Setembro, o mês da Bíblia

Padre João Medeiros Filho

No Brasil, é tradição da Igreja católica dedicar setembro à Sagrada Escritura, em homenagem a São Jerônimo (347-420 d.C), cuja festa litúrgica é celebrada no dia trinta desse mês. Ele foi o primeiro a traduzir a Bíblia dos textos originais (hebraico, aramaico e grego) para a língua latina (predominante nas comunidades cristãs ocidentais da época e idioma oficial da liturgia). A tradução passou a ser denominada Vulgata. O mês temático tem um papel catequético e pedagógico: incentivar os católicos à leitura e meditação dos textos sagrados: Pão da Palavra, na expressão de exegetas e hermeneutas.

Na história do catolicismo, a Bíblia nem sempre pôde estar nas mãos dos fiéis. Após o Concílio de Trento (1545-1563) – a fim de evitar interpretações inidôneas ou inexatas – era necessário obter autorização da autoridade diocesana para ler os Livros Sagrados. Isso não ocorreu sem consequências. Assim, o conhecimento e o estudo da Bíblia não se tornaram um hábito comum entre católicos. Hoje, essa realidade vem mudando, graças a iniciativas, tais como os círculos bíblicos, a leitura orante dos Livros Inspirados, a liturgia da Palavra na Eucaristia e administração dos sacramentos. Há todo um trabalho para fortalecer a consciência de que a Sagrada Escritura “é lâmpada para os […] pés e luz para as […] veredas” (Sl 119/118,105).

No Livro de Ezequiel, Deus ordena ao profeta: “Come o que tens diante de ti! Come este rolo [pergaminho] e vai falar à casa de Israel… Eu o comi, e era doce como mel em minha boca” (Ez 3,1.3). O episódio descrito faz parte do contexto da vocação profética daquele hagiógrafo. O relato mostra-nos o poder de alimento da Palavra Divina. Em várias passagens do Antigo Testamento há uma exortação expressa para que se medite, dia e noite, a Lei do Senhor, como verdadeira orientação para uma vida digna diante do Criador. O evangelho de Mateus (Mt 4, 4) relata Jesus citando o Deuteronômio: “não só de pão vive o homem, mas de tudo o que sai da boca do Senhor” (cf. 8, 3). É muito simbólica a postura de Ezequiel, ao comer o Texto da Lei (Torá). Explicita bem a importância de se nutrir daquilo que Deus transmitiu e daí pautar nosso viver e agir.

Os escritos sagrados revelam-nos um infinito de experiências ricas do ponto de vista espiritual, místico e cultural. A diversidade de gêneros e estilos literários, linguagens e perspectivas teológicas faz desse Livro uma biblioteca. Alimentar-se de tais escritos é enriquecer-se não só espiritual, mas também culturalmente. O conhecimento da Bíblia leva os fiéis a mergulhar num universo tão vasto e precioso, sendo impossível não se apaixonar por ela. O Concílio Vaticano II mostrou a importância da Igreja da Palavra, que igualmente é Igreja da Eucaristia. Ambas são sacrários de Cristo. Não se pode esquecer que, durante séculos, o Povo de Deus se nutria fundamentalmente da Palavra. Não havia sacramentos. Ainda hoje, várias comunidades (sem ministros ordenados) não dispõem dos gestos sacramentais. O grande alimento é a Sagrada Escritura. Afinal, somos também a Igreja da Palavra. É salutar celebrá-la em nossas residências meditando-a e permitindo que ela transforme todos, tornando-os cada vez mais semelhantes a Cristo, Verbo de Deus que se “fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). Jesus é o Salvador, consequentemente sua Palavra é Salvação.

O domingo e mês da Bíblia são uma excelente oportunidade para a mudança de algumas práticas religiosas. É preciso crer plenamente que fortalecidos também pela Palavra do Senhor somos edificados como Igreja. Portanto, celebrá-la tem um valor inestimável. Por ela somos providos pelo Deus da Vida. “Ah, se hoje ouvísseis a sua voz”, anseia o salmista (Sl 95/94, 8). Convém dedicar igualmente tempo para beber das fontes divinas na liturgia cotidiana da igreja doméstica. Celebrar a Palavra em casa, sobretudo no Dia do Senhor, com os familiares, é ter a certeza de que se fará a experiência do Cristo Ressuscitado. Diante de tanta riqueza espiritual, a resposta de Pedro – quando instado pelo Mestre se iria abandoná-Lo – foi contundente: “A quem iremos, Senhor, só Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6, 68).

Critérios

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

O meu querido “Aurélio” – e aqui falo do enorme e pesadíssimo “Novo dicionário da língua portuguesa” de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Editora Nova Fronteira, 1986 – define a palavra “critério” como “aquilo que serve de base para comparação, julgamento ou apreciação”. “Devemos ter um critério” – diz-se quase como uma sabença popular imemorial – para que assim possamos, racional e fundamentadamente, deliberar, decidir, escolher, afirmar e até crer.

Para além das decisões/opiniões dadas na minha profissão, eu tenho os meus critérios para as coisas simples da vida. Uma dessas coisitas é o ato/momento/oportunidade de comprar livros quando estou viajando. Devo ou não devo comprar? Escolho esta ou aquela obra? Não quero ser tido, flanando pela Zorópa, xeretando livrarias e sebos, como um “Asno de Buridan” letrado.

Basicamente, procuro por livros que atendam, o máximo possível, a três critérios – ser barato, leve e conter imagens, o que, sabemos, não é fácil de compatibilizar, muito mais nos dias de hoje, num só “espécime” livresco.

Bom, o barato é algo relativo. Mas, com a inflação mundo afora e sobretudo com a desvalorização do nosso real em relação ao dólar e ao euro, está ficando difícil achar esse barato. E tem lugares e lugares. Quando estive em Dubai, por exemplo, os livros eram coisa de três vezes o valor na Europa ou nos EUA. Já na Índia, livros enormes, de filosofia ou teoria geral do direito, em inglês, curiosíssimos, eram quase de “graça”. Era para eu ter enchido uma mala. O fato é que estabeleço meu teto para cada tipo de livro. Se usado e em formato poche, no máximo 2 euros. Mas, claro, faço minhas pequenas transgressões. “Transgresser, c’est humain”, dizem. Comprei na minha última viagem um tal “Le gouvernement des juges” (Editora Desclée De Brouwer, 2023) por 18,90 euros. Embora em capa mole e papel de jornal, é um livro recentíssimo e o assunto é “do momento”. Foi um investimento.   

O peso que carregamos numa viagem é algo relevantíssimo. Para o nosso conforto e bolso. Carregar malas em trem é luta. A bagagem em avião está cada vez mais cara. E livros pesam deveras. Procuro livros leves e muitas vezes “dispenso” livros interessantes, porém pesadíssimos. Mas aqui também às vezes transgrido as regras. Na mesma viagem acima citada comprei um tijolão em capa dura intitulado “Portraits de procureurs” (Tomo 1, Editora LexisNexis, 2020), que “apresenta biografias de procuradores [da república francesa], algumas bem detalhadas, acompanhadas da história de processos em que estes procuradores atuaram, outras mais sucintas, mas esclarecendo uma questão particular de direito relacionada ao tema do respectivo capítulo. Pela evocação das personagens, o autor busca demonstrar que os procuradores da república participaram de inúmeros eventos políticos, do desenvolvimento institucional, legal e social do país, acontecimentos fundamentais que formataram a história da França”. Embora pesando um 1kg, comprei o dito cujo. Évidemment, quero conhecer a história dos meus congêneres gauleses.  

Por fim, o critério das imagens nos livros. Se sou um amante dessa mistura livresca – letras, imagens e, se possível, até som, por meio de uma bela interpretação –, reconheço que esse critério tem um problema. Ele está quase sempre em contradição com os critérios do preço e do peso. Os livros com imagens geralmente são caros e pesados. Mas dou meus pulos. Em South Kensington/Londres, comprei um maravilhoso livro de divulgação científica (gênero literário que adoro), “Scientifica Historica: how the world’s great science books chart the history of knowledge” (de Brian Clegg, Ivy Press, 2019), por menos de 10 libras. Mil e uma imagens. Belíssimo. Quanto ao peso, tomei logo um vinho da mala. E, já em Paris, topei com um achado: “Les timbres: guide pratique du collectionneur” (Editions Atlas, 1984), por Benito Caronene (texto original em italiano). Livro de formato grande, mas usado e baratíssimo. 1 euro. Imagens/fotografias de selos em gostosíssima fartura. Longe de casa, funcionou para mim como a “Madeleine de Proust”, em busca de um tempo em que, menino-filatelista, aprendia e sonhava com os colecionadores do mundo. Pagaria cem vezes mais e carregaria o danado nas costas.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Justiça Eleitoral: a cadeirada na mentira

Na imagem, os candidatos à Prefeitura de São de Paulo, Datena (esq.) e Pablo Marçal (dir.)
“Ergo-me da cadeira com um esforço monstruoso, mas tenho a impressão de que levo-a comigo, e que é mais pesada, porque é a cadeira da subjetividade.”
–Pessoa, na pessoa de Bernardo Soares, “Livro do Desassossego”.
Tenho escrito sobre uma preocupação que me assola há tempos: como debater as sérias questões que interessam à sociedade e à democracia com pessoas desprovidas de caráter, de ética, de bom senso e de noção de ridículo? Considero impossível sentar à mesa para tentar discutir ideias e projetos com quem não tem o menor compromisso sequer com qualquer razoabilidade de um pensamento estruturado.
Em um mundo midiático, com as mensagens curtas e as imagens captadas para substituir o conteúdo, é quase impossível levar a sério qualquer preocupação em conversar sobre os problemas reais do país. Quem não tem nenhum pudor em mentir descaradamente, usa a mentira como plataforma de governo, sem nenhuma consequência. E, para sustentá-la, serve usar a agressão verbal, o insulto pessoal, os dados e fatos ofensivos. Enfim, a política virou um palco de vale-tudo. E os debates, um verdadeiro show de horrores.
Em 11 de setembro, nos EUA, o candidato Trump proporcionou uma cena ridícula que viralizou no mundo inteiro. Durante o debate com Kamala Harris, ele disse que os imigrantes estavam comendo os gatos e os cachorros de estimação dos norte-americanos. Foi imediatamente advertido, mas a estratégia política com a mentira era atingir um público que acredita em qualquer sandice.
No Brasil, em São Paulo, estamos presenciando uma escalada de atitudes bizarras por parte do candidato Pablo Marçal. O descaramento em usar inverdades e agressões verbais, com linguagem chula e provocativa, atingiu um nível inaceitável. Ou a Justiça Eleitoral coloca ordem nas eleições, ou teremos cada cada vez mais pessoas sérias e sensatas afastadas da política.

Parece óbvio que o remédio ideal para fazer a limpeza crucial é o voto. Mas, nesse mundo midiático, parece ser impensável a essencial paridade de armas. Na disputa entre a barbárie e a civilização, a democracia sai fortemente abalada. É muito constrangedor imaginar a necessidade de uma intervenção maior do Poder Judiciário, já tão presente na realidade brasileira. Mas sem critérios de, no mínimo, civilidade, nós veremos esses seres escatológicos ocupando cada vez mais espaços na política.

Essa é uma discussão que cabe a todos nós fazermos. Qual deve ser o papel da Justiça Eleitoral diante dos frequentes abusos que, de certa forma, desestabilizam o Estado Democrático de Direito? Em um país onde o Poder Judiciário, normalmente patrimonialista, machista, misógino e conservador, assumiu o protagonismo contra a tentativa de golpe de Estado contra a democracia, seria temerário dar tanto poder à Justiça Eleitoral? Essa é uma preocupação real que deve fazer parte dos nossos debates.
O Judiciário é um poder inerte. Só age se provocado. Em um passado recente, que, na realidade, ainda se projeta no presente e no futuro, foi o Judiciário que manteve a estabilidade democrática. Com a presença forte de um Executivo fascista e golpista e com a omissão de grande parte do Legislativo, que estava cooptado pela extrema-direita, foi o Judiciário que se apresentou em defesa da Constituição.
Em tempos de normalidade, o ideal é que a pauta passe longe do STF (Supremo Tribunal Federal), salvo nas questões inerentes ao seu espaço constitucional. Todavia, na crise foi –e, de certa forma, ainda é– necessário um chamamento maior do Judiciário, que não se abaixou na hora do tapa e fez  valer a Constituição. Agora, a crise é de outra natureza e não é uma questão pontual nas eleições brasileiras. O fenômeno do crescimento sem critério e sem limite ético é mundial e assusta a estabilidade democrática.
O governo Bolsonaro, escrevi diversas vezes, fundamentou-se na mentira, na disseminação do ódio e no enfraquecimento das instituições. Um povo submisso e seguidor fiel das inverdades que estruturavam e fundamentavam o governo é o caminho seguro para a perpetuação do arbítrio e da violência institucional. A desinformação criteriosa como forma de dominação. A propagação da mentira como maneira de governar. Tudo leva a um aniquilamento das estruturas democráticas e das discussões que deveriam nortear o debate que interessa aos brasileiros. Por isso, o país assistiu, perplexo e surpreso, o candidato Datena, ao perder as estribeiras em um debate ao vivo na televisão e golpear o oponente Pablo Marçal com uma cadeirada.
As ofensas assacadas contra Datena já haviam passado de qualquer limite do razoável e do aceitável. A reação, embora seja triste constatar, foi dentro de um contexto no qual boa parte dos eleitores parece ter aceitado. Em função disso, a necessária indagação: qual o papel do Tribunal Eleitoral? É possível um candidato mentir, provocar e instigar até que entre em campo o direito criminal e substitua o eleitoral? Qual o risco de dar superpoder ao Judiciário também na área eleitoral? É uma discussão séria e urgente. Por enquanto, volto a uma história que já contei aqui neste espaço.
Em minha cidade natal, Patos de Minas, tinham 2 cidadãos desocupados que passavam as noites vagando pelas ruas, bebendo e provocando um ao outro. Eram ameaças diárias e recíprocas. Um baiano e um gaúcho. Um dia, o gaúcho apareceu morto. A polícia sequer investigou. Prendeu o baiano. Levado à frente do juiz, ele foi interrogado:

–“O senhor matou o gaúcho?”, perguntou o juiz. –“Doutor, achá bão é crime?”, respondeu o baiano. –“Como é isso?” –perplexo, o juiz indagou. –“Matá eu não matei não, mas achei bão demais ele ter morrido”, o baiano falou com desconcertante sinceridade.

Fonte: www.poder360.com.br

Um novo bispo para Caicó

Padre João Medeiros Filho

Os católicos do Seridó esperam um novo pastor. O oitavo desde 1941, quando chegou Dom José de Medeiros Delgado, um homem de Deus, que deixou saudades. Era um paraibano dinâmico, com ancestralidade em Serra Negra do Norte (RN), animando a Igreja daquela região. Criou o Ginásio Diocesano Seridoense para educar os rapazes. Fundou o Seminário Santo Cura d´Ars a fim de formar os sacerdotes. Organizou a Escola Pré-vocacional, experiência pioneira de ensino profissionalizante no RN, bem como a Escola Doméstica com o objetivo de preparar as donas de casa. Pensou nas mães operárias, idealizando a “Pupileira”, primeira creche caicoense. Preocupou-se com a formação dos líderes cristãos, ministrando palestras e cursos organizados pela Ação Católica. Desejou um clero bem preparado teologicamente, enviando seminaristas para estudar na Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma). Pensou na solidão dos idosos, legando à região o Abrigo Professor Pedro Gurgel. Amava nossa cultura. Visitava as fazendas, bebia leite nos currais, participava de vaquejadas, degustava cuscuz, tapioca, mungunzá, arribaçã, curimatã, peba e mocó. Jantava coalhada adoçada com rapadura. Exalava o cheiro de suas ovelhas. Mostrou-se autêntico sertanejo, vivendo o que escreveu Paulo: “Para todos eu me fiz tudo, para certamente salvar alguns” (1Cor 9, 22).

O pastor que há de vir, seja: José, Luiz, Francisco ou qualquer outro, alguém que ame profundamente o Povo de Deus e queira bem ao Seridó, encantando-se com suas pedras. Fique extasiado com o pôr do sol, anunciando o fim de mais um dia de graças e alegria. Saiba ver a vida e os traços divinos na beleza de nossas tradições e costumes. Queira sentir a brisa da aurora e se emocione com o aboio dos vaqueiros, tangendo o gado, metáfora dos fiéis na procissão da vida rumo ao Infinito. Rezo para que o próximo bispo possa ser um conhecedor das experiências de chuva, vibre com açudes e barragens sangrando. Saiba a hora indicada pela estrela da manhã – imagem bíblica de Maria – para recitar o Rosário e o Ofício da Virgem. Peço a Cristo que o vindouro bispo assimile a mentalidade seridoense para celebrar a liturgia de seus valores. Possa o Espírito Santo conceder-lhe a criatividade semelhante à de Delgado, a piedade de Adelino, a missionariedade de Tavares, a mansidão de Heitor, a preocupação com o social de Jaime, a simplicidade de Delson e o espírito fraternal de Antônio.

Rogo ao Pai que o futuro prelado se coloque onde seus fiéis estiverem, aos pés de Sant’Ana ou à sombra das folhagens parcas dos sítios, ouvindo o clamor oriundo da seca. Admire a arte dos bordados seridoenses, trazendo para os cristãos a harmonia dos pontos e o colorido das linhas. Assim almejo um bispo, capaz de dialogar com os mestres e doutores nos “campi” universitários, alegrar-se com a singeleza e contrição da velhinha que sequer canta acertadamente o bendito: “Ó Virgem Senhora, Mãe da Piedade, livrai-nos da pena da ‘maternidade’ [por eternidade].” Espera-se um pastor identificado com o rebanho, cantando as ladainhas do Maestro Felinto Lúcio e de outros compositores do Seridó.

Rezarei para que o futuro prelado caicoense se apresente como um peregrino em permanente estado de escuta, diálogo, conversão e prece. Tenha a influência de Sant’Ana, educadora que transmitiu com amor e respeito a Palavra Sagrada a Maria Santíssima. Seja bem-vindo o escolhido de Deus, ao aceitar com gratidão e responsabilidade o bispado que lhe é confiado por Cristo. Sinta-se sempre feliz, dizendo: “Sou do meu [povo] amado” (Ct 6, 3). Ao longo do seu pastoreio, lembre-se das palavras do Papa “Quem aceitar ser bispo, pensando em status e poder, não se realizará em seu ministério” (Discurso aos representantes do CELAM, na JMJ/RJ). Seja capaz de animar as ovelhas do seu redil: clero, religiosos e leigos, esperançosos e revigorados na fé e caridade. Deseja-se um pai terno, paciente e solícito. Nossa prece para que o novo antístite viva o que disse Francisco ao episcopado holandês, na visita “ad limina”, em 2013: “Não se esqueçam de ir em busca das ovelhas famintas, que não conseguem se aproximar.”  E que, um dia, todos possam proclamar: “Bendito aquele que vem em nome do Senhor” (Lc 19, 38).

Zero à notação

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Na Europa, em especial na França, já de algum tempo, há quem denuncie aquilo que eles chamam de abuso das “notações” – leia-se a prática de se classificar ou dar nota a tudo –, por consumidores/clientes, em sites de diversas empresas (a Uber, por exemplo) ou mesmo em plataformas virtuais para tanto direcionadas (a exemplo do TripAdvisor).

Alega-se que esse tipo de notação tem “infernizado” a vida dos trabalhadores das empresas avaliadas. As notas dadas, marcadamente subjetivas, têm ensejado reduções de salários, suspensões de contrato de trabalho ou mesmo demissões com justa causa, entre outras penalidades. “Boicotem esse sistema abjeto”, é o que já pedem as organizações em prol dos trabalhadores.  

Ademais, na selva virtual de hoje, as inúmeras plataformas especificamente direcionadas para a notação têm sido um inferno não só para os trabalhadores. Basta irmos ao Google e encontraremos profissionais liberais – médicos, por exemplo – bem ou muito mal “notados”. E especificamente quanto ao Golias da Web TripAdvisor, muito em razão dos chamados “serial-noteurs” (de boa ou má-fé), este tem se tornado uma ameaça “insuportável” às empresas/profissionais de hotelaria e de restaurantes, na França, mas também no mundo inteiro.

Novamente estudando na Aliança Francesa de Natal, por intermédio do nosso livro/método de francês “Défi 5”, tive acesso a um texto do Concierge Masqué da revista Vanity Fair francesa, em que se grita “Morte ao TripAdvisor”, uma plataforma que, veiculando as “chantagens mesquinhas” dos clientes de restaurantes e hotéis – muitas vezes em busca de um jantar ou um pernoite como recompensa –, transformou-se numa “ditadura de Jecas Tatu”. Texto forte.

A moda da notação/classificação está se espalhando perigosamente. O tal Concierge Masqué até especula sobre uma exigência do governo chinês de uma notação recíproca entre seus concidadãos, algo que “não iria desagradar a todos neste minúsculo mundo”. Nessa toada, aliás, é interessantíssimo o episódio “Nosedive” da badalada série de ficção científica britânica “Black Mirror”. Na estória, as pessoas são reciprocamente notadas/classificadas em um aplicativo do tipo Instagram, com avaliações de 0 a 5. Graças às notas/classificações de outrem, a pessoa pode conseguir tudo na vida… ou nada. E aí temos a confirmação da máxima de Jean-Paul Sartre (1905-1980) – “O inferno são os outros”.

Embora isso ainda possa ser tido como um tipo de distopia, acho que não estamos muito longe desse “abominável mundo novo”. Por exemplo, na Internet, outro dia, dei de cara com mais de um quiz que prometia apontar a minha “real” posição política, se “de esquerda ou de direita”. No geral, fui classificado como “de centro”, mas, por ser a favor da proteção do meio ambiente, “com ideias de esquerda”. Ainda acho que proteger o meio ambiente é um dever universal, cósmico.

Para os mais diversos fins, até de amizade ou relacionamento, as pessoas já estão hoje notando/classificando os outros como de “direita” ou de “esquerda”. E laços são completamente rompidos. Aliás, tenho um amigo querido, já fanático por natureza, que pedestremente nota/classifica a tudo e a todos com base na posição dos assentos da Assembleia Revolucionária Francesa, fato histórico que ele desconhece por completo. Sentado num já imaginário “Muro de Berlim”, esgoela delírios destros e canhotos. Em meio a qualquer assunto, sai com “esse cara é um esquerdista fdp”, “isso é coisa da esquerda”, “na direita não tem isso não” e por aí vai. Outro dia, curioso, eu perguntei a ele se “quem toma suco de maracujá é de direita ou de esquerda”. Gostaria de saber, sob esse critério, de que lado da sua revolução imaginária eu estaria.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Neymar X Gabrielzinho: qual nos representa?

Na imagem, o jogador de futebol Neymar Jr (esq.) e o nadador paralímpico Gabriel Geraldo (dir), conhecido como Gabrielzinho
Na imagem, o jogador de futebol Neymar Jr (esq.) e o nadador paralímpico Gabriel Geraldo (dir), conhecido como Gabrielzinho.
Por Kakay.
“Não sabendo que era impossível, ele foi lá e fez.” –Frase atribuída a Jean Cocteau (pode não ser dele, mas se aplica ao Gabrielzinho). O fim das Paralimpíadas em Paris 2024, que foi um sucesso absoluto, deixou um ar de quero mais no mundo todo, pelo sucesso absoluto das competições, e um sentimento de enorme alegria e alívio na França. Foram momentos de tensão e de inúmeros boatos de atentados que intranquilizaram o governo e os franceses. E, claro, a todos nós turistas. Em um evento dessa magnitude, sempre fica um espaço para reflexão: a união dos povos, a solidariedade, o espírito olímpico, a garra e a dedicação dos atletas. São muitas as lições que deixam um legado. Cada país, nessa hora, olha para o que foi marcante e para o que mais emocionou.

No caso brasileiro, a performance exuberante da Rebeca Andrade, juntamente com sua história de vida, sua técnica, leveza, beleza e charme, já seriam mais do que suficientes para nos encher de orgulho. Bem como a garra e a determinação do vôlei e do futebol femininos.
São muitos os exemplos que nos dão satisfação. Desde aquele atleta que não conseguiu nenhum destaque na prova, mas que, parece óbvio, só por estar lá competindo já demonstra que todo o esforço e sacrifício valeram a pena. Até aquele que arrematou uma medalha. Seja de ouro, de prata ou de bronze. Para um esportista, levar a medalha para casa é carregar consigo um pouco do país dentro do peito.
Cada um faz o registro da sua emoção. O esporte é um misto de paixão e emoção. Sou apaixonado por futebol. E fiquei muito frustrado de ver a não classificação do time masculino brasileiro para disputar as Olimpíadas.
 
Senti aquele gosto amargo na boca de que o exemplo de um bilionário como Neymar, com suas caidinhas ridículas e patéticas, chamuscou toda uma geração de jogadores. Será que os salários megaestratosféricos e o excesso de glamour idiota deram um tiro no futebol brasileiro?

É verdade que, desde a 1ª participação em uma edição dos Jogos Olímpicos, em Helsinque 1952, já ficamos fora de 5 Olimpíadas:
  • Melbourne 1956;
  • Moscou 1980;
  • Barcelona 1992;
  • Atenas 2004;
  • e a última, Paris 2024.
Com o coração na mão, estamos acompanhando o sofrimento da fase eliminatória da Copa do Mundo. Não é demais registrar que o Brasil foi sede de duas Copas do Mundo, em 1950 e 2014, e é a única Seleção que esteve em todas as edições do evento. É o maior vencedor da competição, com 5 títulos. É bom lembrar que só participou de todas as Copas porque decidiu furar um bloqueio dos países vizinhos e frustrou um boicote. Todavia, essa é outra história.
Porém, o que mais me emocionou foi a participação nas Paralimpíadas de Paris do nadador Gabrielzinho. Sem os 2 braços e com as pernas bem pequenininhas, ele ganhou 3 medalhas de ouro. Virou o xodó da torcida francesa e disse que sua 4ª medalha era exatamente a receptividade que teve dos torcedores. Imagino, na verdade nem posso imaginar, o quanto sua vida deve ser sofrida.
Mesmo os detalhes do dia a dia, certamente, são de enorme dificuldade e superação. Mas ele exala alegria, simpatia, solidariedade e dedicação. Realmente, foi muito emocionante vê-lo disputar as provas de natação com a surpreendente habilidade na água.
Na imagem, o nadador Gabrielzinho, campeão paralímpico nas Paralimpíadas de Paris 2024.
Imagino quando disse, pela 1ª vez, que queria ser nadador. Coloquei-me na piscina e me comovo só em pensar na cena. E foi desconcertante e estimulante ver os vídeos da sua preparação para as provas.
Ao ver esses mimados se mostrando nos iates, nos carrões e nas caidinhas esdrúxulas, valorizo ainda mais a força de um exemplo como o Gabrielzinho. Penso que sim, o Brasil tem jeito. Obrigado, Gabrielzinho!
Remeto-me a Pessoa, na pessoa de Ricardo Reis:
“Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago

a lua toda brilha, porque alta vive.”

www.poder360.com.br

Solidão, presença indesejável

Padre João Medeiros Filho

A solidão, ausência de companhia e interlocução, marcada pelo isolamento, é algo doloroso. Existe o risco de levar alguém à depressão e morte. Faz-nos pensar na música de Vinícius de Moraes e Toquinho “Um homem chamado Alfredo”. Este contava tão somente com a companhia de um papagaio e um gato de estimação. Desistiu de viver, inalando gás de cozinha. Dizia-se cansado da vida, por não ter ninguém com quem falar, alguém para amar, uma mão para apertar. Entediou-se com sua invisibilidade e existência que não atraía ninguém. A solidão é um dos grandes males testemunhados nos dias de hoje. Pode acontecer em um pequeno quarto ou sentida em meio às multidões que passam e não veem, escutam e nem se dão conta de que ali há um semelhante com sentimentos, sonhos e desejos. “É solitário andar por entre a gente”, desabafava Camões num soneto.
Os seres humanos são relacionais, necessitando da presença e interação de outrem para viver. O isolamento acaba destruindo uma pessoa, prematura ou repentinamente. O governo britânico criou o Ministério da Solidão, ao constatar que o Reino Unido invertia a corrida mundial pela longevidade, apresentando índices de mortalidade precoce em seus cidadãos. Tornou-se para os ingleses problema de saúde e política pública. Carecia de um órgão para cuidar dessa nova situação humana. Suas maiores vítimas são os idosos. Há cidadãos que já não contam mais no mapa da produtividade, contribuição social e beleza. Têm suas atividades físicas limitadas. Segundo os versos de Vinicius, “andam com os olhos no chão, pedindo perdão por existir e incomodar.” São impotentes, não tendo a quem pedir socorro, quando se aproximam do abismo da depressão. Esse grupo avoluma-se nas aglomerações modernas. A longevidade aumenta e não se morre mais no apogeu da existência ou na flor da idade. Nestes casos, a partida era sentida e pranteada. Na velhice, o óbito poderá deixar um alívio para alguns.
Os solitários de hoje são majoritariamente os idosos, órfãos de filhos vivos, esquecidos pela família. Não raro, os descendentes e familiares moram longe, acarretando dificuldade financeira e de deslocamento para visitá-los. Ou, porque atrapalham a ânsia de lazer e consumo que predomina na nas gerações atuais. Quem vai querer um velho incomodando um fim de semana de festas, comemorações e programas? E o idoso fica em casa, geralmente pequena e sem muitos recursos. Onde estão os amigos do ancião? Muitos, doentes; vários já partiram. E os recursos para passeios e diversão? As aposentadorias são parcas, mal dão para comprar comida e remédios. Os filhos ajudam? Provavelmente. Nem sempre com o suficiente. Há outras prioridades, como levar as crianças a Disney, esquiar na Europa, divertir-se em casas de campo ou de praia, bem como frequentar restaurantes badalados. E assim, o final de muitos idosos é marcado de Alzheimer, confinamento em algum asilo, tristeza com a presença domiciliar de um cuidador impaciente ou improvisado.
A solidão cresce com a diminuição das energias, o desaparecimento dos círculos de amizade. Em muitas cidades brasileiras há ainda o agravante da violência e insegurança, impedindo o hábito de um contato assíduo. Os vizinhos cuidam cada um de sua casa, vida, família etc. Alguns solitários se apegam a animais. Alfredo tinha um louro e um bichano que estimava. Quando morre o companheiro de bico ou quatro patas, a dor é equivalente à perda de um parente. O idoso sente-se descartado por uma sociedade, que não previu um lugar para ele, por uma família que progressivamente o abandona e esquece. É necessário tornar-se mais humano, aprendendo a povoar a vida do semelhante. Cristo prometeu aos apóstolos: “Não vos deixarei sozinhos” (Jo 14, 15). E acrescentou: “Estarei convosco todos os dias” (Mt 28, 20). O cristianismo é comunhão, pois é trinitário. Solitários não, e sim solidários somos chamados a ser! Isso implica em estar atento ao outro, à sua tristeza e dor, a seus anseios e alegrias. Na solidão, o ser humano mergulha dentro de si mesmo numa autodefesa contra o isolamento a seu redor. Toma consciência de sua pouca importância no mundo externo. Mas, Deus assegura-nos sua permanência a nosso lado: “Não temas, porque eu estou contigo” (Is 41,10).