. E muitos desses edifícios são também grandiosos, às vezes suntuosos, feitos para impressionar, admoestar, intimidar e até mesmo amedrontar.

Eduardo C. B. Bittar, em “Semiótica, Direito & Arte: entre teoria de justiça e teoria do direito” (Almedina, 2020), anota que essa “linguagem arquitetônica permite conferir dignidade e solenidade às decisões da justiça. Por isso, geralmente, a linguagem arquitetônica se vale do ornamento, da solenidade e da massa, além de uma decoração ostentatória para demonstrar a solenidade e a seletividade do ambiente de justiça, como demonstra o ensaio de Piyel Haldar na obra intitulada Law and the Image, de Costas Douzinas. Ora, o que se faz num Palácio de Justiça não é arbitrário, possui uma história e dá continuidade ao curso da civilização, desde o seu protótipo-fundador. É aí que o Palácio de Justiça revela uma forte investidura simbólica, que traduz, como afirma o sociólogo francês Antoine Garapon, três experiências fundamentais: a de um espaço separado, a de um lugar sagrado, a de um percurso iniciático”. Com efeito, “todas as ‘marcas’ simbólicas – em separado, e diferentes dos demais espaços sociais – fazem do espaço judiciário este lugar especial para as coisas da justiça, (…) na medida em que seu oposto é o reino da violência, da barbárie e da desordem”. E se é de dentro desses palácios que saem as sagradas ordens da justiça para cumprimento por todos que estão no espaço exterior, isso justificaria o investimento orçamentário-estético-simbólico feito nos edifícios.

Um exemplo típico dessa arquitetura, dessa carga simbólica, está no Palais de Justice de Paris, sito no 1º arrondissement da capital francesa, na Île de la Cité. Sua localização, no coração da Cidade Luz, já o torna um edifício icônico. Verdadeiramente “um lugar excepcional”, como afirma François Christian Semur, em “Palais de justice de France: des anciens parlements aux cités judiciaries moderndes” (L’àpart éditions, 2012).

O Palais de Justice de Paris é um complexo de edifícios construídos e reconstruídos ao longo da história da França. Sua origem está no Palais de la Cité, que foi residência e sede de poder dos reis da França, do século X ao XIV e do qual permanecem belos vestígios, como a Conciergerie e a Sainte Chapelle. Foi a casa de Felipe Augusto e de São Luís. E quando Carlos V transferiu a residência real, as instituições da justiça ali permaneceram. O Palais de Justice foi assumindo uma nova dimensão política, especialmente após a Revolução Francesa (1789). Hoje, o Estado Francês busca reforçar a atratividade cultural e turística da Île de la Cité. E o Palais de Justice, devidamente embelezado, tem um papel central nessa empreitada.

A fachada que domina a Cour du Mai, entrada principal do Palais de Justice de Paris, possui em estilo neoclássico com uma imponente colunata. E está encimada com signos verbais que evocam as tradições posteriores à Revolução Francesa (1789): Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Essa simbologia é muitíssimo importante. Significa a regeneração da ordem social, a legalidade, a legitimidade e, sobretudo, a expressão de um novo poder.

No cidadão, a simbologia da arquitetura jurídica atua para além do nível racional. Afeta inconscientemente os nossos sentidos: o tato, a audição e, sobretudo, no que toca à grandiosidade externa dos edifícios, a visão. Entretanto, como ensina C. B. Bittar, é “interessante notar que os elementos arquitetônicos do espaço judiciário serão, não raro, investidos de muita força simbólica, seja do lado externo, seja do lado interno, da construção arquitetônica”.

E é tratando da imersão dentro de um palácio de justiça, uma experiência interna, que continuaremos, na semana vindoura, esse nosso papo sobre a arquitetura jurídica.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Café de Flore, Les Deux Magots, a baguete e o espírito olímpico

mesa posta no Café de Flore, em Saint-Germain, Paris, França
Na imagem, mesa posta no Café de Flore, em Paris.
Por Kakay
“O almoço mata a metade de Paris, o jantar a outra metade.” –Montesquieu

Anos atrás, fiz análise com o psicanalista Eric Laurent, em Paris. As sessões não tinham hora certa e, como saía do Brasil para encontrá-lo, ele me atendia, ocasionalmente, até 2 vezes por dia. Se eu ficasse uma semana em Paris, era como ter um intensivo de terapia.

Os pacientes eram todos psiquiatras, eu era a exceção. Até a sala de espera era interessante. Porém, o que me fazia um bem danado eram as caminhadas no Jardin des Tuileries depois de cada sessão. O consultório ficava em uma rua ao lado do Louvre e andar pelo jardim do museu era como a continuidade da sessão de terapia.

Conservei esse hábito e, sempre que estou em Paris, corro sozinho pelo jardim que era uma extensão do consultório. Depois de um certo tempo, dei-me alta, mas continuei a pensar na vida ali, ao ar livre, no mesmo jardim, seja no frio do inverno ou no calor, como agora neste verão. Viver as Olimpíadas em Paris foi uma experiência muito rica e interessante. Especialmente constatar as intervenções que foram feitas na cidade. Uma ousadia da prefeita e do comitê que organizou as provas. Para quem ama Paris, e a considera como a cidade mais linda do mundo, a expectativa era muito grande.

Foi incrível ver o campo de vôlei de areia incrustado abaixo da Torre Eiffel. Quando à noite ela piscava, toda iluminada, era como se fosse um sonho. Parecia uma montagem de tão impactante. E foi extraordinária a coragem de fazer uma prova no Sena, sem falar na cerimônia de abertura que ocupou as pontes e as margens do rio.

O medo de um atentado fez, corretamente, com que a região fosse toda isolada e cercada. Assim como eram montadas estruturas de acordo com cada prova de rua, especialmente as corridas. Claro que várias delas eram fixas, como na Place de la Concorde, ou no Les Invalides, mas outras obedeciam ao fluxo das provas.

A cidade se vestiu para receber as competições e, mesmo com o incrível aparato de segurança, com um número enorme de soldados fortemente armados, com dezenas de viaturas andando ao lado de centenas de motos, todas com sirenes ligadas, o sentimento de bem-estar e segurança era muito grande, uma tranquilidade.

Quem apostou no caos, perdeu! O espírito olímpico desfilou pelas águas turvas e voluptuosas do Sena e se esgueirou pelas pequenas ruas, jardins, parques e boulevards. Para nós, turistas, era uma beleza ter os cafés, os restaurantes e os museus vazios. Ver o Louvre sem nenhuma fila dava uma sensação de montagem, mas, felizmente, era real.

“Paris, rosa magnética, antiga obra de aranha, estava ali, prateada, entre o tempo do rio que caminha e o tempo ajoelhado de Notre Dame: uma colmeia de mel errante, uma cidade da família humana.” (Pablo Neruda, Paris, 1927).

Sempre achei os franceses muito simpáticos e os parisienses charmosos. Não deve ser fácil morar em um lugar que recebe 90 milhões de turistas todos os anos e de todas as partes do mundo. Da varanda do meu apartamento, debruçada sobre o Café de Flore, acompanho milhares de turistas tirando fotos dessa verdadeira instituição local.

Os cafés são a cara e até a identidade da cidade. E existe uma certa rivalidade existencial entre o Flore e o Les Deux Magots. Separados por uma pequena rua, Saint Benoit, eles disputam, aparentemente, a preferência dos locais e dos turistas.

Eu vou diariamente ao Café de Flore e, reconheço, o Les Deux Magots não é muito minha praia. Mas, em uma madrugada, presenciei uma cena que comprova o que eu penso sobre a simpatia dos parisienses.
Enquanto tomava meu penúltimo copo de vinho, sentado no Flore, com um livro prestes a terminar, vejo entrar, rapidamente, uma garçonete do Les Deux Magots –que eu conheço de vista, pois passo várias vezes ao dia na frente desse café que é vizinho à entrada do meu apartamento. Curioso, prestei atenção na cena.
A moça foi até um garçom do Flore e pediu uma baguete, explicando que tinham acabado as do Les Deux Magots. Para os mal-humorados que implicam com os franceses e que alimentam uma falsa rivalidade entre os cafés, entre os parisienses e os turistas, foi interessante ver a simpatia com que a garçonete voltou ao Les Deux Magots com a baguete do Café de Flore. São as surpresas que, quem olha Paris com olhos amorosos, pode ver acontecer.
Durante o período das Olimpíadas, fizemos uma opção de quase não sair do bairro de Saint Germain, pela facilidade de andar a pé e evitar algum bloqueio. Como é um bairro literário e boêmio, o que não faltam são bons restaurantes, cafés e livrarias. Ver o mundo passar, indolentemente, em frente a um café é um programa obrigatório em Paris. Nessas horas, o convívio com a vizinhança nos faz quase esquecer que estamos em uma cidade grande.
Lembro-me que, quando compramos o apartamento e fomos reformá-lo, recebemos uma notificação amigável do Les Deux Magots informando que existia um vazamento no meu apartamento e que era no café que a água escorria. Naquele dia, senti-me quase um francês. Meses depois, ao inaugurar o apartamento, notei que havia várias placas no interior do meu prédio com nome do vizinho com a indicação: “avocat au Cour” (“advogado no tribunal”, em português). Não tive dúvida, mandei fazer duas placas: “Kakay, avocat au Flore” (“Kakay, advogado do Flore”, em português). O síndico me notificou para eu explicar a placa. Respondi que era no Café de Flore que eu trabalhava, lia, escrevia e recebia cliente. Aí, me senti realmente francês, quase parisiense. Como disse Gustave Flaubert: “A cidade mais bela do mundo é a que mais nos emociona”.
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A política e as Olimpíadas

Kakay
As Olimpíadas são um momento único na história do esporte e da política. Os sinais são postos de maneira sub-reptícia e, também, absolutamente explícita. É um jogo insinuoso de poder e charme. Os jogos no Brasil, em 3 a 21 de agosto de 2016, aconteceram num momento em que o país estava completamente dividido. A Paraolimpíada, de 7 a 18 de setembro.
Ocorre que a ex-presidente Dilma, legitimamente eleita para presidir o Brasil, havia sido afastada pelo Senado Federal em 12 de maio daquele ano. Era um impeachment claramente golpista encetado pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, pois era óbvio que não havia crime. O impeachment é um processo político-jurídico, no qual o Congresso decide politicamente, mas, é óbvio, tem que ter havido crime de responsabilidade. Sem crime, é golpe. Simples assim. O Senado Federal concluiu, em 31 de agosto, por 61 votos favoráveis e 20 contrários, pela destituição, criminosa e golpista, da Presidente que havia sido eleita.
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O país recebeu as competições com um presidente constrangido em exercício e uma presidente afastada por não ter cedido às extorsões do grupo que depois restou preso e processado. Ela seguiu cassada, mas digna.
Era um momento de muita tensão. Interessava à grande mídia e à esmagadora maioria da elite mostrar um fracasso nas Olimpíadas. Mas a força do esporte é algo quase sobrenatural. Os Jogos foram um sucesso. Por sorte, o prefeito do Rio era o Eduardo Paes. Sempre digo a ele que ele nasceu para ser prefeito do Rio. O cargo parece ter sido feito sob medida. Só de não ser o responsável direto pela segurança pública do estado do Rio, já é uma sorte. O Rio, mesmo com toda a turbulência e má vontade política, fez uma Olimpíada para a história. O legado das construções e edificações, que infelizmente não cumpriu o papel republicano, não deve ser colocado na conta da competição. É o vício político maldito. É na nossa conta, dos eleitores, que isso deve ser debitado.
Lembro-me que ousei propor ao Roberto Carlos uma atitude que, para mim, seria histórica, para ele realizar quando da abertura das Paraolimpíadas. O hino nacional iria ser tocado pelo nosso maestro maior, João Carlos Martins, e o Seu Jorge iria cantar “É preciso saber viver”, do Roberto e Erasmo. Imaginei o Roberto Carlos subindo ao palco e, em um gesto de extrema importância para todos os que têm qualquer condição física especial – eu sou cego de um olho -, ele mostraria, em público, para 1 bilhão de telespectadores ao redor do mundo, sua perna mecânica, fruto de um dramático acidente de trem na infância. Como advogado e amigo do Rei, sei o quanto ele ter assumido ter ‘TOC’ foi importante para o enfrentamento da doença no Brasil. Tenho o registro de médicos e psicólogos. Imagine um gesto dessa magnitude. Iria marcar as Paraolímpicas para todo o sempre. Seria um ouro olímpico.
Acompanhei, de perto, as Olimpíadas de Paris. Fui a inúmeros jogos e eventos e constatei a torcida da extrema direita para algo dar errado. É verdade que a cidade teve que parar no início dos Jogos. A estrutura de segurança exigia isso. Era um policiamento muito ostensivo e o barulho das sirenes em intermináveis grupos de viaturas chegava a assustar. No início, os bloqueios nas ruas incomodavam, mas, quem estava no espírito olímpico, compreendia.
Assim que terminou, foi bonito ver a cidade orgulhosa voltar à leveza natural parisiense. Os cafés, antes vazios, voltando a ter filas, assim como os restaurantes, livrarias e museus. O francês, que havia saído de férias, retornando e se gabando da beleza incomparável da cidade.
Mesmo com as dificuldades de uma megaolimpíada, como a ostentação triste e opressiva dos jogadores americanos de basquete, que optaram por um hotel 5 estrelas e não pela Vila Olímpica, a cara daquele país. Ou o terrível e desleal empurrão da corredora da Etiópia na atleta holandesa, nos metros finais da prova mais simbólica, a maratona, que, graças a Deus, não tirou dela o ouro olímpico. Nada tisnou o brilho da dimensão do espírito olímpico.
No caso brasileiro, fica o registro da importância da Bolsa Atleta, instituída no primeiro governo Lula. Neste ano, 241 atletas foram contemplados, 87,3% dos atletas. Quando for 100%, em um país desigual como o nosso, o pódio ficará mais perto.
Por fim, sempre importante rememorar o destacado desempenho feminino da equipe olímpica brasileira. Essas mulheres de ouro mostraram que estamos a superar o obscurantismo e atraso do machismo bizarro disseminado pelo Bolsonarismo.
Remeto-me a Mario Quintana, no poema Das Utopias:
“Se as coisas são inatingíveis … ora!
Não é motivo para não querê-las …
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay
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Ministro Flávio Dino diz que o “crime” de Alexandre é “cumprir com seu dever”. Por Kakay

Flávio Dino e Alexandre de Moraes, ministros do STF. Reprodução

Impressiona a capacidade de grupos golpistas de resistirem às investigações que estão sendo iniciadas para manter o Estado Democrático de Direito. A versão apresentada por parte das viúvas da Lava Jato e por pessoas interessadas em desestabilizar o Judiciário e, especialmente, o Supremo Tribunal, deixa claro que o jogo é pesado e que o que está em pauta é a democracia.

A postura adotada por certa imprensa demonstra uma enorme desinformação ou um interesse claro em atingir o Ministro Alexandre de Moraes e o que ele representa. As matérias parecem esquecer, propositalmente, que o Ministro Alexandre, além de ser Ministro do Supremo Tribunal Federal, acumula o cargo de Ministro do Tribunal Superior Eleitoral e, como tal, tem o poder de polícia e o dever de agir frente a ações que se mostram irregulares ou criminosas.

Como Presidente do TSE, o Ministro Alexandre tinha o dever de determinar que sua assessoria realizasse relatórios sobre possíveis irregularidades. Em seguida, o Ministro encaminhava os relatórios ao Supremo Tribunal Federal, ao Procurador-Geral da República e à Polícia Federal, se fosse o caso, para aprofundar as investigações. Tudo regular. Tudo legal. Tudo em nome do Estado Democrático de Direito.

É importante ressaltar que todos os relatórios foram devidamente documentados. Só a má-fé ou uma postura golpista justifica a vergonhosa comparação da atitude do Ministro Alexandre com os crimes cometidos pela República de Curitiba. Sem dúvida, o ex-juiz Moro agiu em conluio com os procuradores da República, chefiados por Deltan Dallagnol, instrumentalizando o Judiciário e o Ministério Público com vistas a um projeto de poder. Segundo o relatório do CNJ, cometeram diversos crimes, como corrupção, peculato e organização criminosa.

O advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, Kakay, na tribuna do STF. Reprodução

A comparação entre os atos tomados pelo Ministro Alexandre de Moraes e o bando de Curitiba é desleal e criminosa. O Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Luís Roberto Barroso, fez um firme e importante pronunciamento demonstrando a absoluta legalidade das ações do Ministro Alexandre. Urge ressaltar que as conversas e mensagens trocadas entre assessores do Ministro, para chegar a um termo final nos despachos e decisões, fazem parte do dia a dia dos Tribunais.

Advogo no Supremo Tribunal Federal há 40 anos e os gabinetes trabalham exatamente assim. O Ministro toma uma decisão, comunica aos assessores e juízes auxiliares, e determina que a equipe faça uma proposta de decisão. Posteriormente, o Ministro aprova ou não, com 100% de liberdade para propor, mudar, acrescentar ou cortar. É assim que funciona.

É importante ressaltar que a demora da Procuradoria-Geral da República em denunciar os verdadeiros responsáveis pela tentativa de golpe em 8 de janeiro, incluindo os grandes financiadores, os políticos, os militares de alto escalão, e Bolsonaro e seu grupo, é, certamente, uma das causas da instabilidade política e institucional do país.

Estes responsáveis pela tentativa de romper o Estado Democrático de Direito veem que mais de 300 pretendentes a terroristas estão presos e condenados a penas de até 18 anos. Sabem que serão condenados a penas próximas de 25, 30 anos. Estão, naturalmente, desesperados. E alimentam fantasias golpistas. Eles têm o direito de serem processados para tentar provar sua inocência. E para acabar com a lenta e profunda agonia da espera. A democracia e a estabilidade institucional agradecem.

Como ensinou Clarice Lispector, “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”.

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Os contos

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Sob o ponto de vista da extensão do texto, numa ordem decrescente, a ficção em prosa é classificada em romance, novela e conto. Longe de ser arbitrária, essa classificação tem sua razão de ser, pois, entre outras coisas, os recursos imaginativos do escritor e a própria formatação da narrativa dependem muito do estilo/subgênero em que se deseja escrever.

Como explica Alan Wall, em “Writing Fiction” (Collins, 2007), “a mais óbvia diferença entre o romance e o conto é a extensão/tamanho. O romance é algo muito mais longo, e todas as outras diferenças decorrem desse fato. A maior extensão permite uma variedade de vozes, retratos detalhados de diferentes vidas; ela permite uma ambientação variada, com a descrição dos locais e de suas populações. A narrativa pode acelerar ou diminuir de velocidade, pode ter longas seções meditativas, em que nada acontece com exceção da descrição das inúmeras reflexões. Por isso o romance é talvez a mais flexível forma literária já inventada”. A novela, basicamente, fica no meio do caminho, no que toca a tamanho e características, entre o romance e o conto.

Quanto ao conto, os especialistas ensinam o que dá forma e conteúdo a um texto de excelência: partir de um fragmento da vida ou de uma história; daí retornar a um tema universal; apresentar uma mínima biografia das personagens; sugerir mais do que contar; ter um narrador irreal, num monólogo, ou ter um diálogo, com duas visões de mundo; ter um mistério a ser decifrado; apresentar um caso sobrenatural com a exploração do suspense ou do terror; sugerir uma estória de amor, em regra não realizado; e, ao final, ter uma epifania. Edgar Alan Poe, Guy de Maupassant, Anton Tchecov, Ernest Hemingway, Flannery O’Connor, Jorge Luis Borges e o nosso Machado de Assis, entre outros gigantes, foram os “craques do jogo”.

Embora o romance ainda seja o subgênero narrativo ficcional mais glamouroso, o conto é um meio de expressão narrativa sobremaneira ajustado ao mundo “líquido” atual, certamente bem mais fragmentado do que o mundo/vida de outrora. O já citado Alan Wall lembra mesmo que “as estórias da modernidade são frequentemente fragmentadas: isso porque a própria modernidade é fragmentada. A vida moderna, ela mesma, não se nos apresenta num todo contínuo. Ela é comumente uma montagem de fragmentos desconectados”. Na roda-viva de hoje, a ficção em forma de conto é uma dádiva tanto para o escritor como para o leitor. A duração de sua leitura, bem menor que a de um romance, é o suficiente para gostarmos da estória sem cansarmos. É um mundo em miniatura para se viver, com começo, meio e fim.

É nesse contexto agitado que me caiu em mãos o livro “Contos do Tirol” (Sarau das Letras, 2024), do prolífico escritor mossoroense David de Medeiros Leite, que é professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e Mestre e Doutor em Direito pela Universidade de Salamanca (USAL) – Espanha. Li-o de uma tirada. Adorei. E desejo recomendá-lo por aqui.

As estórias de “Aurora”, “Tatuagem”, “Húmus de minhoca”, “Medo de dedo”, “Dahora”, “Unhas roídas”, “Fim do mundo”, “Reencontro”, “O colecionador de guarda-chuvas”, que compõem os “Contos do Tirol”, seja na voz de um narrador imaginário ou nos seus diálogos, retornando a temas universais, têm amores não realizados, um tico de pornografia, psicologia, suspense e, claro, várias epifanias. Identifiquei-me, inclusive, com algumas dessas estórias.

Sophie King, em “How to Write Short Stories” (How To Books, 2010), ensina que “escrever contos é tanto uma ciência como uma arte”. Pois David de Medeiros Leite, professor doutor e fino escritor, em “Contos do Tirol”, misturou muito bem essas duas sabenças.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Paris outra vez

café em Paris
Na imagem, um casal sentado em um café, em Paris.
Por Kakay.
“Há uma atmosfera de esforço espiritual em Paris. Nenhuma outra cidade tem isso.”

–James Joyce.

Alguns anos atrás, fui convidado por amigos para ir a um jantar em Paris. Ao chegar no restaurante, reservaram-me uma cadeira entre um ex-ministro do Supremo Tribunal e um professor da Sorbonne. Embora eu fosse um crítico público do ex-ministro, gosto dele e, claro, respeito a cadeira que ocupou. No meio da conversa, o professor francês resolve perguntar, aproveitando a presença de um ex-integrante da Corte e de um advogado acostumado a atuar no STF, o que nós achávamos da importância da sustentação oral. Uma pergunta cada vez mais atual.

O ex-ministro resolveu me alfinetar:
“Professor, alguns advogados, como o Kakay, gostam da tribuna e pensam que tem importância. Na realidade, os votos já vão prontos para a sessão e a sustentação não vale nada”.
Certo constrangimento por parte do docente não impediu que eu respondesse:
“Mestre, depende muito do julgador. Se for um ministro preparado, independente, sério e que sabe escutar –o julgador tem que ter a grandeza de escutar–, a sustentação vale muito. Já vi ministro voltar atrás no voto ou retirar o processo de pauta depois da sustentação. Porém, se for um ministro que só lê voto de assessor, aí a sustentação oral não vale nada mesmo”.

O mal-estar só diminuiu com o vinho nacional. Acompanhando ao vivo as Olimpíadas, aqui em Paris, constato como a opção por usar, em grande escala, o mundo virtual no Judiciário, depois da pandemia, mudou a vida dos juízes e dos advogados. Com a necessidade, à época, de fazer audiências por vídeo, boa parte dos magistrados conseguiu um sonho antigo: livrar-se da presença dos advogados.

É claro que, muitas vezes, nós, advogados, também gostaríamos de não ter que despachar presencialmente com certos juízes, porém, precisamos fazer isso. Especialmente na minha área, direito criminal, a presença física faz a diferença. Poder observar a reação de cada julgador, seja em audiência, ou da tribuna. Alguns detalhes podem fazer com que mudemos o rumo da prosa, sendo definitivo para o deslinde da causa. Mas existem mudanças que são muito interessantes. Normalmente, eu teria que acompanhar as Olimpíadas na tranquilidade da minha sala de televisão, no Brasil. Seria impensável imaginar ficar tanto tempo fora do escritório e dos tribunais.

Hoje, com a nova política de reuniões, audiências e julgamentos, posso me dar ao luxo de estar ao vivo nos estádios e nos campos montados embaixo da Torre Eiffel, na Place de la Concorde ou na varanda do meu apartamento, vendo as corridas e os ciclistas passarem pelo Boulevard Saint-Germain enquanto trabalho por vídeo do conforto da minha casa de Paris. Uma inversão saudável e que faz um bem danado.
Ainda dá tempo de uma reunião com um cliente em Londres ou de receber um advogado português ou belga. É claro que deve ser uma exceção, mas é bom poder ter esta opção.
Na verdade, muito mais do que acompanhar os eventos ao vivo –vôlei feminino, de areia, futebol, atletismo e a abertura no rio Sena– o que tem impressionado é o espírito olímpico que marca esta cidade mágica.

No início, havia, e ainda há, porém, mais diluída, uma grande preocupação no ar. O medo de um atentado com tantas autoridades juntas em uma cerimônia monumental foi a marca da abertura. Muitas ruas fechadas, um número assustador de policiais fortemente armados, barulhos de sirenes madrugada afora, enfim, uma opção de mostrar força que parece incompatível com o espírito olímpico. Mas que, afinal, somos obrigados a reconhecer que funcionou e tem funcionado.

Com a debandada em massa dos parisienses, que normalmente já deixam a cidade em julho e agosto, e menos turistas do que o anunciado, a cidade de Paris brilhou como nunca. Restaurantes vazios, cafés nos esperando para um copo e um livro, livrarias chamando os clientes, o Sena desfilando com seu charme e museus sem filas.
Penso que seria importante que a lógica de mudar a sede a cada 4 anos fosse interrompida. Soube que as próximas competições serão em Los Angeles. Imagine o charme inóspito de uma edição das Olimpíadas nos EUA, em Los Angeles? Por que não Paris outra vez? Já estou me preparando para assistir a tudo pela TV, aqui mesmo da Place Saint-Germain. Afinal, como disse Victor Hugo: “Respirar Paris, isso conserva a alma”.
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O Lula merece o ouro olímpico

Lula inaugura faculdade no Rio de Janeiro para alunos campeões de olimpíadas de matemática – Noticias R7
Por Kakay.
Quando eu era menino pequeno, lá em Patos de Minas, tinha a ingênua impressão de que não existia muita diferença de classe. Antes da crueza da vida me mostrar a chapada realidade, eu levava uma vida simples. A filha do vaqueiro era minha grande amiga no grupo Marcolino de Barros; o filho, o meu companheiro de perplexidades. Eu era melhor do que ele em montar em bezerro bravo no pelo. O que me dava certo prestígio. Não me esqueço de quando o levei a primeira vez ao cinema, num faroeste, e ele se escondeu no chão, atrás das cadeiras, com medo das flechas dos índios. Éramos felizes. E sabíamos.
Com muito pouco tempo, fui vendo as diferenças se avolumarem. Mesmo com minha família quebrando e perdendo praticamente tudo, todos os meus irmãos se formaram e fizeram curso superior em universidades públicas. Nenhum dos meus amigos da roça ousou a universidade. Uma regra, à época, da realidade brasileira.
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Agora, aqui em Paris, acompanhando as Olimpíadas, posso constatar o quanto a política pública pode mudar a vida das pessoas. Em 1977, quando entrei na Universidade de Brasília para fazer Direito, só existia um negro que era estudante no curso. E esse fato não era objeto de grandes indagações. Era uma realidade que não chocava a esmagadora maioria branca. Talvez, muitos achassem estranho ter um negro entre nós, e, não, ter somente um negro. Plena Ditadura, AI-5 vigendo, tortura, desaparecimento e violência como regra. Os fascistas brasileiros ainda não tinham a dimensão da força da raça negra, que iria surpreender o país.
A política de cotas foi um marco. Contra a hipócrita versão da meritocracia, mudou a composição da sociedade. Como querer que um menino pobre, negro, que mora na periferia e tem que pegar 3 ônibus, acordando às 4 da madrugada, sem conexão com internet, sem dinheiro para comprar livros e somente acesso às parcas bibliotecas, possa competir com os nossos filhos? Nossos burgueses, que reclamam quando a internet falha 2 minutos, com motoristas para levar e buscar, com acesso à biblioteca em casa com mais de 15 mil livros, viagens ao exterior e outras “vantagens” que forjam nossa diferença abissal. Meu Deus, obrigado pela política de cotas.
Agora, aqui em Paris, nas Olimpíadas, cada vez mais, devemos tirar o chapéu para a política de apoio ao esporte. O Lula é um craque e merece uma medalha de ouro. O programa foi criado em 2004, na primeira gestão do governo Lula, e regulamentado no ano seguinte. A bolsa atleta, que é paga diretamente aos esportistas, é, seguramente, o maior programa de patrocínio individual do mundo e está completando 20 anos. É uma mudança histórica. Eles podem ousar e sonhar a se dedicarem com exclusividade aos treinamentos.
Imagine um atleta brasileiro pobre, sem ter condições de comprar um tênis para correr, sem ter uma quadra digna para treinar e sem um técnico exclusivo competir com alguém que tem o tênis feito sob medida, com orientação sobre o que comer e beber? E, o pior e mais grave, o pobre muitas vezes nem sequer pode comer adequadamente. Para isso serve a força do Estado. O governo Lula tem que subir ao pódio. Desde o início, tivemos 8,7 mil atletas beneficiados. Gestantes, puérperas, surdos e técnicos em paradesporto. Um exemplo para o mundo.
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Por isso, é bom ressaltar que o programa investiu 121 milhões em esportistas de modalidades olímpicas e paraolímpicas, com impressionantes 8,292 bolsas concedidas. Em 2024, mais de 9 mil atletas foram contemplados. Vale destacar que, aqui em Paris, 241 atletas são apoiados pelo Bolsa Atleta. Ou seja, 87,3% do total. O governo Lula merece uma medalha de ouro.
Lembrando-nos do nosso Caeiro brasileiro, o matuto Manoel de Barros: “Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay.