Skip to main content

Regulação, eufemismo de censura

Padre João Medeiros Filho

Atualmente no Brasil, o brado de Dom Paulo Evaristo, Cardeal Arns – “Brasil, tortura e censura, nunca mais” – agoniza. Deseja-se repetir a tristeza do passado? Despreza-se o ensinamento bíblico: “O que detestas que te façam, não o faças a ninguém” (Tb 4, 15). É deplorável ver as vítimas de ontem, convertidas nos algozes de hoje. A censura é guardiã de privilégios, exceções e interesses. Impor a mordaça à mídia “et alii” será a solução para os graves problemas brasileiros? Sob o manto da proteção à verdade, impõem-se normas, cujo objetivo sub-reptício consiste em intimidar e calar quem ousa divulgar opiniões e medidas contra abusos e iniquidades. “O que é a verdade?”, perguntou Pilatos a Cristo (Jo 18, 38). Com a regulação busca-se proteger a inocência de vulneráveis ou a fraqueza ético-moral de dirigentes? Quando faltam firmeza de argumentação e poder de convencimento, lança-se mão do autoritarismo e da força. Dignitários lutam por uma nova imunidade: a isenção de críticas (inexistente na Carta Magna). Rechaçam juízos de valor sobre suas palavras e ações. Uns são sorrateiros; outros advogam freneticamente a censura, a partir de seus parâmetros. “Quantum mutatus ab illo” (como as coisas mudaram), dizia Virgílio na Eneida, hoje um desconhecido, pois não se estuda mais o belo idioma do Lácio. 

Há operadores da política e da justiça que falam em democracia e estado democrático de direito. Referem-se a tais valores, não como pensa a maioria, e sim um grupo. As ideologias (de ambas as vertentes) se encontram, não nas ideias, mas no “modus operandi” coercitivo e intimidatório. Falas fora de contexto e narrativas construídas têm revoltado, dividido e causado ingente mal-estar social. Uns lutam, a todo custo, para ver rapidamente o enterro daquilo que pode mostrar o lixo da “res publica”. O intento de conter a mídia e atemorizá-la caminha nessa direção. Tenta-se inibir qualquer ação contra os que manipulam de forma antiética a gestão e a política nacional. Há a desculpa de proteger a verdadeira informação, como se os cidadãos do Bem fossem incapazes de discernir ou perceber as iniquidades. Camufla-se o plano de defender somente os próprios interesses, não os da sociedade. Assim, grassam a corrupção e a impunidade no país. “Transbordam de ambição seus corações. Zombam, falam com malícia. E com arrogância ameaçam. Assim são os maus…, que com escárnio só fazem aumentar o seu poder” (Sl 73/72, 7-8;11), desabafa o salmista.

Regular a imprensa e as redes sociais é álibi para outros projetos e intenções abscônditas. Inegavelmente, nas plataformas veiculam-se difamações, calúnias, ódio, preconceitos, intolerância etc… Entretanto, já existem diplomas legais para coibir tais vilezas. É mais fácil proibir que educar. Ensinam-se lições sobre o uso dos meios de comunicação nas escolas? Isso é também dever e missão das famílias, do Estado e das igrejas. Acaso, propostas de regulação, como eufemismo de censura, não ferem direitos basilares, previstos na Constituição vigente? Pensa-se na criação de órgãos censores (quem os qualificou como detentores de toda a verdade?) para salvaguardar a “soi-disant” honra de alguns, que se julgam pública e socialmente inatacáveis ou infalíveis. Quem estará apto a determinar o justo limite das coisas, o Estado e seus organismos ou os próprios interessados (cidadãos)? Parece haver o propósito de colocar as redes e os indivíduos sob o jugo estatal, caminho trilhado por países ditatoriais e autoritários. O que diria o jurista Sobral Pinto, defensor de tantas vítimas das sanhas repressivas de outrora?

No Brasil da atualidade, a mídia e as redes sociais podem tornar-se instrumento para ajudar a conter a cultura da corrupção e da impunidade. É abominável que, com a desculpa e o pretexto de punir os “cibercrimes”, a mídia seja ameaçada, ao se insurgir contra as regalias de ímprobos e inescrupulosos. Cabe contestar os abusos nas plataformas. Mas, isso deve acontecer com respeito aos direitos fundamentais, sobretudo à verdadeira liberdade de expressão (e não ao seu simulacro), previstos na Carta Magna de 1988. Verifica-se não a tentativa de combater as supostas transgressões, mas a sede de um artifício “legal” para afastar o que incomoda os iníquos e corruptos. “Até quando, ó Deus, os ímpios triunfarão e haverão de proferir palavras de afronta?” (Sl 94/93, 3-4).

O crime da turba

Marcelo Alves Dias de Souza

Na imprensa nacional corre a notícia de que está sendo articulado, pelos presidentes do Senado e Câmara dos Deputados, um projeto de lei que visa especificamente “diminuir penas dos réus de menor importância e aumentar punição a líderes de tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023” no Brasil (g1). A principal medida seria “criar um novo tipo penal para punir aqueles que foram influenciados por uma multidão para praticar atos contra o Estado Democrático de Direito – o que aliviaria as penas dos que veem como ‘massa de manobra’ que vandalizou as sedes dos Poderes, mas não planejou” (Folha de São Paulo/UOL).

Recordo-me haver estudado, quando aluno de direito na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, o apelidado “crime praticado por multidão”, previsto no nosso Código Penal como circunstância atenuante genérica na dosimetria da pena: “Art. 65: São circunstâncias que sempre atenuam a pena: III – ter o agente: e) cometido o crime sob a influência de multidão em tumulto, se não o provocou”.

Para além das lições dos professores de então, registro aqui a admoestação do grande E. Magalhães Noronha (e como escreviam bem esses penalistas de outrora), no seu curso “Direito Penal” (Editora Saraiva, 1990), sobre a questão: “É a multidão um agregado, uma reunião de indivíduos, informe e inorgânico, surgido espontaneamente e também espontaneamente desaparecendo. Levada a multidão pelo paroxismo do ódio, vingança, amor etc., chega a excessos inauditos, atemorizando seus próprios componentes ou integrantes. Possui ela como que uma alma, que não resulta da soma das que a compõem, mas, na realidade, da adição das qualidades negativas, dos defeitos, dos sentimentos primitivos que residem em todo homem. É a multidão dirigida por essa alma e entrega-se a excessos. Frequentemente é o duce, no dizer dos italianos, o meneur, na expressão dos franceses, que provoca a eclosão, o tumulto; porém, desencadeada a tempestade, precipitando-se cega, desordenada e arrasadora, nem mais ele a pode deter. É fácil lembrar-se do estouro da boiada, tão magistralmente descrito por Euclides da Cunha e Rui Barbosa, dois gigantes da pena no Brasil. Sob a influência da multidão, deixa o indivíduo de ser o que ordinariamente é, ocorrendo, então, o rompimento de outros sentimentos, de outras forças que traz em si. Na multidão delinquente existe o que se chama moral de agressão: cada um procura não ficar aquém do outro no propósito delituoso”.

Compreende-se, assim, a razão de se querer atenuar a pena in casu – falo dos infames eventos de 8 de janeiro de 2023. Levar-se-á em consideração que a faculdade de pensar e ponderar, em muitos dos ali envolvidos nos atos criminosos, ficou debilitada. Muitos não agiram por si, mas, sim, imitando o comportamento violento uns dos outros, assim como impelidos e sugestionados por terceiros não tão desavisados assim. Quase hipnotizados ou sonambulizados, como já descrevia Gabriel Tarde em “A opinião e as Massas” (“L’Opinion et la Foule”, 1901). Desde já afirmo que o projeto de lei em questão tem, em princípio, a minha simpatia cidadã.

Entretanto, se situações de “estouro da boiada”, frequentemente espontâneas e inconscientes, podem dar uma explicação – e, pela lei, uma atenuação na pena – para o fato imitativo/criminoso multitudinário, o caso do 8 de janeiro de 2023 tem circunstâncias peculiares que merecem nossa reflexão sob um outro prisma: o do chamado erro no “pensamento ou decisão de grupo”. Não se tratou ali de multidão ou de agregado de indivíduos informe surgido espontaneamente, como seria o caso, por exemplo, de crimes multitudinários acontecidos em meio a um violento tumulto de torcidas em um jogo de futebol (lesão corporal, dano etc.). Muitos dos envolvidos no 8 de janeiro, quase todos talvez, já “vivandeiravam” nas portas dos quartéis pedindo não sabiam eles bem o quê. Havia uma boa dose de organização e perenidade naquele agrupamento de pessoas. Isso é fato.

Se, à moda de Shakespeare, tal qual Shylock, os envolvidos tiveram “mais justiça do que desejavam”, foi também porque, quase “sonambulizados”, como grupo, tomaram decisões muito erradas. E é sobre essas decisões de grupo que falaremos na semana que vem.

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Vida e arte em Nuremberg

Marcelo Alves Dias de Souza

Por estes dias, enviei um artigo para a revista da Academia de Letras Jurídicas do Rio Grande do Norte – ALEJURN analisando, de uma forma mais extensa do que é possível num espaço de jornal, o filme “Julgamento em Nuremberg” (“Judgment at Nuremberg”), de 1961.

Um clássico dos “filmes de tribunal”, do ponto de vista cinematográfico, “Julgamento em Nuremberg” é simplesmente uma película fantástica. Sob a direção de Stanley Kramer, é protagonizado por gente do top de Spencer Tracy, Burt Lancaster, Marlene Dietrich, Judy Garland, Montgomery Clift, Richard Widmark, Maximilian Schell, Werner Klemperer e William Shatner, entre outros. Em 1962, ele foi indicado a onze estatuetas do Oscar, entre elas as de melhor filme, melhor direção, melhor roteiro adaptado, melhor fotografia, melhor direção de arte, melhor ator (duas vezes) e por aí vai. Levou dois prêmios, melhor ator (Maximilian Schell) e melhor roteiro adaptado (para Abby Mann), aos quais se somaram alguns globos de ouro. Ao mesmo tempo “film d’acteurs” e “film à thése”, “Julgamento em Nuremberg” dramatiza um acontecimento verídico – na verdade, uma parte dele, e mesmo assim com muita liberdade, já que estamos falando de ficção –, o “julgamento dos juízes” pós-2ª Guerra Mundial, em que, embora não fossem eles as maiores autoridades do sistema de justiça nazista (estas estavam já falecidas), nove membros do Ministério da Justiça do Reich e sete membros de tribunais do povo e de tribunais especiais foram acusados de abusar dos seus poderes de promotores e juízes para cometer crimes de guerra e crimes contra a humanidade, fomentando e autorizando a perseguição racial e horrendas práticas de eugenia, entre outras coisas, levando à prisão e à morte inúmeros inocentes. O julgamento durou de 5 de março a 4 de dezembro de 1947. Dez dos acusados foram condenados, quatro absolvidos e dois acabaram não julgados.

E foi com a repercussão do envio do artigo que mais uma vez observei algo curioso na relação arte e vida, ficção e fato. Embora o “julgamento dos juízes” não tenha sido nem de longe o mais importante dos julgamentos então acontecidos na cidade de Nuremberg, ele é hoje, pela força de Hollywood, um dos mais badalados. A versão supera os fatos; a arte, muitas vezes, a vida.  

De fato, os “julgamentos de Nuremberg”, decorrentes dos horrores acontecidos na 2ª Guerra Mundial, começaram em 20 de novembro de 1945 e terminaram em 13 de abril de 1949. O principal julgamento, o primeiro deles, teve fim em 1º de outubro de 1946 e concentrou-se na suposta cúpula do regime nazista. Vinte e quatro líderes foram indiciados/denunciados, vinte e um réus acabaram sendo ali julgados, gente como Hermman Goering, Ruldof Hess, Joaquim von Ribbentrop, Alfred Rosenberg, Albert Speer e Franz von Papen, que dispensam apresentações, e até militares como Erich Raeder, Wilhelm Keitel, Alfred Jodl e Karl Dönitz.

A ideia, deveras louvável em termos civilizatórios, era de que, com esses julgamentos, os nazistas seriam severamente punidos, mas de uma maneira digna, o que serviria de exemplo para a posteridade. Como lembra Paul Roland (em “The Nuremberg Trials: the Nazis and their Crimes against Humanity”, Arcturus Publishing, 2010), “os julgamentos não fizeram do mundo um lugar mais seguro, nem eles erradicaram a injustiça, a perseguição religiosa e racial, a escravidão, a tortura e o genocídio. Entretanto, os julgamentos de Nuremberg estabeleceram um precedente no sentido da punição dos responsáveis por crimes que a comunidade internacional considera intoleráveis – onde e por quem quer que eles tenham sido cometidos. Depois de Nuremberg, nenhum chefe de Estado pode alegar estar acima do direito e indivíduos não podem mais evadir-se de suas responsabilidades escondendo-se atrás da impessoalidade da administração à qual serviram. A limpeza étnica, a guerra selvagem e os responsáveis por esses males/crimes são agora puníveis sob o direito internacional. Nós agora temos claros códigos de conduta onde uma vez havia incerteza e ambiguidade. Militares não podem mais alegar que foram forçados a cometer crimes sob coação, nem podem se fiar na [antes tão comum] tese de que foram simplesmente obrigados a cumprir ordens superiores”.

Embora tenha sido apenas no primeiro julgamento que as quatro grandes potências aliadas (EUA, Reino Unido, França e União Soviética) estiveram oficialmente representadas com seus respectivos julgadores, subsequentemente, a partir de 9 de dezembro de 1946, foram levados a cabo, pelos americanos, mais doze julgamentos de criminosos de guerra nazistas de suposta menor relevância. E o nosso real e dramatizado “julgamento dos juízes” foi, anote-se, apenas um deles.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Gaza: nosso silêncio é o túmulo da omissão!

 

“Dizei- me vós, Senhor Deus! Se é mentira… se é verdade, tanto horror perante os céus?”
Castro Alves, Tragédia no Mar
A realidade cruel, brutal e covarde do massacre genocida que ocorre na Faixa de Gaza, cada vez mais, teima em inquietar o mundo. A grande esmagadora maioria faz ouvidos moucos e parece que as mortes, desumanas e em massa, são, na verdade, uma ficção. Uma ilusão, pois não pode ser verdade tanta barbárie à luz do dia. Sem nem mais fingir. Sem esconder. Sem querer parecer falso. São os donos da vida e da morte. Escolhem quem querem matar, ou torturar.
O que ocorreu com a médica pediatra Alaa al-Najjar, que estava trabalhando no hospital quando os corpos de 7 dos seus 10 filhos chegaram mortos por um ataque criminoso de Israel, não pode ser simplesmente banalizado. Esquecido. De tão queimados, ela, em princípio, não os reconheceu. Dois deles, uma bebê de 6 meses e um de 12 anos, desapareceram. Apenas um sobreviveu, e está gravemente ferido.
É bom citar os nomes, são crianças, são pessoas: Yahya, Rakan, Raslan, Jibran, Eve, Rivan, Luqman, Sadeen e Sidra. Todas crianças que poderiam ser nossos filhos. Viraram números no genocídio bárbaro que Israel faz em Gaza. Sob o silêncio cúmplice e covarde de todos. Do mundo. Nosso.
É importante ouvir o que têm a dizer os médicos que, heroicamente, trabalham na região. Em seguida ao ataque, uma médica pediatra, colega da mãe das crianças assassinadas, deu uma entrevista muito emocionante.
Ela relatou que mais de 1400 médicos e agentes de saúde já foram mortos, bem como seus familiares. Ela acusa o Estado de Israel de fazer uma ação criminosa e deliberada para atingir os agentes de saúde. Um crime que deveria chocar a todos. É importante frisar que 35 dos 36 hospitais de Gaza foram alvos de ataques criminosos do Estado de Israel.
O ataque covarde, criminoso e bárbaro do Hamas, em 7 de outubro de 2023, em que o sul do território israelense foi brutalmente atingido com 1.200 pessoas mortas – crianças, mulheres e idosos – e com a barbaridade de fazerem reféns, obviamente não pode ser usado como motivo e justificativa para o genocídio. O mundo livre e humanitário tem que se posicionar contra as duas barbáries. Só que o genocídio israelense impera desde então. E o que se vê é a omissão covarde do mundo dito civilizado.
Publicidade
No início dessa selvageria, perdi um amigo que respeitava. Ao entrar em um restaurante em SP, fui surpreendido com um banqueiro, jovem e brilhante, que me abordou falando alto e de maneira arrogante e prepotente: “Diga ao seu amigo Lula que ele vai ficar isolado no mundo se ficar contra Israel. Vamos isolá-lo”. Perplexo, respondi que não era menino de recado e que o presidente estava do lado certo da história e ele quem ficaria isolado. Hoje, os genocidas sentem a força e o peso do isolamento e do desprezo. Não sei o que esse meu amigo pensa agora do genocídio, nunca mais falei com ele.
Outro sinal da doença da covardia é o comportamento dos grupos ditos progressistas. Faço parte de vários, embora pouco participe, apenas acompanho. Em um deles, unido e com história de compromisso com as causas democráticas, o assunto genocídio quase rompeu o grupo. Parei de acompanhar. O véu que cobre as consciências nesse assunto é muito denso. Todos parecem estar tratando de assuntos diversos. No meio, como em todo grupo grande, surgem mensagens sobre rivalidades de futebol. Um ataque a um hospital é meio que esquecido por um ataque do Flamengo que resultou em gol. E sempre alguém lembra que o Palmeiras não tem mundial.
Enquanto isso, a nota contra o genocídio bárbaro pelo Estado de Israel parece não passar pelo exame do VAR. Alegam um impedimento. E a falta de coragem de denunciar a barbárie acaba ganhando de goleada. Nem a solidariedade às crianças que estão morrendo de fome pelo bloqueio assassino que se opera em Gaza parece vencer a barreira do preconceito. Os que não morrem de fome, morrerão pelas bombas. O nosso silêncio será o túmulo de toda a omissão e covardia.
Lembrando-nos da frase atribuída a Mário Quintana, mas que é de autoria incerta: “O que muda a gente não é o que a gente fala, é o que a gente cala”.
www.odia.ig.com.br

Bebês-reborn”, uma nova idolatria?

Padre João Medeiros Filho

Teologicamente, a idolatria cultua pessoas ou seres inanimados, transformando-os em ídolos. Entretanto, hoje manifesta-se de vários modos, incluindo a obsessão por bens materiais, celebridades, ideologias e até a dependência excessiva da tecnologia. Reside na substituição de Deus ou de valores imutáveis por objetos e criaturas humanas, tornando-os o centro da vida. Desta maneira, desvia-se da glorificação do Criador, exaltando o que está fora da essência de Deus. Alguns pesquisadores consideram a atenção exagerada aos “bebês-reborn” uma postura quase idolátrica. Neles não se pretende reconhecer uma obra de arte, fruto da inteligência. Trata-se da supervalorização de algo que não é ser vivo, no entanto tratado por alguns como humano. Na Antiguidade adoravam-se bezerros de ouro. “Mutatis mutandis”, é o que ocorre com esse modismo dos bonecos. A mitologia é rica em exemplos de adoração a divindades: personagens fictícias, astros, coisas e animais sagrados (que ainda existem em certas culturas). 

“Humanizar objetos é um ato idolátrico, uma vez que são colocados em pé de igualdade com aqueles que foram concebidos à imagem e semelhança do Eterno (Gn 1, 26-28). Desrespeita-se e nega-se o plano divino”, afirmara Monsenhor Albert Houssiau, atualmente bispo emérito de Liège (Bélgica). Ao exaltar os “bebês-reborn”, tratando-os como crianças, afronta-se a Deus, que fez somente a criatura humana à sua semelhança. Javé exclama pelo hagiógrafo: “Não terás outros deuses diante de Mim” (Ex 20, 3)! 

Psiquiatras e psicólogos consideram essa insólita situação, como distúrbio mental: uma alteração que vai da carência afetiva em busca de compensação ou transferência; do transtorno dissociativo à fronteira do desequilíbrio psicológico. Depara-se com bizarrices: existência de maternidades para os bonecos ou busca por hospitais humanos para “medicá-los”, judicialização pela guarda de um desses objetos, como se fosse uma criança real. Cuidadoras de casas geriátricas eram criticadas, quando tentavam tranquilizar algumas velhinhas, dando-lhes bonecas artesanais para amainar a sua tristeza, diante da saudade de seus filhinhos. Desvio mental ou não, a Bíblia lança uma diretriz sobre esses fatos: “Não vos volteis para os falsos deuses, nem façais para vós deuses de metal… Eu sou o Senhor, vosso Deus” (Lv 19, 4).

Para os filósofos e teólogos, a criatura humana parece ter perdido a noção de si mesma, seu lugar e valor. Volta-se para algumas ideias, sonhos e objetos, distanciando-se do Criador. O homem tende a perder a referência de sua origem. Deifica-se o que não é divino. Inúmeros exemplos desse fenômeno são descritos pelos mitólogos, dentre eles o pesquisador Junito Brandão. A Sagrada Escritura contém casos análogos aos “bebês-reborn”. O profeta Isaías já alertava seus contemporâneos: “A terra está cheia de ídolos. Divinizam a obra das suas mãos, aquilo que seus dedos fabricaram” (Is 2, 8). 

O homem parece caminhar para a desconstrução de si mesmo, coisificando-se e humanizando coisas. Isso é fruto do absenteísmo de Deus e ateísmo prático. Ao afastar-se do seu Criador, o homem perde o referencial de si mesmo. Ao desprezar o Absoluto, passa a relativizar tudo, empobrecendo-se. Dilui sua condição de semelhança divina, priorizando o efêmero e material, substituindo a si mesmo por coisas. Cristo no episódio da Tentação no Deserto apresenta uma metáfora dos ídolos modernos e antigos: o ter, o poder e o prazer. São deidades, que se pretende pôr no lugar do Deus vivo e verdadeiro. Assim endeusam o dinheiro, a manipulação e o erotismo. São alegorias de antigas e novas divindades. 

“Se Deus é desprezado, procura-se substituí-Lo por ilusões e delírios”, afirmou o filósofo Jean Ladrière. O profeta Isaías colocou nos lábios de Javé um alerta: “Eu sou o Senhor. Este é o meu nome. A outro não darei a minha glória (Is 42, 8)! Se Deus é esquecido, o homem pretende tornar-se o centro de tudo, criando ídolos e deuses segundo a sua imagem. Tudo passa a ser colocado de acordo com suas conveniências. É o que acontece com o culto dos “bonecos- reborn”. O salmista fala por Deus: “Multiplicam-se as dores dos que correm atrás de outros deuses… Não terei seus nomes em meus lábios” (Sl 16/15, 4). 

Genética e ambiente (II)

Marcelo Alves Dias de Souza

Na semana passada, registrei aqui que a ideia de uma origem biológica para o comportamento criminoso do indivíduo, sobretudo quanto ao crime violento, ainda hoje é popular e mesmo cientificamente defendida. Todavia, no estado atual da ciência, entende-se não ser possível prever o comportamento criminoso de alguém com base apenas em fatos biológicos. Mesmo nas pessoas com uma “predisposição genética” para tanto, é necessário um gatilho do ambiente para que essa pessoa “caia pra dentro” na criminalidade. Esse é chamado o “modelo diátese-estresse”, a soma da predisposição genética com o estresse do ambiente.

Esses gatilhos individuais – que podem estar relacionados (mas não necessariamente) aos diversos fatores sociológicos da criminalidade estrutural, como a desigualdade social, a pobreza, a falta de educação, a desestruturação familiar etc. – são de diversas ordens.

Como anotam Emily Ralls e Tom Collins, em “Psicologia: 50 ideias essenciais” (Editora Pé da Letra, 2023), “um dos argumentos mais fortes para que a agressão tenha uma causa comportamental é a teoria da frustração-agressão, que surgiu na década de 1930. A frustração ocorre quando um fator interno ou externo nos impede de atingir uma meta. John Dollard (1900-80) e seus colegas propuseram que a existência de frustração sempre levava a alguma forma de agressão. (…) No entanto, todos nós ficamos frustrados, mas nem todos se tornam agressivos. Em resposta a isso, a teoria da frustração-agressão sugere que a intensidade da agressão é maior quando dirigida à fonte da frustração como um tipo de comportamento retaliatório”. Faz sentido.

Outrossim, é relevantíssima a teoria do aprendizado social – TAS (e as suas derivações), afirmando que aprendemos não só por experiências diretas, mas sobretudo por meio da observação dos outros, incluindo aqui o comportamento agressivo ao nosso redor e a forma como ele se apresenta. Por exemplo, a partir de inúmeros estudos, é convencionalmente aceito – e alguns pais já deviam saber disso por experiência própria – que as crianças familiarizadas com atitudes agressivas têm maior probabilidade de imitá-las. A imitação está no centro de toda a vida social e explica bem tanto as situações estáveis como as mudanças, já ensinava Gabriel Tarde (1843-1904) em “A opinião e as Massas” (“L’Opinion et la Foule”, de 1901). Assim, a imitação, compulsória ou espontânea, eletiva ou inconsciente, pode ser o gatilho individual do novo fato criminoso.

E podemos ser até mais específicos quanto à influência do ambiente no comportamento criminoso. Esse ambiente pode ter mesmo um papel negativamente educativo no indivíduo. Como anotam os autores de “Psicologia: 50 ideias essenciais”, “Edwin Sutherland (1883-1950), em 1939, sugeriu que dois fatores são necessários para que uma pessoa se torne um criminoso: 1) ela precisa aprender certos valores que apoiariam o comportamento criminoso e 2) precisa aprender as habilidades necessárias para cometer o crime. Essa teoria é chamada de teoria da associação diferencial e argumenta que os criminosos são influenciados principalmente por aqueles com quem se socializam”. Nesse sentido, o nosso comportamento seria influenciado e mesmo “aprendido”, durante a vida, por intermédio da observação e absorção de certo conhecimento. Os criminosos não são “natos”, mas, sim, “educados” (intencionalmente, o mais das vezes) por meio da observação/imitação dos outros ao redor.

Mas isso não é só uma lição da psicologia forense/criminal. É uma sabença popular. Afinal, “diga-me com quem andas e eu te direi quem tu és”. É uma verdade poética, como assim declamou Rudyard Kipling (1865-1936), no seu poema “If” (“Se”, em tradução do nosso Guilherme de Almeida): “Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes/E, entre reis, não perder a naturalidade/E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes (…)/Tua é a terra com tudo o que existe no mundo/E o que mais – tu serás um homem, ó meu filho!”. É filosófico: “O inferno são outros”, já dizia Jean-Paul Sartre (1905-1980), alertando sobre os nossos padecimentos quando dos encontros com a alteridade. E é bíblico (1 Coríntios 15:33): “Não se deixem enganar: ‘As más companhias corrompem os bons costumes’”.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Bebê reborn: entre a doença, a solidão e o ridículo

bebê reborn

“Se fosse só eu 
a chorar de amor, 
sorria.” 

–Hai-Kai de João Guimarães Rosa, Egoísmo 

Entro numa fila para embarcar no aeroporto do Rio e, na minha frente, deparo-me com uma mulher jovem com uma criança no colo. Olho discretamente para a bebê e me surpreendo pensando: será que é de verdade? Quando escuto o choro fico com a impressão de que realmente se trata de um ser humano.

Mas ainda assim restou uma ponta de dúvida depois da avalanche dos bebês reborn. No caso concreto, a mãe estava tranquila e, logo depois, a criança brincava alegremente. Senti um estranho alívio.

É claro que respeito, com naturalidade, não só o direito de certas pessoas, na maioria mulheres, terem um bebê reborn e de se apegarem a eles, até mesmo de maneira apaixonada. Ninguém pode fazer qualquer interferência nos desejos e manifestações legítimas das pessoas. Essa é uma regra básica em uma sociedade que se pretende livre e respeitosa. Acredito mesmo que, por motivos diversos, não me cabe declinar e aprofundar: esse carinho, amor e afeto por um bebê de plástico podem fazer um bem enorme a algumas carências afetivas. Não me cabe julgar ninguém. 

Isso sem contar que as bonecas, muitas vezes, são verdadeiras obras de arte. Feitas por artistas plásticos que trabalham com esmero e profissionalismo. Esses brinquedos hiper-realistas, que imitam crianças de verdade, têm preços que variam de R$ 700 a R$ 15.000. Depende do material usado. É relevante ver qual a tinta usada, o cabelinho que vai ser implantado, os óleos utilizados, o material para os olhinhos, o kit que acompanha. Enfim, os colecionadores de bebês reborn sabem que são muitos os efeitos especiais para valorizar o seu preço. Por isso, os artistas cuidam de usar um material que pareça pele e macia, com textura, veias e dobrinhas. Tem até concurso do melhor bebê reborn. 

O ponto não é o inquestionável direito de cada um comprar um boneco super-realista, de tratá-lo como filho, de dormir com ele, de levá-lo a espaços públicos, enfim, de fazer da boneca uma companhia que, muitas vezes, a pessoa não consegue ter de alguém real. Essa é uma questão que cada um resolve como quiser, ou como puder. O problema se instala, e merece reflexão, quando a dona, ou o dono, da boneca resolve usar os serviços públicos como se o bebê reborn fosse gente.

Situações ridículas começam a proliferar no país. Uma mulher levou sua boneca para receber atendimento em uma UPA em Guanambi, na Bahia, alegando que a boneca estava com “muita dor”. 

Em Minas Gerais, uma adolescente simulou um atendimento de um boneco em um hospital. É criminoso diante da superlotação nos hospitais, que sofrem com a falta de médicos e com a escassez de insumos, que pessoas autoritárias e prepotentes queiram usar a estrutura pública para atender suas fantasias, ainda que simbólicas ou emocionais. Viralizou no Instagram uma filmagem de uma dondoca na fila de um supermercado sendo indelicada com a funcionária da caixa por ter sido, corretamente, impedida de entrar numa fila especial com uma boneca no carrinho. Papel ridículo que fez a dona do bebê reborn ao chamar, aos gritos, o bebê de filho para furar a fila. Da mesma maneira, o caso de um casal tentando usar a fila preferencial com o argumento de estarem com um “filho recém-nascido”. Esses são casos em que as pessoas só fazem um papel ridículo e tumultuam lugares públicos. Normalmente, partem de cidadãos que não têm mesmo nenhum respeito à coletividade e às normas de convivência entre entre pessoas civilizadas.

Mais grave, entretanto, é quando se trata de pessoas que buscam o SUS para situações teratológicas. Em Minas, uma mulher ocupou o SUS alegando que a boneca estava com febre. É claro que o problema não está na boneca e é necessário ter empatia com as pessoas com distúrbios dessa monta. Por isso, surgem propostas legislativas que buscam proibir o atendimento médico a esses bonecos em unidades de saúde pública ou privada sancionando os profissionais que realizarem atendimentos. E projetos que propõem aplicação de multa para quem tentar obter benefícios, como prioridade em filas ou descontos.

Sem dúvida é necessário tentar evitar o desvio de recursos públicos, até porque, infelizmente, quem realmente necessita, muitas vezes, não consegue o atendimento ideal. Onerar o SUS, esse programa que é um orgulho do Brasil, tem que ser impedido. Ainda que, temos que reconhecer, alguns “pais” de bebês de silicone estejam mesmo a merecer um tratamento médico. Psiquiátrico. 

Remeto-me a Pessoa, na pessoa de Caeiro: 

“Sei ter o pasmo essencial. Que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras.”

www.poder360.com.br