
“Então é hora de recomeçar tudo de novo, sem ilusão e sem pressa, mas com a teimosia do inseto que busca um caminho no terremoto.”
Carlos Drummond de Andrade
Eu sei que os assuntos sérios e importantes dominam nosso dia a dia. Assistimos, perplexos, a um possível acordo para livrar os condenados pelo Supremo na tentativa de golpe. Alguns, incautos, talvez até de boa-fé, não percebem que essa é só a porta de entrada para desmoralizar o julgamento do STF e depois passar anistia, impeachment de ministros da Corte e a volta triunfal dos golpistas. Também ocupa o noticiário o apagão na Europa, com preocupação de crime cibernético por parte dos russos. Mas o que me exaspera, hoje, é uma questão simples, banal, do cotidiano.
Tenho um amigo muito rico que costuma dizer que a grande vantagem, desses realmente ricos, é que eles não fazem check-in. Usam avião privado. Realmente, voar, hoje em dia, virou uma grande e chata aventura. Nós, privilegiados, que podemos pegar avião para trabalhar ou para lazer, enfrentamos todo tipo de aperreio.
Depois de encarar aeroportos absolutamente cheios, vamos enfrentar os aviões. Tudo começa com as filas para prioridade por determinação legal. Quando é o caso de você ter que pegar um ônibus, que levará o passageiro até a aeronave, a desorganização das companhias é colossal. Com muita dificuldade, você consegue entrar numa fila mal organizada e é um dos primeiros a entrar no ônibus que deixará os passageiros ao pé da escada. Já dentro do ônibus, você vê uma pequena multidão entrar e apertar quem entrou primeiro nos fundos. E, quando finalmente chega à escada do avião, aquele passageiro que tinha prioridade ficou por último. Tinham que esclarecer que a preferência era só para entrar no ônibus. Não no avião.
Dentro do veículo que transporta todos até a aeronave, a impressão é a de que estamos num hospício. Alguém ao lado grita, descontrolado, com o fone no ouvido, dando ordens para um funcionário e explicando como deve ser feito para burlar uma licitação. As pessoas ouvem, perplexas. Não tem como não ouvir, pois o cidadão fala muito alto. Não percebe que está ali fazendo uma quantidade razoável de futuras testemunhas do crime.
Menos grave, e até curioso, uma menina conta, também ao telefone e com voz alta, alguns detalhes da noite anterior em uma festa. Sinto que as pessoas fazem cara feia para o passageiro que instrui o funcionário a cometer um crime, mas seguem com curiosidade querendo acompanhar o romance. E as gaiatices não param nunca. Ao lado, um homem de terno grita e destrata alguma mulher, como se o fone de ouvido desse a ele o direito de incomodar a todos, que são obrigados a ouvir as maiores sandices. As pessoas perderam qualquer noção de civilidade e de como viver em sociedade respeitando os outros.
Na entrada do avião, alguns riscos são reais. Os passageiros entram com enormes mochilas nas costas e vão batendo na cabeça e nos ombros dos outros. Sem nem pedido de desculpas. Mas o pior é quando a aeronave aterrissa. Um dos poucos legados do pós-pandemia foi a maneira com que as companhias aéreas organizavam o desembarque. Saíam em ordem as fileiras, respeitando a lógica de quem senta na frente. Sem empurrões. Sem atropelos. Agora, voltou o vale tudo. Mal pousamos e os passageiros parecem enlouquecidos, um alívio incontido por sair daquele espaço estranho que é uma cabine de avião.
Eu, que sou da roça, não consigo deixar de me lembrar dos currais da fazenda do meu pai, quando abríamos as porteiras para as vacas saírem depois de uma noite trancadas para encontrar os bezerros no curral ao lado. É um Deus nos acuda. Mas o interessante foi o comentário de um casal sentado atrás de mim, “Eu falei pra gente ir de ônibus. É silencioso. Civilizado. As pessoas são respeitosas, sai no horário”. Fica a dica.
Lembrando-nos de Gilles Deleuze: “O verdadeiro charme das pessoas reside nos seus traços de loucura. As pessoas só ficam realmente interessantes quando começam a sacudir as grades de suas gaiolas”.
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay
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