A difícil arte da convivência

Foto: João Gilberto

Padre João Medeiros Filho

Atualmente, é bastante forte e comum a falta de respeito, tanto como a agressividade nas relações entre as pessoas. Há uma dificuldade ou inabilidade em saber conviver. Muitos sequer se apercebem disso. Um passeio pelas ruas das cidades é suficiente para presenciar flagrantes, que evidenciam a impressionante incapacidade de se desfrutar de uma vida social saudável. Parece que se abriu mão dos avanços positivos da civilização e, no tocante ao relacionamento humano, não raro tem-se a impressão de um retorno à idade da pedra. A deterioração das relações sociais chegou ao nível em que uma pessoa polida e urbana torna-se joia rara, suscitando por vezes desconfiança ou escárnio. Noções básicas de polidez e civilidade parecem ter sido esquecidas e abolidas. Gentileza assume ares de fraqueza, exibicionismo ou esnobação. O Papa Francisco afirmou em recente alocução: “As coisas estão se invertendo cada vez mais. O feminismo saudável está se transformando num machismo de saia, relegando a um segundo plano a grandeza da mulher e sindicalizando a dignidade feminina”. Para muitos, mostrar-se gentil denuncia insegurança e necessidade de aprovação social. A noção de coletividade e pertença a um meio – onde os direitos dos demais devem ser observados – virou uma metáfora risível. Ética tornou-se algo ultrapassado e sem espaço no mundo moderno. As pessoas ignoram o seu significado e a sua importância. O egoísmo, a grosseria, a intransigência, a intolerância, a impaciência e a arrogância passaram a dar o tom no dia-a-dia.

Tudo isso tem suas causas. As condições educacionais, o desprezo ou abandono da axiologia, a ausência da prática religiosa (seja qual for), como parâmetro de vida e a influência externa estão destruindo nossas tradições e hospitalidade. A educação tradicional foi substituída por uma perigosa permissividade. O que se vê hoje é a consequência natural dessa transformação conjugada à insanidade pela qual o mundo enveredou. Como pode se comportar um indivíduo criado sem limites e com pouco ou nenhum preparo emocional e psíquico? Chegando à vida adulta, encontrará uma sociedade altamente competitiva, escravizada pelo consumismo desenfreado, pela fome incontida do lucro, pela injustiça, corrupção, violência e por um culto mórbido à aparência, tanto física, quanto social. Vive-se no mundo do desrespeito, do ter, do poder e aparecer. Pode-se verificar isto nas deprimentes sessões do Parlamento Nacional. Ali, as regras comezinhas do conviver são ignoradas. O uso hipócrita das formas oficiais de tratamento, mesuras e rapapés não ofusca a degradação de certos parlamentares. Não se deve confundir autenticidade ou convicção ideológica com insultos, discordância de ideias com agressão ou destruição e bem-estar coletivo com projetos de pessoas ou partidos.

Muitos concordam que a educação permissiva fracassou e o antigo modelo autoritário também se revelou inadequado. Na verdade, o atual sistema educacional tem se mostrado pouco eficiente. A ênfase dada por algumas instituições de ensino é centrada no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ou o equivalente, como se o futuro do ser humano fosse apenas o mercado de trabalho ou a profissão. A escola prioriza a transmissão de muitas informações e subestima outros valores humanos, levando à fácil ideologização. O ensino superior propõe-se a preparar técnicos, esquecendo o cidadão, o futuro esposo e pai de família. Faltam líderes com exemplo e testemunho de vida. “É preciso humanizar o homem” insistia Jacques Maritain, em sua obra “O humanismo integral”. E Charles Chaplin reiterava: “Sois homens e não máquinas”. É urgente começar implementando noções claras de uma cordial convivência em sociedade. Isto pode soar aos ouvidos de vários como algo estapafúrdio. No entanto, é uma reivindicação imprescindível e inadiável. Não lograram grande êxito os métodos rígidos, excessos e lições de moral alienada. Tampouco cabem a permissividade e o laxismo. Mas é fundamental que reine o respeito entre todos. Porém, necessita-se fazer algo. O cristianismo tem a missão de melhorar ou aperfeiçoar o ser humano. Eis o que nos ensina a Sagrada Escritura: “Ninguém dentre vós agrida, desrespeite, desconsidere e oprima seu próximo. Somente Eu estou acima de vós e sou o vosso Deus” (Lv 25, 17).

QUARESMA E CAMPANHA DA FRATERNIDADE

Foto: João Gilberto

PADRE JOÃO MEDEIROS FILHO

A quaresma é o reviver da caminhada do Povo de Deus em busca da Terra Prometida. É tempo de esperança, expectativa de reencontro, época de sonhos e planos. Como estará a pátria de onde saímos e para a qual pretendemos voltar? Como estão as pessoas que ali deixamos? A viagem é sempre um período de reflexão, planejamentos e, por conseguinte, conversão. Deste modo, quis a Igreja nos proporcionar um espaço interno e temporal, durante o ano, a fim de realizarmos uma viagem ao interior de nós mesmos. E assim, voltando ao que é verdadeiramente nosso, possamos nos deparar com o que ali deixamos, encontrando-o mais amadurecido e mais rico. Às vezes, de volta à casa, depois de meses ou anos, muita coisa não existirá mais. Da mesma maneira, o que é velho, no dizer de São Paulo, deverá desaparecer para dar lugar à novidade de Deus. Esse tempo privilegiado na vida cristã é a Quaresma. Mas, esta não é apenas um período litúrgico. Há uma realidade quaresmal também ao longo de nossas vidas, em que devemos retornar para a terra prometida por Deus, que é antes de tudo nossa paz interior e o encontro com nossa verdade e nossa individualidade.

Quaresma é tempo de aniquilamento e renascer. A cerimônia de cinzas representa uma destruição interior, o fim de tudo aquilo que nos afasta de Deus e de nós mesmos. É preciso reduzir a pó ou a cinzas nossa mentira individual ou social, nosso fracasso, numa palavra, nossos pecados para que possa nascer o homem novo, que Cristo veio mostrar. As cinzas são simbólicas, significam nossa conversão, a cremação de nossos pecados e o brotar de novos planos. Por isso deve surgir em nós um desejo autêntico de escuta da palavra de Deus. A caminhada, a viagem nos dá a oportunidade de dialogar e ouvir outras pessoas. A Quaresma é esse convite a uma escuta atenta e profunda de Deus. É sua Palavra que ilumina nossa vida, que nos chama à transformação interior e nos dá a verdadeira dimensão da misericórdia divina, do perdão e da graça.

Em geral, ninguém caminha sozinho. A viagem é mutirão e partilha. Assim foi o êxodo do Povo de Deus. Durante a peregrinação, muitos conversam e questionam. Por esse motivo, a Igreja instituiu a Campanha da Fraternidade, que é a reflexão em nossa caminhada anual. Neste ano de 2019, a Igreja do Brasil convida-nos a discutir o problema das políticas públicas. Por que? Há muita coisa a ser pensada. Mas, a Terra Prometida que esperamos, o Mundo Novo, feito de mulheres e homens livres, de pessoas solidárias e fraternas, constrói-se na caminhada e começa antes de tudo na retidão de nossas consciências e na sinceridade de nossos corações. Entenderemos assim o que diz Javé, Deus Todo-Poderoso, ao se definir: Eu sou a Libertação. Ouvi o clamor do meu povo e resolvi descer para libertá-lo da escravidão, da opressão e da morte (Ex 3, 7-8).

O lema bíblico escolhido para iluminar a Campanha da Fraternidade 2019 foi extraído do livro do profeta Isaías: Serás libertado pelo direito e pela justiça (Is 1,27). A Sagrada Escritura utiliza, no Antigo Testamento, a palavra direito para designar a ordem justa da sociedade, em sentido objetivo. Uma vez que nem sempre essa ordem é respeitada na vida real, a referida palavra vem invariavelmente acompanhada de outra justiça, designativa da obrigação moral do direito. Assim, a “justiça” obriga moralmente a pessoa a se preocupar com os mais pobres do povo, representados metaforicamente na Bíblia pela tríade: viúva, órfão e estrangeiro (simbolizando os excluídos e marginalizados), para que haja o direito na sociedade.

Somos convidados a agir como Jesus. Este não é mero observador, mas se envolve na vida do seu povo, participa e incentiva os seus seguidores a participar. Com sua ação, ele vai devolvendo aos pobres e infelizes o que lhes foi tirado. O povo não tinha pão, Cristo partilha o pão; o povo não tinha saúde, Jesus cura os doentes; muitos do povo eram colocados à margem da sociedade, Jesus os traz para o centro.

 

Viva a nossa gastronomia

Padre João Medeiros Filho.

Segundo o relato dos evangelistas, Cristo apreciava os alimentos e bebidas, a ponto de ser acusado por seus adversários decomilão e beberrão” (Mt 11, 19). Pelo sacramento da Eucaristia, Ele transubstanciou o pão e o vinho em seu corpo e sangue. E assim se definiu: “Eu sou o pão da vida” (Jo 6, 8). O alimento é sagrado. Nesse contexto, ainda é costume entre os cristãos começar as refeições com orações e a benção da mesa. Os mosteiros medievais legaram ao Ocidente receitas de pratos e bebidas. Os monges eram exímios fabricantes de vinhos,licores, cervejas, tortas, bolachas, biscoitos etc., além de desenvolver várias técnicas agrícolas.

No final de janeiro passado, o Brasil participou do Bocuse d´Or, um campeonato mundial bienal de chefs. Recebeu este nome em homenagem a seu organizador. O evento acontece, em Lyon (França), junto com a feira dSalão Internacional de Restaurantes, Hotelaria e Alimentação – SIRHA. Trata-se de uma prestigiada competição do mundo da gastronomia. Nela, a preparação dos pratos acontece diante do público Antes, não se podia acompanhá-la, pois os profissionais atuavam nas cozinhas.A SIRHA tornou-se uma renomada feira internacional do ramo. Hoje organiza também outros concursos, inclusiveCopa do Mundo de Patisserie o Concurso Mundial do Pão.

Com ingredientes do norte e nordeste, destacando-seraízes da floresta amazônica, tucupi preto, puxuri, tapioca hidratada e leite de coco, o Brasil participou desse evento mundial, defendendo nossas tradições e hábitos alimentares. A equipe brasileira contou com a presença de especialistas, como a do chef Luiz Filipe Souza, assessorado por Giovanna Grotti, vencedora da versão latino-americana do Bocuse d´Or 2017. Nossos gastrólogos demonstraram que os sabores brasileiros podem agradar diferentes tipos de paladar. Esse time de estrelas da nossa culinária elaborou receitas inéditas, capazes de encantar outras nações. Enquantoos chefs participavam das provas, dez empresas brasileiras mostravam ali o diferencial dos ingredientes nacionais a cerca de oito mil compradores de diversos países. Nessa feira, as melhores empresas desse tipo de negóciodisputam a atenção do mercado consumidor. As empresas brasileiras estimam que as transações comerciais feitas no Bocuse d´Or 2019 deverão render milhões de dólares anosso país nos próximos meses.

A cada evento os clientes vão conhecendo as diversas formas de usar nossos produtos, e se encantando com os ingredientes que oferecemos”, explicou Fernando Arruda. Este levou para o encontro a tapioca hidratada e o leite de coco, um dos produtos mais requisitados por quem buscava novidades. Sobressaíram igualmente o açaí e as polpas de frutas, oriundas do norte e nordeste. O Mestre da Galileia dizia: “Só em sua própria terra, um profeta não é valorizado” (Mc 6, 4). Muitos compatriotas se deslumbram com comidas e bebidas importadas. Produzimos uvas de exportação e cachaça de excelente qualidade. Renovamos aqui nosso convite para revisitar o inesquecível mestre Cascudo, desta feita em sua obraPrelúdio da Cachaça. Mas, para alguns, comer pratos e ingerir bebidas alienígenas pode parecer chique, esnobe e talvez confira status.

É a primeira vez que o Brasil participa da vertente de negócios da SIRHA com resultados promissores”, afirmou Camila Meyer, representante da Agência Brasileira de Promoção de Exportações – APEX.  Ações como essa servem para mostrar a gastronomia brasileira eprovar que os ingredientes diferenciados podem transformar pratos tradicionais em algo especial aos olhos do mundo. A diversidade de clima e biomas que o Brasil possui faz com que os cozinheiros possam contar com um manancial de produtos característicos. Isso possibilitalevar às mesas de outros povos a riqueza de sabores que temos a oferecer. No estande do Brasil, o chef Guga Rocha preparou um prato de mandioquinha com feijão, castanha de caju, salada de folhas e um toque de vinagre aromatizado com frutas tropicais e nordestinas. PadreVieira, do púlpito da Igreja dos Jesuítas de Salvador, defendia nossa cultura e apresentava matizes de nosso legítimo patriotismo: “Por que buscais tão longe aquilo deque necessitais, se tendes aqui em abundância e melhor? Ninguém se contenta com o tamanho que Deus lhe deu”.

Mártires do descaso

Padre João Medeiros Filho

Quem aprecia autos – ao sabor de Gil Vicente e Ariano Suassuna – talvez pudesse narrar nesse gênero as tragédias de nosso país, dentre elas Brumadinho, metáfora de nossa realidade. Restaurante e escritórios, bem abaixo no caminho da barragem rompida, permanecem “na retina cansada” dos sobreviventes. As sirenes soam descontroladas aos ouvidos dos habitantes de outras cidades. As árvores e as pedras rolam, pois não se sustentam com tanta sujeira material e imaterial a seus pés. Inúmeras construções e planos destruídos, pessoas ceifadas de suas vidas em átimos.

Muitos fecharam os olhos, durante anos, diante de erros bárbaros, omissões e negligências em que o poder público é ausente ou conivente. Foram catástrofesprevistas. Elas continuam e, se os reparos forem procrastinados, atingirão a ponte de Igapó, sobre o Rio Potengi ou a de Niterói sobre a Baía da Guanabara.  Piscamos ainda os olhos, mas centenas de pessoas os cerraram eternamente, cobertos com a lama fétida do descaso e da ganância. Dirigentes revelaram uma cegueira de décadas, perante incongruências e crimes, apesar de permanecerem vivos e de consciência anestesiada. Longe, lenços enxugam as lágrimas de uma gente atônita, sofrida e perambulando na noite do menoscabo social e público. Existem os que tentam consolar as vítimas, procurando explicar o inexplicável. Autoridades e responsáveis abrem sindicâncias intempestivas e inconsequentes, talvez inócuas, decretando luto oficial e bandeiras a meio mastro.

Foi assim em Minas Gerais (Miraí, Mariana e Brumadinho), no Rio Grande do Sul (boate Kiss), em São Paulo (incêndio em Cubatão e no Museu da Língua Portuguesa, dentre tantos), no Rio de Janeiro (o fogodevorou o CT do Flamengo, o Museu Nacional; o desabamento no Morro do Bumba etc…). Não esquecemos ainda o infortúnio de Goiânia (césio 137). Vidas e patrimônio cultural viraram cinzas. Cidades estão pávidas e indefesas ante tanto desleixo. Se não houver providências, pontes e viadutos dissolver-se-ão, como o asfalto com o qual recapeiam ruas e estradas. Resistem crateras abertas, feridas não cicatrizadas, bueiros com bocas escancaradas – quais túmulos – preparadas para sepultar as próximas vítimas. A displicência com que tratam nossas cidades, as avenidas por onde passamos, as estradas pelas quais trafegamos rondam-nos em constante ameaça. fios pendurados ou desencapados, deixados ali por uma empresa, por outra que mexeu, e mais alguma que precisou desligar ou ligar algo. São responsabilidades jogadas de mão em mão, de governo em governo, de uma esfera a outra.

Ouvem-se promessas, às vésperas das eleições. As câmaras municipais dão nomes dos mortos às ruas e avenidas que os vitimaram. Afinal, necessitam de homenagens para não serem totalmente esquecidos. Assembleias legislativas? Olhem a ALERJ: vários integrantes, atrás das grades, por desvios, corrupção, servidores fantasmas, laranjas e “rachadinhas” de salários. Aquelas de outros estados aguardam investigações, se encontrarem alguém disposto a dizer a verdade. Alguns deputados certamente falarão que estão nas suas bases, lutando pelas cidades que representam no parlamento.

Aqui ficamos diante da lama de nossa indignação, recolhendo os rejeitos e escombros de nossa revolta e até, quem sabe, culpando Deus por tantas desgraças. Assiste-se ao espetáculo cotidiano da insanidade e à briga pelo poder no Congresso. Ecoam discursos teatrais, recheados de “excelências” e salamaleques. Oxalá seu pensamento e vontade estivessem voltados para o povo, transformandodiscursos em gestos concretos. É nele que devem fixar a atenção e registrar as solicitações. Não raro, somos deixados ao largo. Teremos de esperar o dia em que a casa cair, o buraco engolir, o prédio incendiar, a ponte desabar, o rio transbordar, o fio eletrocutar, a pedra rolar do morro, a barragem romper? Ah, mas não se pode deixar de pagar o IPTU, o IPVA e outros tributos com vencimento em breve. Deus queira que o dinheiro arrecadado sirva realmente para não chorarmos por tantos desastres. Lembremo-nos das crianças de outrora: “Cadê o dinheiro que tava aqui? O gato comeu”; o fogo queimou, a lama engoliu e o rio carregou. Cabem as palavras do evangelista Mateus, falando dos santos inocentes: “Ouve-se um grito em Ramá, um grande lamento. Raquel chora os seus filhos, que já não vivem” (Mt 2, 18. Jer 31,15).

Férias e veraneio

Padre João Medeiros Filho

As férias (sobretudo escolares) e o veraneio deste ano estão terminando ou já acabaram para alguns. E isso nos leva a refletir. Veranear, hoje em dia, representa mais uma questão de status social ou econômico do que propriamente uma oportunidade de lazer e repouso. Nota-se que não vale qualquer local. E não se fale aqui do caos do trânsito a caminho das praias e do barulho dos vendedores ambulantes e paredões de som. Já no Natal, às vezes, esquece-se o sentido da festa cristã e o pensamento volta-se totalmente para preparar a temporada de verão, seja na praia ou na montanha. Há o mito do veraneio. Não o fazer ou vivê-lo, parece que envergonha ou deprecia uns tantos. “Certas pessoas ficam postando fotos das praias, mas a gente sabe que elas só ficaram por lá dois ou três dias”, brincou o cantor padre Fábio de Melo em seu “twitter”.

Durante a temporada de verão, as redes sociais enchem-se de selfies e mensagens. Parece cômico, porém está se tornando também trágico. Não pelo fato de que as pessoas publiquem imagens e notícias de suas férias por uma ou mais semanas. Mas, pelo que isto representa em relação à necessidade de se construir uma imagem, a qual se encaixe nas expectativas e nos padrões ilusoriamente imaginados e planejados pela sociedade hodierna.

É provável que muitos indivíduos tenham gatilhos que influenciem seu ego. Um elogio costuma fazer alguém sentir-se melhor, enquanto uma crítica pode ser o suficiente para causar desânimo ou até mesmo desencadear depressão. A vontade de aparecer é uma arma de dois gumes. A foto de uma amiga, passando o verão em Fernando de Noronha ou Dubai, a selfie da colega de trabalho, exibindo um corpo “sarado”, impecavelmente dentro dos atuais padrões de beleza ou o carro novo que um vizinho acaba de adquirir poderão atingir a autoestima de alguns. As redes sociais estão aí para comprovar tais fatos. 

Não é raro que pessoas trabalhem sua própria imagem para transmitir a impressão de que sua vida vai muito bem. Muitas vezes, o que se publica está ligado ao que se gostaria de ser, porém distante da realidade. Hoje, há aplicativos para transformar a barriga em “tanquinho” com apenas alguns toques. Isso sem falar em maquiagem, “fotoshop” e outros artifícios. Praticamente, uma plástica virtual. “Vanitas vanitatum et omnia vanitas”, (“vaidade das vaidades, tudo é vaidade”), proclama o Livro Sagrado (Ecl 1, 2). Exibe-se nas redes sociais o sonho ou a utopia de cada um. Entretanto, no cotidiano, não se faz o menor esforço para ser digno e verdadeiro. As “fake news” reforçam e exteriorizam nossa ilusão individual, do nosso faz de conta. Afinal, é bem mais fácil fazer uso de um aplicativo do que ser autêntico e coerente.

Viagens, automóveis e restaurantes de luxo – tudo isto que a sociedade atual valoriza – vêm construindo o perfil de muitos. Até a missão e a arte de informar entraram nessa onda. Isso explica a grande competição por “likes”. Obter mais curtidas confere importância e maior valor. Ninguém quer ser diminuído na mídia. No entanto, é assim que vários acabam se sentindo. Segundo uma pesquisa do “booking.com”, grande parte dos entrevistados assumiu a postura de ter publicado uma foto antiga, de férias anteriores, querendo parecer mais jovem e atraente. 

Acredita-se que o problema não seja somente construir um novo personagem, mas não se aceitar ou estar de bem consigo mesmo. Os sinais da idade, uma reserva menor de dinheiro que obriga a ir para um destino de férias mais barato e simples, não devem ser um problema ou drama. Faz parte do existir e viver humanos. O que diferencia é a forma como se lida com tudo isso. Cristo veio ao mundo para nos ensinar a ser realistas e humildes: “Quem de vós pode, com sua preocupação, acrescentar um só dia à duração de sua vida. Vede os pássaros do céu. Olhai como crescem os lírios. Eu vos digo: nem Salomão em sua glória se vestiu como um só dentre eles”. (Lc 12, 25, 27).

A poesia e Deus

 

Padre João Medeiros Filho

O êxtase poético é o experimento de uma realidade anterior a ti. Ela te observa e te ama. Isto é sagrado. É de Deus. São conhecidas estas palavras inspiradas de Adélia Prado. A escritora mineira é uma das vozes que toca o coração de muitos. As frases supracitadas exprimem a força latente da poesia. Nesta, quando os conceitos não conseguem manifestar o que se sente, a metáfora salva, tornando-se o seu regaço e alcançando, de fato, aquilo que é belo, revelando a essência do real, transpirando deslumbramento e harmonia. Além de toda conceituação lógica ou racional, o poema comunica a experiência daquilo que nos escapa e nossa linguagem cotidiana não dá conta de expressar. Santa Teresa d´Ávila afirmava que “a vivência poética é uma experiência mística, de límpido deslumbramento e encanto. E isso não é ser de outro mundo. É ver este mundo iluminado pela beleza.

O instante poético é uma revelação que nos conduz ao sagrado. Por meio dele, a realidade mostra-se no cotidiano da existência, como uma surpresa que nos seduz e faz ver, além do trivial e do imediato. Tal experiência encontra também expressão na arte. Porém, a poesia paira em toda obra artística, despertando em nós uma sede do transcendente e do infinito.

A poesia reveste-se de uma vitalidade mística. Não porque trate desse tema ou fale sobre Deus, mas por gerar em nós um sentimento transcendental. Encanto e enlevo são duas de suas dimensões religiosas e espirituais. Não se trata de afirmar que ela seja ou deva ser confessional ou esteja a serviço das religiões. Cumpre-lhe servir sempre à beleza, pois é sua manifestação em nosso cotidiano. E quem a percebe, está em comunhão com o sagrado. Ela é uma das faces visíveis de Deus, a qual nos salva de nós mesmos e da dureza da vida. Sabiamente, Dostoievski dissera que “só a beleza nos salvará e a ternura redimirá o mundo”. E, na mesma esteira, Adélia Prado proclama, quase teologicamente: “fora do poema não há salvação”.

Alcançar a transcendência é algo que nos caracteriza, entre outras coisas, como criaturas humanas. Somos seres para além de nós mesmos. Isso torna-nos religiosos, abertos para Aquele que nos ultrapassa e, num sem fim de possibilidades de nomeação, comumente, é chamado Deus. A poesia é liame que nos leva a contemplar o Absoluto e o Eterno. É, portanto, intrínseca e radicalmente algo religioso, seja confessional ou não. Para os que têm fé, a vivência poética extrapola nossas expressões comuns. É o saber e o sabor de Deus. “A borboleta pousada ou é Deus ou é nada”, poetizou Paul Claudel.

A poesia tem uma relação íntima com a espiritualidade. Ambas são nomes do êxtase diante do Inefável, que nos arrebata. Elas se expressam por meio de símbolos, parábolas ou alegorias, isto é, buscando revelar aquilo que a linguagem corriqueira não alcança. O mundo tem fome de beleza e os poetas são diáconos desse pão sagrado, verdadeiros profetas que anunciam a salvação, mesmo entre os escombros do sofrimento, da dor e da morte. Estar atento à revelação do que encanta, é missão do poeta. Ser sempre mais, para além de si mesmo é igualmente sua vocação!

Deus é também Poesia, não obstante sua invisibilidade presencial. Impossível não o sentir. Quem poderá ver o Criador? Este é como o vento. Pode-se senti-lo na pele, ouve-se a sua voz nas folhas das árvores e seu assobio nas gretas das portas. Mas não se sabe de onde vem, nem para onde vai. Na flauta, o vento se converte em pura melodia. Não há como detê-lo. Entretanto, as religiões tentam enclausurar Deus em lugares que denominam templos e igrejas. E, se Ele está fechado e isolado numa casa, ficará ausente do resto do mundo? Para Mário Quintana, “a poesia purifica a alma e um belo poema sempre leva a Deus”! A lágrima se evapora, o sorriso se abre, a flor desabrocha, enquanto a poesia e a oração aproximam a criatura de seu Criador!

A era da impaciência

 

Padre João Medeiros Filho

Vive-se na sociedade dos apressados, agitados e impacientes. Verificam-se manifestações nesse sentido no trânsito, nas filas, nos atendimentos em geral, nas celebrações religiosas etc. Alguns terapeutas afirmam que 60% dos seus pacientes padecem dessa morbidade. As novas tecnologias estão mudando a maneira de percepção da realidade cronológica e o modo de viver das pessoas. Às vezes, tudo parece se acelerar. Então, a impaciência aumenta. Constata-se que, por conta disso, muitos vivem presos à cronometria e se tornam escravos dos relógios.

Não raro, tem-se a impressão de que o tempo voa, alimentado por um invento que se tornou extensão de nosso corpo: o inseparável telefone celular (smartphone). Este parece sempre disposto a oferecer novidades. Porém, de forma adversa, há ocasiões em que tal instrumento funciona como um algoz. Existem momentos, em que se espera uma resposta, a qual tarda a chegar. Recentemente, a psicóloga australiana A. McLoughlin publicou um estudo, demonstrando que o corpo humano percebe o tempo de maneira diferente, quando se permanece longos períodos conectados a dispositivos elétricos ou eletrônicos. Outra pesquisa, realizada na Universidade de Harvard, comprovou que nos indivíduos de sociedades tecnocêntricas os relógios biológicos e internos manifestam-se com um ritmo célere e descontrolado. Isso pode ser útil para se trabalhar com mais rapidez. No entanto, faz com que as pessoas se sintam pressionadas e nervosas. À medida que a marcha de nossas vidas se acelera, sente-se subjetivamente o tempo disponível diminuir. Isto faz os seres humanos mais impacientes. Alguns cientistas afirmam que a percepção temporal está ligada às nossas emoções. Se tudo está bem, passa mais rápido. Quando se está com dificuldades e problemas, pensa-se que ele fica mais lento. O modo como o cérebro humano o percebe, continua ainda sendo um mundo de incógnitas para os pesquisadores.

É muito conhecida a poesia-oração do padre Michel Quoist, em seu livro Poemas para rezar, quando afirma: “Senhor, os homens passam correndo pela terra: apressados, atropelados, sobrecarregados, enlouquecidos, assoberbados. Correm todos, para não perder tempo, para recuperar o tempo, para ganhar tempo. No entanto, Jesus Cristo já advertia sobre a pressa e a agitação: “Quem de vós com toda a sua preocupação pode acrescentar um só dia à sua vida?” (Mt 6, 27; Lc 12, 25). O apóstolo Paulo dirigindo-se ao bispo Timóteo recomenda: “Ao discípulo do Senhor… convém que seja manso para com todos, saiba ensinar e seja sempre paciente” (2Tm 2, 24).

Mas, a questão atual é saber se a vida está transcorrendo mais rápido do que antes. A pressa, a falta de oportunidade para encontros, conversas, leitura, reflexão e até mesmo oração levam a esse questionamento. Uma conclusão deve ser tirada. O tempo não nos pertence. Por mais que se queira, ele nos vence e poderá tonar-se um grande inimigo dos seres humanos. A impaciência não modifica nem melhora a situação. Nota-se que, quanto mais estímulos e compromissos para as pessoas, ele parece mais apressado. No entanto, é fundamental perguntar: vive-se melhor nos dias atuais? Muitos respondem de forma negativa, pois a sobrecarga de informações revela-se como uma fonte de estresse. Quando este aumenta, afeta a percepção do tempo e da vida. Se alguém não está bem, tudo fica mais demorado e lento. O apóstolo Tiago já alertava para a tentação da ansiedade que domina os seres humanos. “O que será de vossa vida? De fato, não passais de uma neblina que se vê por um instante e logo desaparece” (Tg 4, 14). Por que tanto açodamento?

Hoje, há alguns termos menosprezados neste mundo dos vexados, por exemplo: ter paciência e esperar. Isto gera em vários a incerteza. E esta significa muitas vezes sofrimento. O professor Antônio Bayés de Luna, da Universidade de Barcelona, autor do livro “El reloj emocional”, afirma que “é necessário ensinar o valor da espera e da demora”. A Sagrada Escritura caminha nessa direção e tenta nos transmitir isto, como se depreende do Livro do Eclesiastes: “Tudo tem o seu tempo determinado, e há um momento oportuno para cada coisa debaixo do céu.” (Ecl 3, 1).