Um grande desafio

Padre João Medeiros Filho

Segundo psicólogos, cientistas sociais e demaisestudiosos do comportamento humano, vive-se hoje um tempo de desinteligência, incultura, deselegância de gestos, arrogância, intransigência e bazófia. Cercam-nos laços de impostura e ausência de estatura cívica. Somos vítimas da rudeza de espírito e indigência moral. Deparamo-nos com sandices imensuráveis e incontáveis violações, em cenário crescente de decadência dasociedade civilizada. Um dos paradoxos dolorosos denossos dias reside no fato de que alguns medíocres pretendem ser detentores da verdade absoluta. Por outro lado, aqueles que pensam estão mergulhados em dúvidas e questionamentos. Como sentimos falta dos ensinamentos de polidez e urbanidade. Indaguem às ex-alunas da secular Escola Doméstica de Natal e aos egressos de tradicionais colégios potiguares, especialmente os religiosos. Há escassez de lições de etiquetas. Fomos da época do“Pequeno manual de civilidade para uso da mocidade”, da coleção F.T.D (orientada pelos irmãos maristas). É preciso saber usar o que se aprendeu na escola de nossos antepassados. Ali havia criatividade, beleza, valores humanos e especialmente baliza ética. Transmitia-se umaeducação generosa. Buscava-se incutir nos jovenscivilidade básica, polidez, elegância, respeito ao outro, solidariedade humana e cristã.

É necessário ler e refletir bastante (Ah! O livro, esse esquecido), ouvir canções com letras ricas em conteúdo, poéticas e de ritmos mais suaves. É imprescindívelabandonar um pouco o smartphone e voltar às rodas de conversas com familiares e amigos (alguns irão dizer: “padre velho cafona, saudosista e caviloso”). É importanteusufruir da natureza para superar a crueldade dos dias sem saída ou solução aparente. Deve-se procurar dialogar com pessoas sensatas, delicadas, do bem e de bem. Não se pode desprezar a suavidade e a tenacidade, a independência e a maleabilidade. Há carência da verdadeira tolerância e do autêntico respeito às diferenças. Falta firmeza, porém sem intransigência, de pessoas autênticas, vivendo outros ritos e expressões. Assim poder-se-á manter a integridade, o fio da lucidez do desafio de conservar-se de pé em meio a um vendaval de modos toscos e ideias rasas.Para vencer as contradições do mundo, só muita espiritualidade eprofundidade interior”, aconselhou recentemente o Papa Francisco.

A sociedade hodierna faz-nos incessantes apelos para que voltemos a pensar com o cabedal ético e axiológico,formado ao longo dos anos. É preciso não esmorecer e capitular. É fundamental saber dizer não ao conluio obscuro, à satânica e soturna cooptação de desvioshumanos e sociais. Aprendamos a não ficar ouvindo osladinos ventríloquos de discursos do oportunismo no campo político, econômico e religioso.

O convívio social nos impele ao exílio forçado, àretirada imposta pelo toque de recolher, oriundo dos partidos, sindicatos, grupos etc. Há que ter fé, paciência, coragem e esperança. Um vasto e surpreendente caminho deve ser percorrido nos territórios de nossa livre expressão. Defendamos veementemente as searas íntimas e exteriores da insubmissão ao que se pretende e tenta impor a nossa sociedade. Tudo passa, tudo se transforma ese desloca nos imensos terrenos da construção das amizades e culturas. Não poderemos esquecer que haverá lugar para a solidariedade, o amor à vida e respeito ao ser humano.

O apóstolo Paulo já advertia o seu discípulo Tito: “Há muitos revoltados, faladores fúteis e impostores. É preciso calar-lhes a boca. Movidos por interesses torpes chegam a dividir famílias inteiras” (Tt 1, 10-11). Talvez, se vivesse entre nós, diria assim: desconfiai da arrogância de algunsou da falsa aparência de outros. Podem estar escondendoalgum veneno letal. Tem-se de examinar, sobretudo, o que é apresentado como normal ou tido como coisa natural, nos dias de hoje. Em tempo de desordem, ódio,divergências, radicalismos e arbitrariedade, em períodos de mentiras  inescrupulosamente divulgadas e de atos desumanos, cumpre-nos o sagrado dever de rejeitar. Mas, nada poderá parecer impossível de mudar. Jesus Cristo, um dia, tranquilizou os seus discípulos: “Confiança, eu venci o mundo” (Jo 16, 33). É ainda válida e bem atual a recomendação do Mestre: “Acautelai-vos dos falsos profetas, que vêm até vós vestidos como ovelhas, mas interiormente são lobos vorazes.  Por seus frutos os conhecereis” (Mt 7, 15-16).

A catedral de Notre Dame

Padre João Medeiros Filho

A França é denominada pelos católicos “Filha primogênita da Igreja”. Lyon é a sé primacial, criada no século II. Santo Irineu, um dos pilares da Patrística, discípulo de São Policarpo de Esmirna, foi seu primeiro bispo. Paris, enquanto diocese, data do século III. Segundo alguns autores, a região foi catequisada por Saint Denis, martirizado por volta do ano 250. Outros historiadores afirmam ter sido São Vitorino o primeiro prelado. Entretanto, o site oficial da arquidiocese coloca-o, como o sexto bispo, em 346 de nossa era. A sede do bispado, hoje arcebispado é a catedral de Notre Dame (Nossa Senhora). O início de sua construção data de 1136. A circunscrição eclesiástica é pequena em extensão, possuindo uma superfície de 105 Km2 com uma população aproximada de 2,3 milhões de habitantes, dos quais cerca de 60% são católicos.
Em 1964, participamos em Notre Dame da missa de ordenação sacerdotal de padre Jacques Hubert, nosso colega de estudos, na Universidade de Louvain (Bélgica), presidida por Dom Pierre Veuillot (arcebispo coadjutor).
É ingente a importância histórica, arquitetônica, cultural e religiosa do renomado templo. Não daria para descrevê-la num simples artigo. Emociona-nos saber que lá, ao som do canto gregoriano, converteu-se ao cristianismo Paul Claudel. Na noite de Natal de 1886, ouvindo o coral, acompanhado pelos acordes do órgão, chorou copiosamente e pediu a Deus que o iluminasse. O poeta fora à catedral a fim de encontrar ali inspiração artística para as suas obras literárias. Parou do lado direito da catedral, junto à segunda coluna, onde se pôs a observar as pessoas orando. Subitamente sentiu um impulso de fé, acreditando em Deus transcendente, misericordioso, afável e paternal. Veio ao encontro de Claudel o Pai que conhecera, quando criança, e do qual se afastara na sua mocidade. Isto nos explicara, há mais de sessenta anos, nosso mestre Hélio Galvão, que recitava os versos claudelianos: “Onde encontrar paz, senão em Ti, Senhor? Quem enxugará as minhas lágrimas, senão Tu, Senhora Mãe do Amor e do Perdão”?
Em Notre Dame nasceram vários movimentos apostólicos marcantes para a história da Igreja. Quem esquecerá os padres operários, que aceitavam ser trabalhadores das minas, estivadores dos portos, garis anônimos? Em Notre Dame suplicavam a força e o silêncio de Maria, antes de começar sua missão. Esse modelo de vida e espiritualidade abraçou nosso saudoso amigo Michel Quoist, que nos levou ao Cardeal Maurice Feltin para receber a sua bênção. Quem não se recordará da Notre Dame, berço dos célebres sermões quaresmais, tocando os fiéis? No seu púlpito brilhou o Cardeal Emmanuel Suhard com sua sabedoria e eloquência. É do templo sombrio e frio, embalado pelo toque dos sinos seculares, chamando os devotos de Maria Santíssima para a oração, que sentiremos saudades. Sinos que inspiraram Vitor Hugo no Corcunda de Notre Dame. “Paris, são divinos os sons dos seus sinos, os sons de Notre Dame”.
Há quem chegue a pensar em incêndio criminoso, como um bispo brasileiro, ressaltando que já foram incendiadas mais de dez igrejas nos últimos meses, na França. O incêndio é metáfora. Lembra o fogo sobrenatural, destruindo a violência e a injustiça, o ódio e egoísmo, o esquecimento e desrespeito a Deus, que deseja se tornar presente nos templos e nos tempos, porém esquecido dos homens. A Virgem Maria – em plena semana santa – viveu a repetição de seu sofrimento, junto à cruz, ao ver a tristeza de seus filhos parisienses, contemplando sua casa em chamas! É lapidar a frase de Dom Eugênio Sales, quando administrador apostólico de Natal, referindo-se às obras da catedral de Nossa Senhora da Apresentação, assim afirmou: “É preciso construir primeiro a catedral dos homens [das consciências]”. Os franceses para não presenciarem outros desastres e acidentes deverão reconstruir igualmente a catedral do perdão e do amor, da fraternidade, da mansidão e humildade. O Papa Francisco deu o exemplo, ao beijar os pés dos dirigentes do Sudão do Sul. Vale lembrar as palavras do Cura d´Ars: “Deus habita no coração do homem, mas é necessário também um templo sagrado que seja a casa do encontro de todos os seus filhos”. Que todo ser humano seja realmente “o sacrário de Deus”! (1Cor 3,16)

Rememorando a Semana Santa

 

Padre João Medeiros Filho

Acertadamente, chamamos esta semana de santa. Inicia com o Domingo de Ramos, denominado assim desde os primeiros séculos da era cristã. Ramos de palmas foram jogados pelo povo nas ruas, como gesto de aplauso e reverência, quando Jesus adentrou em Jerusalém. Ele fez esse percurso, montado num jumento. Gesto insólito, mas previsto pelo profeta Zacarias: “Exulta de alegria, filha de Sião, solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém: eis que vem a ti o teu Rei, justo e vitorioso. Ele é simples e vem montado num jumentinho” (Zc 9, 9). A chegada solene em Jerusalém simboliza a entrada gloriosa no seu Reino, contrastando com cortejos triunfais dos poderosos, que estamos acostumados a presenciar. Cristo demonstrou, assim, despojamento e humildade, como Rei e instaurador de um novo Reino, que não se fundamenta na prepotência, na força e, muito menos, na ostentação. “O meu Reino não é deste mundo” (Jo 18, 36), assegurou o Mestre a Pilatos.

Chegara o momento dos seus últimos ensinamentos, os mais difíceis de serem compreendidos e aceitos, dentre eles, o sofrimento na cruz. Trata-se da Quinta-Feira Santa, data marcante para a história de nossa Redenção. Nesse dia, Jesus instituiu o Sacerdócio e a Eucaristia, na qual está latente o autor dos sacramentos. Ainda na quinta-feira, Ele pronunciou o sermão de despedida: “Pai, é chegada a hora. Glorifica teu Filho, para que teu Filho glorifique a ti” (Jo 17,1). À noite, começa a agonia, no Horto das Oliveiras. Ali está prefigurado todo o drama do sofrimento humano, causado pelos nossos pecados. Jesus já havia falado sobre sua paixão: O Filho do Homem deverá sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, sumos sacerdotes e doutores da Lei, deverá padecer e ser morto” (Lc 18, 22). Naquela noite, Ele iria assumi-la radicalmente, agregando à sua cruz todas as dores da humanidade. Depois de preso, flagelaram-no. Aconteceu, também, a coroação de espinhos, a única conhecida na história.

Amanhecia a Sexta-Feira Santa. Cristo foi posto diante de dois tribunais. Primeiramente, o Sinédrio, onde foi incriminado por “heresia” ou heterodoxia, ao se proclamar Filho de Deus. Depois, levaram-no até Pilatos que, diante da insistência do povo, o condenou, entregando-o para ser crucificado. Começava, assim, o caminho do Calvário, que terminou com a sua crucifixão. Cristo ficou pendente na cruz, do meio-dia até às quinze horas, aproximadamente. Seguiu-se a sua morte, na qual Ele manifestou todo o seu poder, entregando-se livremente ao Pai: “Nas tuas mãos, ó Pai, entrego o meu espírito” (Lc 23, 46).

Finalmente, tudo confluiu para o grito exuberante do aleluia, na madrugada do domingo. Jesus quebrou os laços da morte, porque ela não tem poder sobre o plano de Deus. Tornou-nos merecedores da Vida Nova, através do sofrimento e da perfeita doação de si mesmo. E, ressurgindo, no-la dá como garantia e início da felicidade eterna. “Vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10). Devemos celebrar a Ressurreição com toda a alegria que Jesus traz a seus irmãos, especialmente com sua presença na Eucaristia.

Nesta Semana, toda a caminhada que fazemos com Cristo – das trevas do pecado para a luz da vida renovada – encontra o seu sentido mais profundo. Por isso, ela é santa e requer que todos a celebrem com o máximo de respeito, piedade e amor. Deus ama todos os seus filhos, eis a verdade proclamada e vivida nesta Semana. Às vezes, somos incapazes de imaginar incomensurável doação. Quem dentre nós, está disposto a sacrificar seu filho único para salvar e dar a paz aos outros? É esse amor que vivemos e celebramos, de modo especial no Tríduo Pascal. O gesto de Cristo é oferta divina gratuita, que atinge o ser humano em profundidade, antecipando-se até mesmo à nossa capacidade de amar. Ele ama-nos independentemente de nosso amor, não porque sejamos bons e justos, mas porque Ele assim o quis e deseja nos salvar e comunicar a vida em plenitude. Veio nos libertar daquilo que nos deixa infelizes. Sua Palavra transformará em alegria nosso pranto, em certeza nossa dúvida, em paz nossa angústia! Mistério insondável do amor de Deus!

“O que é a verdade”?

Padre João Medeiros Filho

É bem conhecida a pergunta de Pilatos a Jesus, durante o interrogatório deste: “Quid sit veritas?” (“o que é a verdade”? Jo 18, 28). Há várias interpretações. Dentre elas, incluir-se-ia a dúvida do governador romano da antiga Palestina. Para alguns, tratava-se de uma armadilha a fim de condenar Cristo com seus próprios termos e argumentos. Já para certos teólogos e exegetas, o Filho de Deus queria mostrar que, mesmo diante de fatos e evidências, muitos não aceitam o que é real e verdadeiro. Não será, portanto, o que acontece no Brasil de hoje, povoado de incertezas, contradições e sofismas? Em virtude disto – ante a pletora de informações e a influência exercida pela mídia na cultura e no comportamento humano – faz-se necessária uma maior atenção às desconstruções de conceitos fundamentais para a sociedade. Proliferam veiculações de arranjos semânticos, eufemismos, distorções, meias verdades, mentiras e engodos. Tudo isto tem deixado perplexa e enojada parte da sociedade.

O desinteresse pelo que é verdadeiro chega ao limite do crível e tolerável. O pensamento atual, maquiado por conveniências políticas, partidárias, econômicas, culturais e religiosas, manipula toda e qualquer realidade. Isto faz com que não se saiba mais o que é certo ou errado. Os filtros sociais não estão purificando as mentes, deixando passar o lixo de infâmias, calúnias, erros, desrespeitos e agressões. A sociedade tornou-se surda e míope, incapaz de ver o que é ético. O “nós” foi substituído pelo “eu”. A pátria foi reduzida a “meu” partido, sindicato ou grupo. Parece ser esta a consequência do desprezo da verdade, em que posições e interesses pessoais, políticos e outros agem diretamente contra os fundamentos da veracidade. Esta é confundida com ideologias, tornando-a sinônimo de favorecimento a alguém ou alguns.

Regida pelo relativismo e interesses não éticos, a cultura atual lança-se contra a milenar tradição de ver os fatos sob o viés da retidão humana, isto é, sob o conceito filosófico e moral de verdade. Esta, segundo os aristotélico-tomistas, define-se como a “adequação do pensamento e da realidade”. Muitas são as investidas socioculturais que tendem a construir um itinerário fragmentador desta concepção. No abandono ou relativização de todo e qualquer projeto de autenticidade, funda-se a definição fracionada do correto e verdadeiro. Cada um, com sua experiência, acha-se com o direito de elaborar a sua própria verdade e deseja impô-la, a todo custo, aos outros. Por conta de tal esfacelamento, sente-se dificuldade na arte de conviver e pisa-se no solo pantanoso da mentira e do falso.

O Papa Francisco, no início de seu pontificado, denunciara a “ditadura do relativismo”, que invade escolas, igrejas, instituições públicas e privadas, tribunais e governos, colocando em risco a sadia convivência entre os homens. “Sem verdade não haverá paz. E esta não pode acontecer, se cada um é a medida de si mesmo”, afirmou ainda o Santo Padre, falando ao corpo diplomático acreditado junto ao Vaticano, logo após a sua investidura como Sumo Pontífice.

A verdade é parte imprescindível da lei natural, por sua vez, fundamento moral para edificar a sociedade e elaborar a lei civil. A negativa de sua universalidade e imutabilidade impossibilita a construção de um relacionamento real e duradouro com outrem. Quem se autoproclama medida única da verdade não pode conviver e colaborar com seu semelhante. O obscurecimento da sua percepção, contida na lei natural, ocasiona cisão na liberdade dos indivíduos. São João Paulo II explicava que “enquanto exprime a dignidade do ser humano e estabelece a base dos seus direitos e deveres fundamentais, a lei natural – geradora da verdade – é universal nos seus preceitos, e sua autoridade estende-se a todos os homens” (cf. Veritatis Splendor, nº 51). Assim, iluminados por Aquele que é “o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6), esforcem-se os homens de boa vontade e os cristãos para que seus atos promovam a união entre as pessoas, o reino da justiça e da paz. Convém lembrar a Carta aos Hebreus: “Que ninguém seja tangido pelo vento da vã doutrina ou palavra mentirosa” (Hb 13,9). 

E por que não comem brioches?

Padre João Medeiros Filho

O historiador Luiz Eduardo Brandão Suassuna – mais conhecido nestas plagas potiguares pelo carinhoso epíteto de professor Kokinho – poderá discorrer, de forma abalizada, a respeito da rainha da França Maria Antonieta (1755-1793) e sobre a famosa frase que lhe é atribuída: “Qu’ils mangent de la brioche”. Esta foi citada por Rousseau em seu livro As confissões e teria sido proferida por sua majestade real, num período de fome inclemente ocorrido na França, durante o reinado de seu marido Luís XVI (1754-1793). Informada de que as pessoas estavam sofrendo devido à escassez generalizada de trigo e pão, a soberana respondera ironicamente: “então, que eles comam brioche”, o que causou indignação aos habitantes.

De forma metafórica, enquanto a nação brasileira está faminta e, ao mesmo tempo, reivindicando justiça, retidão e decência, alguns poderosos agem de modo análogo. É também verdade que muitos líderes e governantes parecem não ter conhecimento destas importantes palavras encontradas no Alcorão: “Deus é o maior de todos os juízes e destrói todas as conspirações”.

Estamos cansados de ouvir: “o poder corrompe, a história se repete” e constatar que vários se servem do povo e não a este. Tem-se consciência igualmente dos riscos e consequências de tal situação. Deixa-se com frequência, para um segundo plano, a percepção das armadilhas inerentes à sede inebriante do poder e dos devaneios oriundos da visão turvada do pedantismo e da bazófia. A nação brasileira carece de saúde, habitação, emprego, educação, segurança e dignidade, clamando pelo pão material e espiritual. Não obstante, tantos dirigentes, em todos os níveis dos poderes, destilam sua insensibilidade, agindo de modo insensato e sarcástico, como se mandasse o povo procurar brioches. Triste é o país em que os interesses e conveniências de grupos ou partidos valem mais que o bem da pátria. É deprimente verificar egos inflados, instigando contendas lesivas à nação.

Diante da miséria e desesperança de muitos, da manutenção de tantos privilégios e benesses para uns apaniguados, o povo reclama da postura escarnecedora daqueles que se locupletam e distribuem as migalhas caídas da mesa dos opulentos. Desdenham a verdadeira fome dos compatriotas, que ainda humildemente (até quando?) estendem a mão em busca do que lhes é devido, como se fosse um favor e não um direito. Muitos esqueceram as palavras do Mestre: “Se alguém lhe pedir pão, lhe dará um escorpião? Ou, se lhe pedir peixe, lhe dará, em lugar de peixe, uma serpente?” (Lc 11, 11). Faz pensar igualmente no profeta Isaías: “a bebida que lhes dão tem um sabor amargo” (Is 24, 9). 

Há uma pergunta que se costuma fazer às crianças do catecismo: qual o personagem da Bíblia que fracassou e teve o mais trágico dos destinos? A resposta é certeira: Lúcifer, o anjo decaído (cf. Ez 28, 17ss; Is 14, 12ss; Ap 12, 7ss).  E esta afirmativa conduz a outra inevitável questão: mas ele caiu por quê? A explicação, por mais simples que pareça, é contundente: pelo fato dele ser arrogante!  Autoridades impassíveis, que brincam com o destino dos seres humanos e da nação, acabarão por compreender um dia que a insolência e a ilusão da impunidade levam à destruição. Deve-se ter em mente a sentença lapidar creditada a Abraham Lincoln: “Pode-se enganar a muitos por algum tempo; a alguns por muito tempo, mas não é possível enganar a todos por todo o tempo”. A maioria dos brasileiros está consciente de que – embora vários se iludam ou se aproveitem do véu da ignorância dos outros – o logro e o escárnio de muitos não poderão ser perpetuados. Tais líderes e dirigentes não estão percebendo os danos que são causados atualmente ao Brasil. Observa-se que o egoísmo tem falado mais alto. E isto é altamente nocivo e perigoso. Eis um dos conselhos da Sagrada Escritura: “Não é prudente que os reis bebam vinho em demasia. E aqueles que têm a responsabilidade de governar, tampouco devem se entregar a outras formas de embriaguez [tais como: o delírio do dinheiro e do poder]” (Pr 31, 4).

O Papa Francisco renunciará?

Padre João Medeiros Filho

Francisco declarou, na XXXII Jornada Mundial da Juventude, realizada no Panamá, em janeiro passado: “Se não for eu, Pedro vos confirmará na fé na próxima Jornada”. Não foi somente ali que ele sinalizou com o fim do seu ministério petrino. Em vários momentos, elogiou a coragem de Bento XVI, ao dizer adeus à vida estressante de um Sumo Pontífice e às fortes pressões da Cúria Romana. Chegou a citar Celestino V (Pietro Angeleri, monge beneditino que também renunciou), quando desabafou: “a sede de poder sepulta a lucidez e a retidão”. Bergoglio – que completou seis anos de pontificado no dia 13 do corrente mês – defronta-se com os graves problemas, que já recaíam sobre os ombros de seu antecessor. Talvez por isso, o Papa sente urgência em preparar o terreno para o seu sucessor e tem deixado entrever isto em pronunciamentos, viagens e encontros importantes que ocorrem frequentemente no Vaticano. Seu cansaço visível tem sido alvo de comentários recorrentes entre os jornalistas acreditados junto à Santa Sé. A cada evento, perguntam até que ponto o Pontífice (que tem apenas um pulmão) vai suportar esse ritmo de trabalho e a onda de oposição. O fulgor e entusiasmo dos três primeiros anos de seu papado hoje dão lugar à serenidade de um ancião que está consciente de suas limitações. Porém, ele vislumbra ser imprescindível desbravar novos horizontes para o futuro do cristianismo, combalido por conta dos escândalos de vários eclesiásticos em diferentes países.

Francisco lança também sua esperança na diplomacia, indo a lugares onde, até então, somente a correspondência e a presença dos diplomatas conseguiam chegar. É o caso dos Emirados Árabes Unidos, país que visitou em fevereiro último, a convite do Sheikh Mohammed Bin Zayed Al Nahyan. Até essa viagem histórica, o diálogo entre o Vaticano e os Emirados limitava-se à troca de mensagens protocolares. O estabelecimento das relações diplomáticas entre a Santa Sé e essa confederação de monarquias árabes, só veio a acontecer, durante o pontificado de Bento XVI, em 2007. “Alegra-me encontrar-me com um povo que vive o presente com o olhar voltado para futuro”, disse o Papa Francisco em vídeo-mensagem por ocasião de sua viagem àquele país.

É do conhecimento de muitos que a diplomacia vaticana não interfere em questões econômicas ou militares. Em meio às relações multilaterais, a Santa Sé investe na força das ideias e da razão, atuando como mediadora e conciliadora, quando necessário se faz. Francisco e seu experiente Secretário de Estado, o Cardeal Pietro Parolin, o fazem com dedicação e maestria. Nesse contexto, aconteceu essa importante viagem na qual Bergoglio participou também de um encontro inter-religioso internacional sobre a fraternidade humana, em Abu Dhabi. O Papa foi a um país que tem o islamismo como religião de estado e no qual, segundo a lei nacional, converter-se a outro credo é ato de apostasia e, em vários casos, crime. Sendo assim, os cristãos – cerca de novecentos mil distribuídos entre os sete principados, que constituem uma circunscrição eclesiástica (Vicariato Apostólico da Arábia Meridional) com quinze paróquias – não estão autorizados a desenvolver qualquer tipo de evangelização, uma vez que a liberdade de culto se limita à vivência da fé no interior das residências, sendo proibido o proselitismo.

Alguns estudiosos dos assuntos do Vaticano questionam se Francisco, no momento atual, considera sua renúncia uma alternativa viável, tendo em vista a existência de outro papa emérito. Sendo assim, 2019 poderá não ser ainda o ano da despedida de Francisco. No entanto, a Igreja Católica entrará em um novo tempo com a reforma da Cúria Romana, prevista para o primeiro semestre. E dessa mudança nascerá sem dúvida uma nova configuração de estrutura eclesial. Renunciando ou não, ficará uma lição marcante do Papa Francisco: tornar visível uma Igreja mais próxima do Evangelho de Cristo, simples, aconchegante, terna e rica da misericórdia, reavivando em seus irmãos as palavras do Mestre: “Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar, mas para salvar” (Jo 3, 17).

O respeito em agonia

Padre João Medeiros Filho

Em artigo anterior (nesta coluna) abordamos, dentre outros aspectos, a falta de respeito, que dificulta o convívio. Para aqueles que o valorizam e consideram-no uma condição para a convivência saudável, torna-se fácil comprovar essa triste realidade: o respeito está em agonia. No contexto da atual sociedade, tal virtude, há muito, deixou de ser um valor na escala axiológica. E, por isso, verifica-se que cada vez menos as pessoas conseguem, em seu cotidiano, obedecer aos seus limites, ter em mente a dignidade do outro, perceber a fragilidade da vida, o equilíbrio da realidade social e da “Casa Comum”, consoante a expressão do Papa Francisco.

Segundo estudiosos, não se trata simplesmente de má vontade ou da ausência de caráter, mas de perda cultural e moral. De fato, estão desaparecendo a capacidade, as condições e as possibilidades de sentir e transmitir o respeito como valor estruturante do conviver. Isso acontece também porque se aceita a influência perversa da pressa. Passa-se a viver num corre-corre insano e desumanizador. Atropelam-se e ignoram-se valores, instituições e pessoas. Nisto reside também o desrespeito. Acolhe-se e registra-se tacitamente, como axioma inquestionável, uma espécie de imperativo categórico da mentalidade capitalista: “Time is money” (tempo é dinheiro). Com isso, de modo frenético, diariamente muitos se entregam, conscientemente ou não, aos vorazes e insaciáveis preceitos de “cronos”, o deus do tempo. Neste embalo também presta-se culto a “mamon”, a divindade do dinheiro, que promete libertar o ser humano das garras sufocantes de “cronos”. Não raro, pensa-se desta forma: quando se acumular bastante dinheiro, ter-se-á tempo para poder gozar plenamente a vida! Deste modo, sacrificam-se a existência e as relações com os outros.

Assim, sem a percepção das consequências, forja-se um jeito doentio de convivência. Não se tem mais tempo para assimilar as experiências vividas, as lições diárias que a vida gratuitamente oferece. Destrói-se o berço natural e indispensável para internalizar o respeito como virtude humana. Não é à toa que etimologicamente o termo provém do latim “respectus” – particípio passado de “respicere” – que significa olhar novamente. Ele nasce da consciência de que as pessoas, os fatos para serem compreendidos ou aceitos precisam de outros olhares e isto necessita de paciência. Exige a reverência de nossa atenção e cuidado. Sem isso não há consideração, tampouco um relacionamento saudável entre as pessoas. A educação, o amor, a amizade e outros valores ou sentimentos construtores da existência não funcionam sem um dedicado cultivo da paciência. Aí, de fato, entende-se que a pressa é inimiga da vida humana e, por conseguinte, desrespeitosa.

Não se tem mais tempo disponível para contemplar coisa alguma. Por isso, infelizmente, elimina-se a capacidade de transmitir a experiência fundante do respeito. Acompanhar a evolução da vida na pequena semente que brota, deleitar-se com o pássaro entoando seu canto matinal, emocionar-se com a pureza de uma criança, seu sorriso e o engatinhar de seus primeiros passos, tudo isso parece passar despercebido. A pressa não leva as pessoas a valorizar o andar inseguro e o olhar profundo de um idoso para a vida. Abandona-se a contemplação poética e orante de deixar-se iluminar pela magia do ocaso e da aurora, ou ainda, ser tomado pela beleza do céu estrelado e do contínuo balanço das ondas do mar… Não se tem mais tempo de avaliar a violência cultural, que está submetendo lentamente muitos à morte interior. A pressa – além de destruir o respeito – está aniquilando o hábito da contemplação, da poesia e da prece.

Vale a pena a leitura e a reflexão de dois textos: o poema-oração de Michel Quoist: “Não tenho tempo, Senhor”, em “Poemas para rezar”, ou ainda a canção do acadêmico pernambucano Oswaldo Lenine: “Paciência”. Ali enfatiza: “Enquanto o tempo acelera e pede pressa, eu me recuso… O mundo vai girando cada vez mais veloz… mas espera de nós paciência”. O apóstolo Pedro já aconselhava os cristãos de seu tempo: “Tratai todos com a devida reverência e respeito, amai os vossos irmãos e a Deus tendes temor” (1Pd 2, 17).