Haddad, a Faria Lima e o Nordeste

Na imagem acima, Haddad durante palestra na USP

Por Kakay.

“Você acha que este Congresso é ruim? Espere o próximo.”

Ulysses Guimarães

O melhor da política é ler e ouvir os comentários mais desencontrados sobre o que pode ocorrer com o país. Advoguei para 4 presidentes da República, mais de 90 governadores e dezenas de ministros e senadores. Sempre me diverti com os comentaristas políticos fazendo análises, muitas vezes, completamente divergentes da realidade. Até por isso, permito-me também dar meus pitacos, sem nenhuma pretensão, mas metendo a colher de pau na discussão após as eleições municipais.

Acho graça das afirmativas peremptórias sobre a provável derrota do PT em 2026. Penso ser importante lembrar que existe, no Brasil, um fenômeno chamado Lula. Ele se elegeu presidente da República em 2003, foi reeleito e conseguiu eleger sua sucessora, a presidenta Dilma (PT), que não era propriamente uma candidata popular. Qualquer político teria sido eleito com o apoio dele. É preciso recordar a história para entender esse fenômeno, o fundador e quase, esse um grande problema, dono do PT. Enfrentou um impeachment covarde, criminoso e irresponsável da presidenta Dilma. Hoje, todos admitem que não houve crime. Ou seja, retiraram da Presidência da República uma presidenta honesta e legitimamente eleita pelo voto popular para atender a interesses políticos escusos. Crime. Golpe.

Com o clima que se instalou no país à época, o PT perdeu 60% dos seus prefeitos e vereadores na eleição de 2016. Enquanto o PT fez 256 prefeituras, o PMDB (hoje, MDB – Movimento Democrático Brasileiro) fez 1.028 e o PSDB –lembram-se dele?– fez 792. É bom rememorar que o afastamento definitivo da presidenta ocorreu em 31 de agosto de 2016 e o 1º turno das eleições municipais foi praticamente 1 mês depois. Não faltaram analistas políticos para “vaticinarem” o fim do Partido dos Trabalhadores. Depois, removeram os principais auxiliares e ministros do Lula, inclusive o grande José Dirceu, que seria seu sucessor natural, para estrangular a continuidade do PT no poder. Não satisfeitos, a ultra direita e a burguesia econômica prenderam Lula por 580 dias, mantiveram-no em uma cadeia comum. Ele, com muita dignidade, não se entregou. Mas o país viu o fascismo chegar ao poder pelo voto popular nas mãos manchadas de sangue do bolsonarismo, impulsionado pelo lavajatismo. O Brasil foi arrastado para o abismo sob todos os ângulos.
Ainda assim, contra todos os poderosos grupos, com o desgaste de um impeachment criminoso, amargando 580 dias de cadeia, com a maior ação midiática contrária da história do Brasil e com um movimento nojento e abominável como a Lava Jato, Lula enfrentou o presidente da República em exercício, em 2022. Foi uma campanha de reeleição na qual Bolsonaro gastou em torno de R$ 370 milhões de dinheiro público e Lula foi eleito. Ganhou. Governa o país pela 3ª vez. Será que alguém acha que as eleições de milhares de cidades pequenas pelo país, de prefeitos do PL, terão real importância nas eleições para presidente da República? O prefeito eleito da cidade de Patos de Minas vai influenciar a eleição para a Presidência da República? Por sinal, interessante notar que, para quem acompanhou as eleições para prefeito, parecia, pela grande mídia, que só havia eleição para o município de São Paulo. Vez ou outra lembravam-se do Rio de Janeiro. E olhe que, em SP, o fascista do Pablo Marçal (PRTB) ficou fora do 2º turno. E, no Rio, Eduardo Paes (PSD) deu uma surra histórica em Bolsonaro e nos seus seguidores. O fascista apoiou um auxiliar direto dele que sequer conseguiu ir para o 2º turno.

Nesse contexto, é possível imaginar um governador como Tarcísio de Freitas (Republicanos), que comanda o orçamento de São Paulo, só menor do que o da União, afastar-se do cargo, deixando o governo do Estado mais poderoso da Federação, e não tentar uma reeleição razoavelmente tranquila para enfrentar o velho Lulinha paz e amor?! Só que agora com uma pitada de maldade. Não devemos nos esquecer de que em 2018, com Lula na prisão e o PT sendo demonizado, Fernando Haddad teve 44.87% dos eleitores, ou seja, 47.038.963 votos. E isso tendo demorado muito a sair candidato, pois parte significativa das pessoas queria Lula, mesmo ele estando preso. Agora, olha eu aí fazendo conjecturas como se fosse analista político: é esperar a vitória do Lula em 2026 e depois pavimentar a eleição de Haddad para Presidência da República em 2030. Ele é novo e brilhante. Já conquistou a Faria Lima, só falta conquistar o Nordeste.

Sempre nos lembrando de Nietzsche: “Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar, para atravessar o rio da vida – ninguém, exceto tu, só tu”.

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A gratidão, virtude esquecida

Padre João Medeiros Filho 

A gratidão é uma das grandes virtudes humanas. Santa Teresa de Calcutá a definia como “delicadeza da alma.” Esopo a chamou de “virtude das almas nobres”. Jesus tratou do assunto com os apóstolos. Lamentou a ingratidão. Pode-se ler no evangelho de Lucas o relato da cura dos dez leprosos por Cristo (Lc 17, 11-19). Foram agraciados, após a súplica: “Mestre, tem compaixão de nós” (Lc 17, 13). Um deles, ao perceber que havia sido curado, voltou glorificando a Deus. Prostrando-se aos pés do Senhor, agradeceu-Lhe. Então lhe foi perguntado: “Por acaso, não foram dez os curados? E os outros nove, onde estão?” (Lc 17, 17). Jesus ressaltou que apenas o samaritano voltou para render graças pela cura. Mostra-nos que a sensibilidade humana não é determinada pela raça, religião, cultura, nível de instrução ou condição social. É fruto de cultivo da personalidade e ajuda da graça divina. Ser grato transforma nosso coração, ilumina e amplia a nossa visão. Permite-nos entender a vida de modo diferente. Quem dá, participa do mistério do Pai Celestial, que concede tantos bens e graças a seus filhos. Agradecer é a consciência dessa gratuidade. “Senhor, deste-me tanto em minha vida. Dá-me uma coisa a mais: um coração agradecido”, rezava o poeta galês George Herbert.

Saber agradecer faz crescer no coração do homem o sabor pela bondade. Ajuda-nos a eliminar sentimentos que obscurecem a mente, fecundando o desejo de ser generoso. Dissipa aquilo que enfraquece a compaixão ou aumenta a indiferença. Ajuda a vencer a soberba e a inveja, bem como tantos vícios e erros de uma sociedade que adota dinâmicas desastrosas de disputa, mentira, injustiça e ódio. São Francisco de Assis escreveu que “a gratidão é uma das moedas mais difíceis de ofertar na vida.” Por isso, preocupava-se sempre em ser grato a tudo e a todos. Agradecia ao irmão sol por aquecê-lo e proporcionar vida à terra. Ao irmão vento, por acariciá-lo e à natureza nos dias de calor.  À irmã lua por brilhar e enfeitar as noites. Ao irmão sofrimento, que lhe permitia aprendizados sobre o viver humano. O exemplo do “Poverello” remete-nos a profundas reflexões neste tempo em que predominam insensibilidade, utilitarismo, desrespeito e desprezo pelo outro. Na desenfreada busca por sobrevivência e sucesso, vivemos encastelados, envoltos em problemas e desafios. Nesse tumulto de compromissos e dificuldades, não paramos para perceber tudo aquilo que Deus nos regala e, egoisticamente, esquecemo-nos do agradecimento.

Os amores dos filhos e netos que, aconchegados em nossos braços, parecem amainar as dores da alma, quem no-los ofertou? A possibilidade do progresso profissional e amadurecimento humano, as chances de desenvolvimento do intelecto, a paz interior, o bem-estar do espírito, quem nos concede? O corpo que é nosso instrumento de expressão, trabalho, convivência, emoções, quem no-lo presenteou? E nós, mal nos damos conta da grande bênção da saúde, quando nossa corporeidade, apesar das deficiências ou limitações, oferece-nos oportunidades riquíssimas.

Temos o costume de ser gratos a Deus e à vida pelas nossas conquistas e alegrias? E por que não sermos também agradecidos ao Pai pelo mal que não nos atingiu, pelas dores que não precisamos suportar? E mesmo que os dias difíceis nos cheguem à jornada terrestre, agradeçamos a dor, que lapida a alma imperfeita, fazendo brotar virtudes que ainda permanecem latentes em nossa intimidade. Deveremos sempre recordar que dependemos da bondade e misericórdia do nosso Criador, o qual nos sustenta na caminhada da via. Foi comovente a história de um idoso italiano, vítima do coronavírus quando, após a alta hospitalar, foi-lhe cobrado um valor alto pelo uso de oxigênio. Chorou efusivamente e exclamou: “Sou um ingrato, tenho isso dias e dias, anos e anos, gratuitamente e não percebia. Deus nunca me pediu nada em troca.” A gratidão será o sentimento que nos inundará a alma de bênçãos divinas, doce quietude e suave luz. Aqueles que a têm adormecida, é preciso despertá-la. É necessário cultivá-la e manifestá-la. Por se tratar de uma virtude cristã, os pastores devem lembrar sempre a sua importância e praticá-la. Digamos como o salmista: “Dai graças ao Senhor, pois Ele é bom. Sua bondade é infinita, incomensurável a sua misericórdia” (Sl 118/117, 1).

Minha aposta

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Por esses dias, muito se falou da “epidemia das bets” no Brasil. Não precisava ser dos mais atentos para notar que havia/há algo de podre no reino… do Brasil. São tantas bets na TV e patrocinando times de futebol que já não sabemos mais quem é quem. Jogadores estão envolvidos em apostas. “Influenciadores” e artistas metidos em lavagem de dinheiro e outros crimes. Gente presa. Tem um tal do “Tigrinho”. E, claro, amigos ou conhecidos perdendo o que têm; outros, o que nem têm. A epidemia, para a qual ainda não temos a vacina, adoeceu/viciou muitíssima gente.    

Os números, que colhi de uma matéria da Deutsche Welle, são estarrecedores: “Um estudo da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC), em parceria com a AGP Pesquisas, mostrou que 63% de quem aposta no país teve parte da renda comprometida com as bets. Outros 19% pararam de fazer compras no mercado e 11% não gastaram com saúde e medicamentos. Esses dados refletem uma tendência preocupante, evidenciada ainda mais por um relatório divulgado pelo Banco Central nesta terça-feira (24/09), que revelou que beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em sites de apostas esportivas, somente no mês de agosto. O valor equivale a 21,2% dos recursos distribuídos pelo programa no mesmo mês. Ainda segundo o banco, 24 milhões de brasileiros fizeram ao menos uma transferência deste tipo no país desde janeiro. A maioria dos apostadores tem entre 20 e 30 anos e gasta cerca de R$ 100 por aposta. Este valor sobe de acordo com a idade. Brasileiros acima de 60 anos gastam uma média de R$ 3 mil reais em bets”.

Quando gozava dos meus 20 anos, eu ainda arriscava apostas no futebol. ABC x América. Presencialmente, no estádio. Coisa pouca e o meu ABC não decepcionava. Mas essa onda não durou muito. Por temperamento sou econômico. Para além disso, um livro teve forte influência em mim: “O jogador” (1867) de Dostoiévski (1821-1881). Escrito para que o autor pagasse suas próprias dívidas de jogo, é uma pequena obra-prima, parcialmente autobiográfico, de quem entendia bem – ou mal, a depender do ângulo – de jogos e apostas.

A trama de “O jogador” gira em torno de Alexei Ivanovich, que, apaixonado (as paixões…), é introduzido no jogo pela manipuladora Polina Alexandrovna. Alexei torna-se “profissional”. Joga para sobreviver. E para “matar” a compulsão. A desgraça chega. No final, Alexei tem uma chance de redenção. Mas esse fim só retrata a loucura do vício: “Oh! Foi um notável exemplo de resolução: tinha perdido tudo, tudo… Saio do casino, olho… um florim repousava ainda na algibeira do meu colete: Ah! Ainda tenho com que jantar!, disse eu, mas depois de ter andado uns cem passos, mudei de opinião e voltei atrás. Pus esse florim no manque (dessa vez foi no manque) e, realmente, experimenta-se uma sensação especial quando, sozinho, num país estrangeiro, longe da pátria, dos amigos, não sabendo o que se vai comer nesse mesmo dia, se arrisca o último florim, o último, o último! Ganhei e, vinte minutos mais tarde, saí do casino com cento e setenta florins no bolso. É um fato! Eis o que pode por vezes significar o último florim! E se tivesse deixado ir abaixo, se não tivesse tido a coragem de me decidir?… Amanhã, amanhã, tudo estará acabado!…”.   

Nelson Werneck Sodré, em “Síntese de história da cultura brasileira” (DIFEL, 1985), já lembrava que os gostos, hábitos, valores, ideias e atitudes – o agir do homem moderno – estavam cada vez mais condicionados pelos meios de comunicação de massa. Se então vivíamos a era do rádio, do cinema e da TV, hoje somamos o fenômeno, mais agudo, da Internet. A ação crescente desses meios de comunicação de massa – sobretudo a TV e a Internet – criam um certo tipo de “cultura”, a “cultura de massa”, cujas “características essenciais seriam a homogeneidade, a baixa qualidade e a padronização de gostos, ideias, preferências, motivações, interesses e valores”.  

Dostoiévski é um autor cult. Dizer que é “pouco lido” no Brasil seria quase um eufemismo. Não faz parte da nossa “cultura das massas”. Mas procuro manter minha aposta nos grandes livros. Na influência destes sobre o público. É fato que o lançamento, em 1784, de “Os sofrimentos do jovem Werther”, de Goethe (1749-1832), provocou uma onda de suicídios na Europa. Longe de mim desejar a repetição de atos desesperadores. Pensava num relançamento “bombástico” de “O jogador” como fomentador da consciência dos malefícios das apostas/jogos. É muito arriscado?

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

O CNJ, a verdade, a utopia e a Justiça

Martelo da Justiça
Cortes têm se debruçado seriamente em investigar ações da Lava Jato para passar o Brasil a limpo e retomar estabilidade democrática. Na imagem, o martelo da Justiça.

Por Kakay

“Mudar o mundo, meu amigo Sancho, não é loucura, não é utopia, é justiça.” –Frase bem atribuída a Dom Quixote Quando começamos a combater os excessos da força-tarefa de Curitiba, principalmente os do ex-juiz Moro e dos seus procuradores adestrados –coordenados por Deltan–, ainda não imaginávamos a teia de capilaridade que estávamos enfrentando.  Aos poucos, o xadrez foi se delineando: boa parte do Tribunal Regional da 4ª Região, alguns ministros das Cortes superiores, interesses poderosos no Brasil e no exterior –especialmente na área de petróleo, construção pesada, grande mídia, partidos políticos, Bolsonaro e a elite brasileira, enfim. Éramos poucos os que se aventuravam em palestras por todo o Brasil e no exterior, em artigos escritos, bem como em debates públicos. Um confronto que nos fez perder muitos clientes e a ter que fazer duros embates com os que se julgavam donos do poder.

Lembro-me de um certo advogado, sócio do bando, dizer em uma palestra que eu teria que deixar a advocacia, pois não haveria mais espaço para advogados como eu.  Ou seja, sem conluio com os procuradores e juízes, nós não poderíamos advogar. Sem aceitar torturar clientes com delações criminosas, nós estaríamos fora do mercado. Sem concordar em ser linha auxiliar do Ministério Público, sob as ordens de certo Judiciário, a advocacia não sobreviveria. Recordo-me sempre do poeta Trasíbulo Ferraz: “A vida dá, nega e tira”. Todo esse conjunto de enfrentamento levou à percepção de que o bando performava uma organização criminosa, saqueando o país e com um projeto político. À época, eu dizia isso Brasil afora e, agora, reconheço que corria certo risco ao detonar tantos poderes. Mas penso que o Brasil tem uma oportunidade única de ser passado, pelo menos em parte, a limpo.  A entrevista concedida ao jornalista Leandro Demori pelo juiz Eduardo Appio –que chegou a ser titular na maldita 13ª Vara Federal de Curitiba–, bem como o seu livro “Tudo por dinheiro: a ganância da Lava Jato”, indicam um caminho que é o mesmo que eu trilhei anos atrás. 

Mas uma coisa é o fato de advogados fazerem o enfrentamento de grupos tão poderosos; outra, é um juiz federal que teve assento no centro do poder na República de Curitiba. Razão pela qual ele foi defenestrado. Porém, está tendo a coragem e a hombridade de vir a público dizer a verdade. A verdade é sempre a mesma, mas depende de quem a diz. Também tenho alertado o importante, sério e fundamentado trabalho levado a cabo pelo Conselho Nacional de Justiça, em junho de 2024, sob a coordenação do competente e independente ministro Luis Felipe Salomão, à época corregedor, que redundou em um avassalador relatório aprovado pelo Plenário do Conselho. 

O documento apontava suspeita de corrupção, peculato, prevaricação e organização criminosa por parte da cúpula da República de Curitiba. O relatório aponta sérias hipóteses criminais que não estão sujeitas à esfera administrativa e que serviram como notícia de crime para os órgãos competentes, especialmente à Polícia Federal e ao Ministério Público –titular exclusivo da ação penal. 

O atual corregedor do CNJ, ministro Mauro Campbell, igualmente sério e comprometido com a moralidade pública, tem a atribuição de zelar pelo bom andamento das investigações. Todos nós temos. Todavia, bom saber que não é só um grupo pequeno de advogados, professores e defensores públicos que está atrás da verdade. Pois, como nos ensinou Winston Churchill:  “A verdade é inconvertível, a malícia pode atacá-la, a ignorância pode zombar dela, mas, no fim, lá está ela”.

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Às vésperas das eleições


Padre João Medeiros Filho

Em breve, as eleições municipais. O descrédito de muitos brasileiros pelos seus políticos é impactante, principalmente quando se trata de partidos e convicções ideológicas. Eles não servem ao povo, servem-se dele. Revelam-se incapazes de construir o bem comum. Engajar-se pela dignidade do ser humano é o único caminho para superar o menoscabo e a rejeição pelos que cuidam da “res publica”. Não se recupera a credibilidade com a simples presença de pessoas probas.

É preciso identificar nelas atos benéficos, que estabeleçam elementos determinantes para o bem-estar do povo. Dom Eugênio Sales, no III Simpósio para Pessoas de Poder Decisório, acontecido no Sumaré/RJ, dissera: “Quem se decidir pela vida pública, não pode desprezar a pessoa humana, imagem de Deus.” E arrematou com palavras de São Cipriano de Cartago (210-258), inspiradas no evangelista João: “É mentira chamar Deus de Pai, quando não se tem o sentimento de que o outro é realmente irmão.”

A Encíclica “Fratelli Tutti” indica o papel dos autênticos líderes: “Interpretar a vontade do povo para agir em favor dele.” Apenas lideranças qualificadas contribuem para alicerçar um projeto duradouro de bem comum. Por isso, têm a incumbência de admitir a prioridade do ser humano, para o qual existe a sociedade. No exercício da autêntica política exige-se o inegociável propósito de discussões honestas, buscando verdadeiramente defender causas legítimas e justas. Os homens públicos devem orientar-se pelos direitos e necessidades da população, outorgante e mandatária legítima de seus poderes.

Importa nessa perspectiva que os interesses partidaristas sejam relativizados. É imprescindível que os atores políticos estejam sempre imbuídos de honestidade material e intelectual, colocando em plano secundário as preferências meramente ideológicas. A política é válida, se construir uma comunidade justa, fraterna e solidária. Desvia-se de seus objetivos, quando propostas e atos contemplam prioridades de grupos. Da mesma forma, é deturpada ao se governar apenas para os sequazes. A consequência é o favorecimento de poucos, sobrando à maioria migalhas e sobejos. Não se tem conseguido penalizar aqueles que exploram, amesquinham e perseguem o povo, colocando vidas em risco pela desassistência e submissão a situações vis, análogas à escravidão.

Tudo o que fere o bem comum é desumano e anticristão, negando peremptoriamente a natureza da política. Merece atenção especial a desigualdade social no Brasil com seus vergonhosos e degradantes cenários para a cidadania. Gera exclusão e aprisiona os cidadãos com preconceitos e discriminações. O populismo insano é outra ameaça deletéria. Quem o pratica, busca atrair adeptos para massificar o povo. É aviltante, pois coisifica o indivíduo. Atualmente, fala mais alto o projeto pessoal de permanência ou volta ao poder. Esta é a tônica de vários candidatos. É muito grave, quando esse populismo favorece inclinações ignóbeis de grupos e facções. Detestável ainda é tentar submeter instituições e indivíduos ao servilismo. O candidato integro permanece aberto a críticas construtivas e mudanças autênticas, enriquecedoras para o homem.

Governantes e legisladores detêm a responsabilidade de oferecer às pessoas meios para sua realização como criaturas humanas. Por isso, é necessário aniquilar os contrastes. Os que estão no poder não estão autorizados a renunciar ao indispensável desafio de ajudar a construir um modelo de sociedade. Esta tem o dever de assegurar a todos o direito ao exercício da cidadania, partindo de suas peculiaridades. Há quem pense que ser líder é calar, manipular, “lacrar” e destruir os outros. Aqueles que se dedicam à vida pública são chamados a novos aprendizados para reconstruir a Pátria. “A política bem exercida é a forma mais alta da caridade”, afirmava Pio XI, seguido pelos últimos papas.

Quem a exerce terá de se imbuir dos ensinamentos bíblicos: “Ninguém busque seu próprio interesse, mas o do outro” (1Cor 10, 24). Os municípios estão nas mãos dos eleitores. Às igrejas cabe unir e não dividir. Aos pastores a tarefa de respeitar, iluminar e nunca aliciar. Neste final de campanha eleitoral, mister se faz que os cristãos reflitam muito e supliquem a Deus pelos futuros eleitos, responsáveis pelos destinos de nossa gente. É preciso que saibam “conduzir o povo com justiça e equidade” (Is 32, 1), “pois quando os justos são maioria e governam, o povo se alegra” (Pr 29, 2).

As madeleines

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

A madeleine – bolinho basicamente feito de farinha, manteiga, ovos e açúcar – é uma das delícias da França. Ela restou famosa, para os amantes das letras, por sua ligação com o grande Marcel Proust (1871-1922), que, escrevendo “Em busca do tempo perdido”, faz seu narrador ser invadido por graciosas memórias após provar um chá com as madeleines oferecidas pela mãe: “(…) no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal”.

A partir daí “la Madeleine de Proust”, como registra a revista Deguste (numa já antiga edição de 19 de abril de 2017), “se tornou uma expressão da língua francesa que se refere à memória involuntária, que acontece quando um som, cheiro ou sabor faz com que uma pessoa se lembre de algo, sem nenhum esforço adicional. A expressão, portanto, traz à tona o poder da memória inconsciente e como ela chega, de repente, de forma forte e irracional”.

Acredito, na mesma linha de Steven Pinker (em “Como a mente funciona”, Companhia da Letras, 1998), no “colorido emocional da experiência. Nós não apenas registramos os eventos, mas os registramos como agradáveis ou dolorosos”. E que todos nós, vez ou outra, de surpresa, topamos com as nossas “madeleines”, essas “memórias involuntárias” de um passado remoto – “fragmentos preciosos” se agradáveis –, que vêm espontaneamente à mente a partir das ocorrências cotidianas mais comuns. Não importa que sentido nos faça viajar no tempo/memória: pode ser o sabor do pedacinho de bolo de Proust, o cheiro infantil inconscientemente jamais esquecido ou o som de um amor serenamente perdido.

Eu mesmo relatei, por esses dias, o achado, em Paris, do livro “Les timbres: guide pratique du collectionneur” (Editions Atlas, 1984): com imagens/fotografias de selos em gostosíssima fartura, ele funcionou para mim como uma “madeleine”, em busca de um tempo em que, menino curioso, sonhava e aprendia com os amantes dos selos, filatelistas do mundo e da nossa “Cidade do Sol”. Lições aprendidas com Elmo Pignataro, o nosso maior colecionador, na sua casa da Ponciano Barbosa, rua sem saída que ia dar na comunidade das irmãs Doroteias do inesquecível Colégio Imaculada Conceição/CIC. As aventuras na rua Seridó de Mussolini Fernandes, durante décadas o nosso maior comerciante de selos. As visitas à casa da Nascimento de Castro de Rosaldo Aguiar, presidente do nosso Clube Filatélico e também pai de amigos de infância. As idas quase semanais aos Correios da Ribeira, cuja “agência filatélica” o saudoso Expedito cuidou por tantos anos, para a aquisição das mais recentes emissões comemorativas brasileiras.

De toda sorte, as “madeleines de Proust” são deveras irracionais. Bem estranhas até. Eu mesmo tenho uma, aliás recorrente, que posso classificar como “esquisitíssima”. O cheiro de estrume (grosso modo, “cocô de vaca”), odor em regra detestado, invariavelmente provoca em mim, de forma involuntária, uma sensação/sentimento muito agradável. Uma sensação de placidez, segurança ou mesmo gostosa saudade, que é complicado para definir, mas não é difícil de relacionar. Associo a uma época em que, ainda menino, ia – na verdade, íamos todos, meus pais, meus tios e primos, nossos amigos de outrora – à Fazendo Paraíso do meu pai. O curral, o leite cru, o cavalo Gugaga, a montaria nas ovelhas, o banho de tanque – num tempo em que todos que eu conhecia eram vivos – era tudo que o menino de então poderia desejar. 

Esse cheiro doce de estrume, que me leva de volta à Fazenda Paraíso, semelhante à “Madeleine de Proust”, por um hiato torna-me “indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade”. Faz-me desacreditar que somos todos medíocres, contingentes e mortais.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

 

O Supremo pode tudo?

Quem irá devolver a liberdade da pessoa injustamente presa?
ARTE KIKO – Quem irá devolver a liberdade da pessoa injustamente presa?

Por Kakay.

“É o tempo de travessia: e se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.” Fernando Pessoa

Brasil é um país de apaixonados. Mesmo em áreas nas quais a paixão deveria ser contida, há um uso desavisado de posturas e atitudes que extrapolam a racionalidade. No Poder Judiciário, a mega exposição de seus membros, especialmente dos ministros do Supremo Tribunal,  proporciona, às vezes, espetáculos em que os julgamentos são levados a ferro e fogo como uma disputa quase pessoal.

Acompanhamos momentos transmitidos pela TV Justiça que seriam cômicos, se não fossem trágicos. Televisionar casos penais é um fator de desestabilização dos julgamentos. Além de representar uma condenação acessória, sem previsão legal. Quem é submetido a um processo criminal divulgado para todo o Brasil, ainda que logre êxito e saia absolvido ao final, já foi condenado pelo tribunal da opinião pública. Lembro-me de quando defendi o publicitário Duda Mendonça, no tristemente famoso processo do Mensalão, após sua absolvição pelo plenário da Corte, ele me disse: “Hoje é o dia mais feliz da minha vida. Fui inocentado. Mas, pode ter certeza, de que no imaginário popular eu sou um mensaleiro. Sem direito a recurso”. E Duda era um mágico em imaginário popular.

Já assistimos, entre perplexos e extasiados, a ministro chamando o outro para acertar as contas lá fora, convocando para um duelo, desqualificando o colega com adjetivos só usados em bares, tratando advogados da tribuna como se fossem um estorvo para o processo – e não, como diz a Carta Magna,  indispensáveis à administração da Justiça. E tudo isso no plenário sendo transmitido diretamente para todo o Brasil. Enfim, é o fenômeno da espetacularização do processo penal. E, nesses momentos, às favas com a Constituição.

O recente entendimento do Supremo Tribunal, que determina a prisão do réu logo após a condenação pelo Tribunal do Júri, ofende a própria Corte Suprema. Há muito pouco tempo, em 2019, em julgamento que paralisou o país, o mesmo plenário decidiu pela presunção de inocência e fixou que o réu só pode ser recolhido ao cárcere após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Este novo posicionamento foi uma opção pela presunção de culpabilidade em confronto direto com o que havia sido anteriormente decidido pelo mesmo Supremo. E, o pior, os argumentos passaram ao largo da Constituição da República. Dá uma amarga impressão de que foi quase uma vingança do próprio Tribunal contra ele mesmo e contra a histórica decisão que garantiu o preceito constitucional quando do julgamento das ações diretas de constitucionalidade (43, 44 e 54): todo cidadão tem o direito de ser presumido inocente.

Há casos em que o cidadão foi condenado pelo Tribunal do Júri e apelou em liberdade. Passaram-se 5 anos, ou até mais tempo, do julgamento e ainda pendem, nos tribunais superiores, recursos que podem levar à anulação da condenação. Durante esses longos anos após o julgamento pelo Júri, a pessoa levou sua vida sem qualquer intercorrência. Sem nada que pudesse dar ensejo a uma reprimenda penal. Conseguiu se inserir na sociedade e espera, respeitosamente, pela decisão final dos seus recursos. Porém, agora, corre o risco de ser levada ao cárcere sem ter uma sentença final condenatória transitada em julgado. Se, após a prisão, ela for absolvida em outro julgamento, quem irá devolver-lhe a liberdade que perdeu? É óbvio que existem as hipóteses de prisão até mesmo antes do julgamento, mas não é disso que se trata. Para essas hipóteses, o recolhimento ao cárcere continua valendo e não está em discussão.

Esse é um assunto que não pode ficar fora dos debates nos tribunais, nas Universidades e na sociedade. Quem irá devolver a liberdade da pessoa injustamente presa? E não vale a insultuosa resposta afirmando que ninguém devolve a vida da vítima. Ninguém prega e defende a impunidade. O que se pretende é a aplicação do princípio constitucional da presunção de inocência. Após o último recurso, que se cumpra o veredito soberano do Tribunal do Júri.

O Poder Judiciário tem o dever de julgar em tempo razoável os processos que envolvem a liberdade. E tem a obrigação de respeitar a Constituição. Como cláusula pétrea, o princípio da presunção de inocência não pode ser relativizado, nem mesmo pelo Supremo Tribunal. É bom lembrar que ele está inserido no capítulo dos direitos e garantias individuais.Como afirmei da Tribuna da Corte, no julgamento da ADC 43: “O Supremo Tribunal pode muito, mas não pode tudo, porque nenhum poder pode tudo”.

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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