Renúncia imoral: acinte à soberania nacional

Barragem de Mariana vistoriada pelo Ibama
Trecho atingido pelo rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco, em Mariana (MG).
Por Kakay.
“A verdade é inconvertível, a malícia pode atacá-la, a ignorância pode zombar dela, mas, no fim, lá está ela“.
–Winston Churchill.
Está sendo muito interessante, emocionante até, acompanhar a cobertura de boa parte da mídia do julgamento em Londres sobre o crime ocorrido há 9 anos e que resultou na maior catástrofe ecológica do mundo. A tragédia de Mariana não foi um acidente. Foi um ato criminoso. Claro que sempre haverá, na imprensa, quem represente os interesses das mineradoras. Elas são fortíssimas, e gastar com a mídia é muito mais barato do que indenizar as vítimas e reparar o mal causado ao meio ambiente. A gente, infelizmente, sabe que faz parte do jogo.
Algumas questões de fundo independem de conhecimento jurídico para quem está acompanhando o processo. Perguntas que devem ser respondidas, ou que ficarão como espadas nas nossas cabeças: Por que, em 9 anos, as vítimas não foram, devidamente, indenizadas? Os danos são inquestionáveis e, evidentemente, não há dúvidas sobre eles. Da mesma maneira, há um consenso no sentido da necessidade da reparação. É fato que 19 pessoas morreram, que as famílias perderam casas, plantações e acesso ao rio que significava quase tudo: vida, sustento, lazer, culto, magia e história. Foram despejados 43,8 milhões de m³ de rejeito no meio ambiente.

Famílias ribeirinhas viram suas vidas serem levadas junto à lama. Os quilombolas e as populações originárias foram tragadas pela violência do rompimento criminoso da barragem. Até hoje, os efeitos se estendem e acompanharão esses cidadãos brasileiros por todo o sempre. Porque, depois de todos esses anos, anuncia-se, exatamente quando começa o julgamento em Londres, um grande acordo entre as mineradoras, os governos Federal, de Minas Gerais e Espírito Santo, sem a presença das vítimas, na mesa de negociações? É também estranho que o Estado da Bahia, diretamente atingido pela lama, inclusive

no santuário de Abrolhos, esteja de fora da negociação. Quem teve o poder de barrar a presença dos representantes de 620 mil atingidos, quais sejam os ribeirinhos, os quilombolas e as populações originárias? Em um governo popular, essa mesa está manca e não para em pé. Como já escrevi anteriormente: “Naquela mesa estão faltando eles”.

É óbvio que não cabe criticar a opção daquele que sofreu a dimensão da tragédia em receber uma reparação nesse acordo. Quem ficou 9 anos sem ser indenizado poderá, é claro, optar por receber muito menos do que teria direito. Cabe a todos nós respeitarmos. O que não podemos é nos calar diante das questões que não têm respostas: seria possível usar a força das mineradoras para obrigar os aderentes ao acordo a desistir do processo na Inglaterra? é possível aceitar, sem discutir, pois não estavam à mesa de negociação, valores que foram tramados pelos infratores? essa obrigação de

renunciar à discussão, de abrir mão do direito à indenização na Inglaterra, não seria imoral e significaria o abuso da força contra aquele que ficou 9 anos sem sequer ser chamado à mesa de negociação? É importante frisar, por tudo que acompanhei, que a AGU (Advocacia Geral da União), representada por um ministro probo e justo, não parece concordar com essa exigência. Mas e as mineradoras e os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo?.

Não queremos, obviamente, atrapalhar o recebimento de qualquer montante por parte dos que foram solenemente desprezados, especialmente pelas mineradoras. Porém, cuidar de alertar que não pode haver abuso por parte dos causadores diretos da tragédia e nem dos Estados que se beneficiam do acordo.

No caso concreto, representamos, com muito orgulho, as associações dos Remanescentes dos Quilombos de Produtores e Produtoras Rurais da Agricultura Familiar da Comunidade Quilombola de São Domingos Sapê do Norte, Conceição Da Barra (ES) e dos Remanescentes dos Quilombos de Produtores Rurais da Agricultura Familiar e Pesqueira da Comunidade Morro Da Onça – Sapê do Norte, Conceição da Barra (ES). Por isso, não podemos admitir que, depois de serem tragados pela lama e pela água, sejam, agora, atingidos pela prepotência do poder econômico.
Imagine a hipótese, desumana, de uma estratégia de não fazer o acordo, por 9 anos, sem sequer sentar à mesa com os verdadeiros representantes dos atingidos e, depois, quando se vislumbra uma luz na ação proposta na Inglaterra, mudar o rumo e fazer um acordo no Brasil, sem discussão com as vítimas e exigir que abram mão do direito que será decidido na Inglaterra. Isso sim é dar um drible na soberania nacional. Isso sim é desprezar o Poder Judiciário brasileiro.

Não estamos falando da manobra odiosa só em relação às vítimas, pois elas nunca foram levadas em consideração. Salvo agora, como estratégia para diminuir o prejuízo. Mas é um verdadeiro acinte à própria soberania nacional. O acesso à Justiça deve ser tratado como um direito indisponível no caso concreto. Afinal, as vítimas não foram ouvidas e estão sendo levadas a aderir. Lamentável. Remeto-me à oração do mestre Roberto Lyra Filho, que ele fez para meu convite de formatura na UnB (Universidade de Brasília) em 1981:

“Procurai a justiça social e achareis o direito, não como produto entortado pelos interesses e conveniências de privilegiados contra oprimidos, mas na sua fonte legítima: o sufrágio livre e universal do povo, que não reconhece tutores; que abomina as dominações manhosas ou violentas; que produz a riqueza e deve participar, equitativamente, dos seus frutos; que determina a única segurança verdadeira, com base no exercício da liberdade coletiva e no respeito às garantias individuais”.

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O feminicídio e os idiotas convictos

ARTE KIKO – Qual o impacto da completa impunidade na vida pública da extrema direita?

A banalização da  política impregnou o mundo de idiotas convictos. Quando a extrema direita, em um movimento concatenado mundialmente, optou pela estratégia da violência e do ódio como modo de ação, usando a mentira como método, os pilares do humanismo ruíram mundo afora. No  Brasil, o que se viu com a consolidação do bolsonarismo foi algo espantoso. A agressão às mulheres, aos negros, aos quilombolas, aos pobres, aos povos originários e aos homossexuais, vinda do próprio Presidente da República, à época  Jair Bolsonaro, foi mais do que uma opção política. Foi rigorosamente uma maneira de subjugar aqueles que ainda optam pelo debate, pela ética e pelo respeito aos que pensam diferente.

Em um momento triste da política nacional, o então Presidente desdenhou da  pandemia: imitou brasileiros morrendo com falta de ar, riu da dor da morte afirmando que não era coveiro, como também desdenhou dos familiares e amigos de mais de 700 mil brasileiros que morreram pela covid. E nada aconteceu com ele e com seus asseclas. Ao contrário, vários dos corresponsáveis pela tragédia – que resultou em quase 1 milhão de mortos – são hoje candidatos aos mais diversos cargos, com o apoio declarado do bolsonarismo raiz. Posicionar-se contra a ciência, a favor da violência e em sentido oposto ao Estado democrático de direito rende muito dinheiro e voto.

A reflexão que se faz necessária: qual o impacto da completa impunidade na vida pública da extrema direita? Os bolsonaristas não foram responsabilizados pelos crimes da pandemia. Resolveram dobrar a aposta. Um bando de seres escatológicos saiu de algum esgoto e se oferece, à luz do dia, com propostas que têm forte apelo político entre a extrema direita.

Agora, um jovem aspirante aprefeito de uma importante capital, Fortaleza, faz um apelo criminoso e patético sobre um dos maiores dramas atualmente no Brasil, o feminicídio: “Ah, mas o feminicídio, aqui no Brasil, tantas mulheres morrem por dia. Tá. Dane-se. E quantos homens morrem por dia?”.

As palavras do candidato são exatamente na mesma linha do seu líder Jair Bolsonaro. Sem nenhum subterfúgio. Ofensa clara e direta. E ele e seus seguidores sabem que não serão responsabilizados. Ao contrário, passa a ser um seguidor privilegiado por ter a “coragem” de fazer apologia ao crime. Os machistas bolsonaristas certamente passaram a ter orgulho de tamanha teratologia.

Essa manifestação não pode simplesmente ser ignorada pela Justiça Eleitoral e Criminal. Há muito pouco tempo, o candidato da extrema direita em São Paulo teve a ousadia de apresentar um  laudo falso contra o Boulos, no apagar das luzes do primeiro turno, por saber que ficaria impune e que não daria tempo de ser desmascarado. Nada aconteceu e o modus operandi do engodo e do uso criminoso das mentiras e das sandices vai se tornando a regra.

O acúmulo das ações criminosas sem nenhum enfrentamento e responsabilização levou à tentativa de  golpe de 8 de janeiro. A Democracia resistiu, mas ainda ronda uma nuvem espessa que nos tira o ar e que nos impede de ter uma opção clara pelo Estado democrático de direito. A investigação sobre a tentativa de golpe está na hora de ser finalizada.

A situação, embora grave, comporta certa simplicidade. Basta responsabilizar os envolvidos pelo 8 de janeiro. Não somente as buchas de canhão, mas os que tramaram o golpe. Depois, ainda é tempo de responsabilizar os crimes da pandemia. E aí, aos poucos, enfrentaros fascistas menores, que vivem da mentira e dos descalabros contra o Estado democrático de direito. Esse é caminho. Parece tão óbvio que ninguém entende porque não se faz.

É sempre bom relembrarmos o lindo poema “No Caminho, com Maiakóvski”, de Eduardo Alves da Costa:

 “Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho e nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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Itinerário místico-espiritual de Clarice Lispector

Padre João Medeiros Filho

Em sua infância, Clarice Lispector, de origem ucraniano-judaica, aportou no nordeste do Brasil e aqui ficou. Começou a escrever despretensiosamente por pura inspiração. Vem se tornando objeto de inúmeros estudos universitários e não acadêmicos. Muito se tem dito sobre essa artista da palavra. A linguística e a literatura estudam-na sob vários enfoques. Clarice buscou uma linguagem especial para expressar o estado da alma, utilizando o monólogo e a análise psicológica. Por isso, é considerada uma escritora intimista. A filosofia perpassa pela sua obra. Ultimamente, a teologia tem se voltado para o seu pensamento e legado literário. Há uma percepção teológica de que ela é uma apaixonada pelo mistério de Deus. Seus escritos, especialmente “Paixão segundo G. H.” – que consoante estudiosos parece ser uma metáfora romanceada – desvelam uma intimidade com o Transcendente. Seus leitores e críticos, por vezes, ficam perplexos com a verve espiritualizante de alguns textos.

Quem a conheceu de perto declara se tratar de uma mística no pensar, viver e escrever. Talvez, ela não concordasse com tal afirmação. Porém, o leitor é levado a concluir dessa maneira, quando lê os seus textos. Neles transpiram espiritualidade e busca do Eterno. Santo Tomás de Aquino denomina “Cognitio Dei experimentalis” (conhecimento experimental de Deus). Para Jacques Maritain é “a experiência do Absoluto.” Cabe salientar que os ucranianos são dotados de profunda religiosidade, professando a fé judaico-cristã, por meio de ritos cristãos orientais de tradição bizantina ou pelo culto nas sinagogas. Exemplo dessa espiritualidade é a existência de duas dioceses (eparquias), contando mais de trezentos mil ucranianos (e descendentes), nas cidades de Curitiba e Prudentópolis (PR).

Na leitura atenta da “Paixão segundo G. H.” – denominada por certos pesquisadores de “Paixão do Gênero Humano” – verifica-se o itinerário de despojamento interior que deságua na comunhão com o Transcendente. Há no desenrolar de seus escritos um arrebatamento interior, digno de Teresa d’Ávila e João da Cruz. É patente o processo ascético e purificador, que prepara o seu íntimo, modificando sua concepção do mundo e da vida. Nesse processo existe permanentemente a “mão invisível que me sustenta”, como escreveu, referindo-se a G.H. Esta já não depende mais de si mesma, mas daquele braço que a segura. Assim, suplica: “Ah, não retires de mim a tua mão.” Parece o brado do salmista: “Levanta-te, Senhor, ergue a tua mão e não te esqueças dos que sofrem” (Sl 10/9B, 12). Em determinado momento, acontece o percurso em direção ao Deus que a chamava.

Clarice coloca nos lábios de seu personagem estas palavras, que são uma confissão da alma: “Eu estava em pleno seio de uma indiferença que era quieta…, de um Deus que, se eu amava, não compreendia o que Ele queria de mim.” Aqui, poder-se-ia encontrar análoga angústia interior que queimava o coração e as entranhas de Agostinho. No meio da luta e provação, da busca e do pranto, sente que a misericórdia divina vem socorrê-la. “E no soluço veio a mim o Deus que me ocupa toda agora.” Ele penetrou em seu âmago e ela sentiu – como o Bispo de Hipona – que Deus não estava distante, mas dentro dela. Nos relatos metafóricos do romance de Clarice, inicia-se o diálogo entre o Criador e aquela que O procurava.

Nos textos claricianos percebe-se claramente sua sensibilidade espiritual e suas raízes judaicas, que esperam pelo Senhor, à semelhança do salmista: “Das profundezas, Senhor, eu clamo a Ti, escuta a minha voz” (Sl 130/129). É o mesmo sentimento de Moisés, ao perceber a inebriante presença de Javé, diante da sarça ardente, no Monte Horeb, como consta do Livro do Êxodo (Ex, 3, 1 ss). Lispector encontrou, através da palavra escrita, o rosto do Todo-Poderoso, que tanto buscava ao longo de sua vida. E, paulatinamente, Ele se revela em seu mistério jamais totalmente desvelado. Na ucraniana-brasileira confirmam-se a veracidade e a força daquilo que proclama o salmista: “Em Ti eu confiei, não ficarei envergonhado.” (Sl 25/24, 1-2). O contato com a escritora poderá nos ensinar a desviar da onda que banaliza o Divino e a descobrir cotidianamente as manifestações do Mistério inefável de Deus. “Tenho a Ti, Senhor, nada mais quero sobre a terra” (Sl 73/72, 25).

Orgias universitárias

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Thomas E. Woods Jr., em “Como a Igreja Católica construiu a civilização Ocidental” (Quadrante, 2019), nos relembra que a “Universidade foi um fenômeno completamente novo na história da Europa. Nada de parecido existia na Grécia ou na Roma antigas. A instituição que conhecemos atualmente, com as suas Faculdades, cursos, exames e títulos, assim como a distinção entre estudos secundários e superiores, chegam-nos diretamente do mundo medieval. A Igreja desenvolveu o sistema universitário porque, com palavras do historiador Lowrie Daly, era ‘a única instituição na Europa que manifestava um interesse consistente pela preservação e cultivo do saber”. E, da trilha Bolonha, Paris, Oxford e Cambridge, chegamos às Harvards de hoje.

Essa relação Igreja e ensino superior, nas suas origens, não se mostrou muito diferente no Brasil. Peguemos os casos dos primeiros cursos jurídicos do país, criados em São Paulo e Pernambuco. Como anota Nelson Werneck Sodré, em “Síntese de história da cultura brasileira” (DIFEL, 1985), “por circunstância que não importa em coincidência, os dois cursos instalam-se em antigos conventos, em São Paulo e em Olinda, ‘como símbolo da superposição das duas culturas, a religiosa e a profissional que lhe sucede, substituindo o espírito eclesiástico pelo espírito jurídico’. Esses cursos, como fora previsto, tornaram-se provedores de quadros às assembleias e ao governo das províncias e do país”.

De toda sorte, por força de condições impossíveis de aqui analisar, foi tardio, no Brasil, o aparecimento da chamada Universidade. E essa ideia de agrupar faculdades e cursos em universidades deveu-se tanto a uma necessidade premente como a uma mera tendência imitativa do estrangeiro. Datam as primeiras universidades no país de meados da década de 1930, com destaque para a Universidade de São Paulo (USP), de 1934. Já o crescimento industrial pós 2ª Guerra Mundial e, sobretudo, nos anos 1960, firmou a ideia de que o país necessitava de profissionais com formação universitária para enfrentar o exponencial desenvolvimento econômico. A década de 1960 viu a criação de uma gama de universidades federais, públicas e gratuitas, praticamente em todos os estados da nossa Federação.

Não resta dúvida de que a transmissão da “cultura” se dá através de meios sistemáticos e não sistemáticos. O meio sistemático mais usado e efetivo é aquilo que chamamos de ensino. Em todos os tempos e lugares onde enxergamos um desenvolvimento da sociedade sempre existiu um aparelho, uma estrutura, vocacionada à transmissão de cultura/conhecimento. A começar pela alfabetização, sua etapa inicial, e culminando no ensino superior, consagrado nas universidades, como etapa final. A importância das universidades, em especial das universidades públicas, no ensino, extensão e pesquisa no Brasil é intuitiva e evidente. Ela é um compromisso com a razão, a argumentação racional e o espírito de pesquisa que devem caracterizar o mundo contemporâneo.

Todavia – e já adianto que nunca aceitei bem o porquê –, as nossas universidades sempre foram vistas com desconfiança por parcelas da sociedade. Como anota Nelson Werneck Sodré, as contradições da sociedade brasileira, inseridas na questão universidade, operam como explosivos para a destruição desta. Os intelectuais em geral, os professores e estudantes em particular, são tidos sob suspeição. As universidades são ameaçadas ou policialescamente mutiladas, como no Regime Militar, culminando com o expurgo – que tem como antecedente a Alemanha hitlerista, quando esta perdeu, para os EUA principalmente, os seus maiores cientistas –, dos “mestres de mais profundo saber e alto renome”. E “isso corresponde, no fim das contas, a colocar sob suspeita a própria cultura, a supô-la ‘subversiva’ em si”.

É verdade que às vezes a coisa ganha um ar caricato, cômico até. Tenho um primo, que jamais sequer passou pelas beiradas da UFRN, cuja filha está agora ali estudando. Ele está muito preocupado com os comunistas e, sobretudo, com umas tais “surubas” (vão me desculpando o termo), que de há muito, segundo ele, acontecem no curso de direito.

Anoto que fiz direito na UFRN. Depois fui ser ali professor. Mas nunca soube desses bacanais. Talvez seja a confraria mais hermética da civilização universitária ocidental cristã em séculos. Sem qualquer alma caridosa para então me sussurrar, quando hoje oiço dessas míticas orgias, a única coisa que me dá é inveja – de não haver, quando jovem e solteiro, participado delas.  

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

O Supremo Tribunal como refém

o ex-presidente Jair Bolsonaro, o ministro do Supremo Alexandre de Moraes e o ex-coach Pablo Marçal
Articulista afirma que vê com esperança expectativa da PF em concluir investigações sobre o 8 de Janeiro ainda neste ano; na imagem, o ex-presidente Jair Bolsonaro, o ex-coach Pablo Marçal e o ministro Alexandre de Moraes.
Por Kakay.
“Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.”
–Carlos Drummond de Andrade, poema “Os Ombros Suportam o Mundo”
É como se o ano tivesse chegado ao final antes da hora: de repente, já se avizinham as festas. Tem sido um período duro, embora com bons enfrentamentos. Cresce no Congresso uma ideia que ouvi pela primeira vez, há mais de ano, e que julguei ser um disparate total. A oposição se organiza para fazer uma ampla maioria no Senado com a finalidade específica de promover o impeachment de ministros do Supremo, especialmente o do ministro Alexandre de Moraes.

Não é uma agenda pensada com tanta antecedência para melhorar a vida do cidadão brasileiro, ou as relações entre os Poderes, ou para regular setores que precisam ser discutidos em um ambiente democrático e saudável. O interesse dos partidos de extrema-direita é buscar garantir força no Senado para ter o Supremo Tribunal como refém. Ao que parece, a agenda golpista bolsonarista segue sedenta por mais violências e absurdos, como se o impeachment de quem quer que seja fosse mera opção política. E não é! Ao longo dos últimos tempos, a política tem sido alvo de frequentes testes e ataques. O próximo alvo parece já escolhido e é preciso reagir imediatamente.

Com a meta de desorganizar a sociedade –priorizando mentiras e propostas teratológicas como maneira de fazer política–, o país não conseguiu ainda superar o caos de 4 anos de bolsonarismo. A estratégia de desarrumar as conquistas sociais cravou na alma do Brasil as garras que fizeram a democracia sangrar. Depois de um desastre social e humanitário no enfrentamento da pandemia, com mais de 700 mil mortos pela irresponsabilidade criminosa e estupidez do governo, o país assistiu, perplexo, à completa incapacidade do Estado de responsabilizar os que estavam à frente da condução da crise.

Praticamente não houve uma responsabilização dos que, dolosamente, agiram para levar o país para o abismo. Existem milhares de corpos insepultos e almas penadas à espera da condenação dos agentes públicos criminosos. Rondam sem rumo, impulsionados na dor dos familiares e amigos.

E a sanha da extrema-direita, vendo que a impunidade é a regra, não se conformou em perder as eleições no voto. Fizeram o diabo. Infernizaram a vida do cidadão brasileiro com inverdades e total desprezo pelos princípios democráticos. Atacaram as instituições, tentaram desmoralizar o Supremo e cooptaram o Congresso. Não satisfeitos, culminaram com a tentativa de golpe de Estado no 8 de Janeiro. O Brasil passou a viver de uma aventura a outra. A certeza da inação do Estado faz com que as ações golpistas e de terror aconteçam à luz do dia.
Na disputa pelo cargo de prefeito da maior cidade do país, um candidato que logrou 28,14% dos votos teve o descaramento de apresentar um laudo falso, sabendo ser falso, tentando mudar o jogo na última hora, quando não daria mais tempo para resposta. A imoralidade e os métodos assumidamente criminosos viraram a regra dos grupos de direita radical. Percebo, com um olhar de esperança, uma declaração do diretor-geral da Polícia Federal no sentido de concluir as apurações sobre os descalabros bolsonaristas até o final do ano. Ele tem toda razão em afirmar que o tempo da investigação não é o tempo da política e da imprensa. Tem que haver rigor técnico e cuidado com a prova.
Mantendo a presunção de inocência. O que nos permite ser angustiados são os exemplos que vêm da omissão na pandemia e de tantos outros prejuízos. Por isso, hoje, todos entendem por que Bolsonaro aparelhou órgãos do Estado. Mas devemos ter a certeza de que o Estado deve chamar à responsabilidade os Pablos e Bolsonaros. Já passou da hora de o país voltar à normalidade democrática. Quero começar o dia novamente lendo o caderno de cultura e os programas ligados à arte e à literatura. Ninguém pode viver, permanentemente, sob a insegurança e sob o medo.
Repetindo Torquato Neto:

“É preciso que haja algum respeito, ao menos um esboço ou a dignidade humana se afirmará a machadadas”.

Fonte: www.poder360.com.br

“Quem deseja ser professor”?

Padre João Medeiros Filho

Eis o que indagou um mestre potiguar a seus alunos. A resposta foi um silêncio acompanhado de indiferença, frieza e possivelmente outros sentimentos. Após insistir com a pergunta em várias salas de aula, levanta-se a mão tímida de um aluno, com rendimento acadêmico acanhado. O mestre observou a taciturna reação dos estudantes com certa perplexidade e tristeza. Lembrou-se de uma pesquisa da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – USP, realizada no início desta década, mostrando que mais da metade dos alunos dos cursos de licenciatura daquela instituição de ensino superior não estão dispostos a se tornarem professores. Detalhe inquietante: licenciaturas foram criadas exatamente para formar docentes.

É voz corrente o quanto os mestres são valorizados e estimados em países, onde acontece uma verdadeira revolução educativa e cultural. Com tal apreço, tornar-se professor é sinônimo de grande reconhecimento, fazendo com que ótimos alunos almejem o magistério. No Brasil, vislumbra-se exatamente o inverso. Não raro, aqueles com menor desempenho escolar, por falta de opções e um ensino fundamental de qualidade, escolhem a docência. Sem atrativos, o que levaria um jovem a buscar “uma vida heroica, esse martírio, a virtude cristã medieval da mortificação e renúncia? O nosso professor é um malabarista, espartano e asceta”, exclamou, por ocasião do Dia do Mestre, na Câmara dos Deputados, o renomado educador Monsenhor Walfredo Gurgel, deputado constituinte em 1946. Isto evoca à nossa memória o conhecido conto-metáfora de Machado de Assis, intitulado “Um apólogo”.

Se hoje, nas escolas públicas, verifica-se um déficit de docentes para disciplinas básicas (sem contar o desvio de função), considerando-se o pífio desempenho nas avaliações oficiais, o que acontecerá com a educação das novas gerações? É preocupante a ausência de estadistas e educadores, que estejam acima de interesses político-partidários, corporativistas ou ideológicos, que pensem com seriedade em educação. Inexiste vontade política e fundamentalmente compromisso com o futuro da nação. O que se pode esperar desse menoscabo, senão o agravamento da deterioração do ensino e, consequentemente, o esgarçamento do tecido social? Enquanto governantes não repensarem seriamente a realidade educacional, teremos um resultado deprimente, incapaz de contribuir para as transformações, das quais a nação tanto necessita. Até quando a educação será moeda política e eleitoreira em nossa pátria? Queremos quantidade ou qualidade, espaço de raciocínio e criatividade ou lugar de ilusão e faz de conta, do viés e discurso ideológico?

Durante doze anos, participei de conselhos de educação. Por vezes, constatava mais ideologia do que pedagogia, mais narrativas do que objetividade, mais sofismas que certeza ou verdade. É preciso tempo e empenho para estabelecer prioridades e estratégias, pois educação não se improvisa. A história de descaso e malversação de administradores, a leviandade na aplicação dos recursos existentes, levam-nos a pensar que inexistem visão e gestão educacionais eficazes, bem como cobrança das parcas e inconsistentes políticas públicas no setor. “Neste país, brinca-se de ensinar. A escola parece um sisudo e mal apresentado espetáculo de mamulengos, sem menosprezar a riqueza de nosso rico folclore”, afirmou Celso Furtado, quando Ministro da Cultura, na década de 1980.

Será que o recente sufrágio das urnas trará algum alento e esperança para a sociedade e os nossos educadores? Investir em educação vai contra a sede de manipulação, egoísmo, desigualdade e injustiça. Há que formar para a responsabilidade e liberdade. Necessita-se dar um basta ao imediatismo, aos arranjos, aparências e aviltamentos do ser humano, imagem e semelhança de Deus. Educa-se, ao promover e dignificar o homem, reduzindo-se tudo aquilo que concorre para a sua destruição. Há muitas indústrias de morte, alimentando uma perversa cadeia político-econômica, incapaz de ser instrumento de humanização. Vai aqui o nosso abraço de gratidão e incentivo aos educadores e a todos “aqueles que não medem esforços em seu contínuo engajamento, contra a sede de dominar, em favor da lapidação do homem, criado livre e soberano, nunca objeto de ditadores cotidianos do estilo de vida e consequentemente do espírito”, dissera o monge beneditino Dom Lourenço de Almeida Prado, despedindo-se do Colégio São Bento (RJ), após sessenta anos de profícua direção. “Ensina ao jovem o caminho a seguir e ele não se desviará, mesmo quando envelhecer” (Pr 22, 6).

O panelão da cultura

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Por estes dias, referi-me aqui à denominada “cultura de massa”, anotando que os gostos, hábitos, valores, ideias e atitudes – o agir do homem moderno – estavam cada vez mais condicionados pelos meios de comunicação de grande escala. Desde a era do rádio, do cinema e da TV, e hoje em tudo amplificado pelo fenômeno, ainda mais agudo e capilarizado, da Internet. A ação crescente desses meios de comunicação – sobretudo a TV e a Internet – criam um certo tipo de “cultura”, dita “de massa”, homogênea e invariavelmente de baixa qualidade, padronizando os gostos, preferências, interesses, motivações, ideias e valores do homem-massa contemporâneo.

E essa cultura, de há muito transformada em mercadoria, mexe com muito – muitíssimo mesmo – dinheiro. Ela tem, para além da sua relevância como “coisa do espírito”, altíssimo “valor”.

De fato, Nelson Werneck Sodré, em “Síntese de história da cultura brasileira” (DIFEL, 1985), reproduzindo o para lá de controverso Karl Marx (1818-1883), já nos alertava para a gritante transformação dos produtos da cultura em mercadorias: “Houve um tempo, como na Idade Média, em que não se trocava senão o supérfluo, o excedente da produção sobre o consumo. Houve também um tempo em que não somente o supérfluo, mas todos os produtos, toda a existência industrial, passaram ao comércio, em que a produção inteira dependia da troca. (…) Veio, finalmente, um tempo em que tudo o que os homens tinham encarado como inalienável tornou-se objeto de troca, de tráfico, e podia ser alienado. Este foi o tempo em que as próprias coisas que, até então, eram transmitidas, mas jamais trocadas; dadas, mas jamais vendidas; adquiridas, mas jamais compradas – virtude, amor, opinião, ciência, consciência, etc. – em que tudo enfim passou ao comércio. Este foi o tempo da corrupção geral, da venialidade universal ou, para falar em termos de economia política, o tempo em que tudo, moral ou físico, tornando-se valor venal, é levado ao mercado, para ser apreciado no justo valor”.

Pondo de lado o tom panfletário de Marx, parece certo – ou pelo menos é o que diz um outro Nelson, o Rodrigues – que, hoje em dia, “o dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro”.

Com isso eu chego aonde quero chegar: é possível “comprar” o sucesso na cultura? Partindo do pressuposto da existência de um mínimo existencial de talento, parece mais do que certo que sim. Publicidade/propaganda é muito mais do que muito.

Como diz Nelson Werneck Sodré (favor não confundir os Nelsons), “na medida em que se amplia a área de atividade artística e que suas criações se tornam mercadoria, muda o quadro e, inclusive, a escala de valores. Antes, quando não havia público ou, nele, reduzido que era, preponderava o julgamento dos oficiais do mesmo ofício, dos confrades, a consagração, pelo menos a curto prazo, ficava na dependência dos especialistas – eram os escritores que julgavam os escritores, por exemplo – e isso conferia uma nota provinciana ao meio, assemelhava-se ao arraial interiorano, permitindo a influência das igrejinhas; só estas poderiam consagrar. O aparecimento e o crescimento do público, que passa a ser árbitro do sucesso, transfere esse poder de consagração àqueles que estão fora da atividade artística e não sofrem as suas injunções e competições. Na medida em que as criações artísticas se transformam em mercadoria e que, portanto, há consumidores para ela, são estes os juízes de seu valor. Com o desenvolvimento desse mercado, surge a possibilidade de forjar falsos valores, à base da publicidade, aquilo que a chamada ‘cultura de massa’ pode impingir. Assim, em seu desenvolvimento dialético, o positivo se torna negativo, o avanço se transforma em recuo”.

De toda sorte, talvez esse panelão da cultura seja melhor do que as panelinhas/igrejinhas de outrora, referidas por um dos Nelsons, que, embora menos poderosas, ainda hoje subsistem tanto nas artes como nos esportes. Pensando bem, deve ser por isso que eu não estou conseguindo apresentar devidamente, na pelada da AABB, o meu futebol clássico e eficiente.    

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL