A solenidade de Corpus Christi

Padre João Medeiros Filho

Na próxima quinta-feira, celebra-se a festividade doCorpo de Cristo, o alimento espiritual que nos une e fortalece. “Eu sou o Pão vivo que desceu do céu” (Jo 6, 51), dissera o Mestre. A solenidade foi instituída pelo Papa Urbano IV no dia 8 de Setembro de 1264, com o objetivo de proclamar a grandeza do mistério da Eucaristia. Esta é o sustento de nossa fé e caminhada. Esse sacramento é ummodo de Jesus permanecer junto de seus irmãos. Não vos deixarei órfãos” (Jo 14, 18). A presença de amigos é fundamental em nossa existência. Ninguém gosta de caminhar sozinho. É monótono e triste. Na trajetória, o diálogo é de suma importância. Por isso, Cristo legou-nos esse memorial, sinal de sua companhia. Fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19). Não queria que padecêssemos de solidão. Por isso, fez-se Pão e permanência. Na Eucaristia comungamos o Corpo e o Sangue do Senhor, de forma mística sua humanidade e divindade. A vida que Deus idealizou para cada um de nósé fortalecida com o Pão Celeste, preparado pelo Pai para os seus filhos. A Eucaristia é antecipação da Eternidade, celebração do imenso banquete e encontro da família de Deus. Este deseja que possamos antegozar o definitivo de nossa história, ou seja, o abraço incessante do Criador com as criaturas. No mistério eucarístico temos Deus em Jesus atenuando as saudades de nossas origens e nossa pátriadefinitiva.

Mas, segundo a doutrina católica, na comunhão não tomamos apenas o Corpo e o Sangue de Cristo. Entramostambém em união com toda a sua doutrina, seu pensar e mandamentos. Não existe um Cristo dividido ou separado. Comunga realmente quem está disposto a alimentar-se do Evangelho do Senhor, a aceitar plenamente sua divindade, a necessidade de compreensão, verdade, perdão, amor, justiça e liberdade. O Brasil, que se diz cristão, está bemdistanteespecialmente nos dias atuais – dessa realidade.  Recebendo Cristo, não podemos aceitar aquilo que Ele condenou: a discriminação, a fome, a miséria, o abandono dos inocentes, idosos e doentes, a indiferença, a mentira, o egoísmo, o radicalismo e ódio. Junto com o sacrifício da cruz, a comunhão é o gesto supremo de amor de nosso Salvador. Assim sendo, ela convida-nos a partilhar nossa vida e nosso amor. Eis um dos simbolismos do partir o Pão(“fractio panis”) na missa, em que o Filho de Deus dá provas de sua doação para conosco.

A Eucaristia é o sacramento da unidade. Cristo reuniu em seu corpo, gerado no seio de Maria, a humanidade inteira. Desta forma, comungar é também se unir a todos aqueles que aceitam e vivem o pensamento e a doutrina do Senhor. A Eucaristia é o Pão da unidade, daverdadeira igualdade e fraternidade. Cristo revela-se comoirmão de todos: santos e pecadores, pequenos e grandes, fortes e fracos. No sacramento eucarístico Cristo -nos a certeza de que “Deus não faz distinção de pessoas”. (Rm 2, 21). Ali manifesta o plano de seu Pai, alimentando e unindo a todos com o seu amor, na caminhada da esperança e da fé. A Eucaristia é a presença permanente da solidariedade de um Deus, da ternura de um Pai, que nos envia um Irmão, pois Este dialoga com maior proximidadecom os outros filhos. O mistério eucarístico é Deus nos dizendo: eu amo todos, quero alimentá-los, “pois quem comer deste Pão, jamais terá fome” (Jo 6, 35). NaEucaristia Deus espera por nós. É o abraço divino a nósreservado e antecipado, o beijo carinhoso de um Pai discreto e bondoso, que vem silenciosamente para dizer que nos ama e perdoa. A Eucaristia é o sacramento da realidade celestial. Num paradoxo é a perenidade no tempo da encarnação do Filho de Deus, que quis estar unido à humanidade, mostrando que ela tem valor eterno. Não importam nossos pecados e limitações, pois Deus nos perfilhou por ato de misericórdia e clemência, fruto de sua incomensurável gratuidade. A Eucaristia é a resposta para o Brasil de hoje, desnorteado e dividido, abandonando – quem sabe – suas origens e vocação!

A cordialidade brasileira

 

Padre João Medeiros Filho

Por onde anda a cordialidade brasileira? Indaga-se quem a retirou do cenário de nossa pátria. O país está dividido, predominando os diálogos ríspidos e a falta de bom senso. A intuição de muitos permanece em constante estado de alerta. A maioria das pessoas não ouve mais o outro até o final de uma frase. Tampouco se lê com atenção livros, artigos ou mensagens nas redes sociais, até o fim. De imediato, já se começa a brigar. Se houvesse uma análise de interpretação de textos, vários demonstrariam o quanto são superficiais e equivocados em suas observações e comentários. Aquela expressão popular “andar com quatro pedras na mão” está cada vez mais presente. Parece que muita gente carrega os bolsos cheios delas para jogar em Maria, João, José ou você. A população vive pronta para atacar, ao menos verbalmente, marcada por intransigência, radicalismo e ódio. Há um constante mote de uns contra os outros, por motivos, não raro, fúteis, com demonstrações cabais de ignorância e intolerância. Isto vem transformando rapidamente nosso “país abençoado por Deus”, rico e exuberante em sua natureza, em território minado, fértil de contradições e relativismos. A discórdia está se tornando regra, a harmonia esparsa. O equilíbrio e o assentimento foram retirados de seu “habitat” para se instalar a provocação e a desavença.

Percebe-se, de plano, que muitas pessoas estão com a sensibilidade à flor da pele, mesmo que se esforcem para manter a calma. E isto tem motivações diversas: sociais, econômicas, religiosas, especialmente, políticas e ideológicas. Há quem se irrite com o vendedor ambulante (outrora folclórico), anunciando o seu produto pelo megafone. Ouve-se uma música e isso já é motivo de polêmica, pois o autor é de direita ou de esquerda. O telefone toca e o som incomoda. Ultimamente ninguém liga mais, apenas “whatsappa” (que os mestres da língua pátria nos perdoem o barbarismo).

Há forte sensação de que o inconsciente coletivo está perturbado e perturbador. Muitos estão doentes, atingidos por um bombardeio psicológico. Reina a dialética do bem e do mal, sem mais opções. Ou alguém está comigo ou contra mim, sem variações, e assim ninguém poderá entrar em acordo. Não se pode mais brincar, afirmando-se que a causa desse mal-estar deve ser a água que se bebe. Assemelha-se ao ataque de um vírus, contaminando amigos, familiares, crianças, jovens, autoridades e até religiosos. Vem se perdendo a noção do convívio, da temperança e sobretudo do respeito. Há quem diga que hoje a paz reside apenas em claustros, onde não se cultiva o hábito de ver televisão e as redes sociais.

É impossível ficar indiferente e silente diante da agonia do valor da vida. Onde está o país cordial, que vem sendo soterrado progressivamente? Não há como negar que nos últimos anos, a política nacional, os transtornos, a corrupção, os embates entre os poderes, o menosprezo dos valores e a inversão ética seguiram criando um novo estilo de grupos, rede de amigos que nunca se conheceram. Antes anônimos, tornam-se celebridades influentes na mídia.  O inimigo ficou invisível e se disseminou por todos os lados. Os levianos unem-se e constituem uma ameaça, carregando a hipocrisia, a ignorância, em nome de fatos irrelevantes. Estes alimentam a razão de ser de muitos cidadãos irrefletidos e acovardados diante da vida medíocre, anárquica e antiética que se pretende instalar.

O Brasil de hoje está muito pouco razoável. Encontra-se indefinido, inseguro e travado. O que vai acontecer com ondas sucessivas de desrespeito e afronta?  Caminha-se, sem se aperceber, em meio aos tropeços e irreflexões, para o caos, caso não apareçam líderes. Onde estão os homens de boa vontade de que fala o Evangelho de Jesus Cristo? E as igrejas, os pastores e os dirigentes espirituais? Pairam no ar o desejo, a verdadeira nostalgia e um grito de socorro: os brasileiros cordiais necessitam urgentemente retomar seus postos! Assim ensinou o apóstolo Pedro: “Sede todos cordiais e humildes” (1Pd 3, 8). E enfatizou Paulo: “Antes sede uns para com os outros benignos, cordiais e compassivos” (Ef 4, 32).

“Pé rapado. Sem eira nem beira”

Padre João Medeiros Filho

Pé rapado, sinônimo de pessoa humilde, era uma expressão bastante empregada no passado. Apesar de não se saber quando ela surgiu, verifica-se que, em meados do século XVII, foi citada por Gregório de Mattos Guerra, “o Boca do Inferno”. Este teria dedicado alguns versos a uma mulher soteropolitana que lhe pediu um cruzado para mandar consertar os calçados: “Anica…, lembra-te o tempo que andaste de pé rapado. O mestre Câmara Cascudo, em Locuções Tradicionais do Brasil, afirma que os termos significam “descalço, pé no chão”, uma metonímia para designar a população de origem modesta. Durante a Guerra dos Mascates (1710-1711), a expressão foi utilizada com referência depreciativa às tropas da aristocracia rural. Estas, descalças, combatiam o exército português, cujos membros da cavalaria ostentavam botas e uniforme de combate.

Mas, qual é sua origem? Desde os tempos remotos, na Europa ocidental, havia nas igrejas – que ainda não utilizavam carpetes – um aparelho para os fiéis limpar os pés, rapando o excesso de sujeira, antes de adentrar no templo. Posteriormente, o costume foi adotado do Brasil. Nos países europeus, quando não havia automóveis e as ruas não eram pavimentadas, o chão ficava molhado pela neve derretida. Em alguns casos, havia lama. Os fiéis que possuíam charrete, liteira e cavalos, serviam-se deles para se deslocarem às igrejas, permanecendo com os pés limpos até o pórtico do templo. Aqueles que não dispunham de meio de transporte, ficavam com os sapatos sujos. Antes de entrar nas igrejas, para não enlamear o recinto, limpavam no “rapador” a sola dos calçados. Daí, passaram a ser chamados de pés rapados. Em virtude de sua parca condição financeira, não possuíam carruagens e cavalos. A expressão passou a ser sinônimo de gente de poucos recursos. No Brasil colonial (e até hoje, em certas localidades), as ruas não tinham calçamento. Várias pessoas também andavam sem sapatos, necessitando “rapar os pés”, à porta das igrejas e de outros lugares públicos. Isso acentuava ainda mais os termos, consagrando a conotação de pobreza econômica.

Com um sentido análogo, tem-se a expressão “sem eira nem beira”, de largo emprego em Portugal e no Brasil, até a atualidade, para denominar cidadãos de classe econômica inferior. Alguns relatos dão conta de que os barões e os demais aristocratas olhavam com desdém os mais humildes. À época, quando uma moça se apaixonava por um rapaz pobre, os pais repreendiam-na com tal afirmação: “Fulano não tem eira nem beira”. Segundo alguns pesquisadores, a gênese dessas palavras está na arquitetura do Brasil colonial. No nordeste brasileiro, a expressão reveste-se do mesmo significado, aproximando-se dessa descrição arquitetônica. Consoante tal versão, antigamente as casas dos abastados tinham um telhado formado de: eira (o forro), beira (a platibanda) e tribeira (a cobertura com telhas), a parte mais elevada do telhado. As famílias de menos recursos não tinham condições de arcar com esse tipo de construção, erigindo apenas a tribeira, ficando sem eira nem beira. Para outros autores – que apontam origem diferente, no entanto com idêntica acepção – eira era uma área de terra batida, onde os grãos (trigo, arroz etc.) ficavam ao ar livre para secar. Entendia-se por beira o seu contorno. Na ausência deste, o vento levava os grãos e o proprietário perdia grande parte da colheita.

Tais expressões, embora se originem de nossa cultura e enriqueçam o vocabulário, encontraram reações e alguns opositores. Cabe lembrar a figura de Dom Silvério Gomes Pimenta, arcebispo de Mariana e primeiro eclesiástico a integrar a Academia Brasileira de Letras. Há relatos de que o prelado proibiu o uso das expressões nas paróquias de sua diocese por entendê-las contra o espírito do Evangelho. Em documento pastoral escreveu “O vosso bispo também não tem eira nem beira. Consolai-vos, pois o nosso Mestre e Salvador, de igual modo, foi considerado simplesmente como o filho do carpinteiro” (cf. Mt 13, 55). Lembrava ainda as palavras do apóstolo Tiago, em sua carta: “Meus irmãos, não façam diferença entre as pessoas [todos são irmãos e filhos de Deus]” (Tg 2, 1).

Por que não se entendem?

Padre João Medeiros Filho

Esta pergunta é ouvida frequentemente diante das dificuldades crescentes sentidas pelas pessoas no convívio social. Viver em sociedade sempre foi problemático e difícil. Porém, ultimamente, é um desafio. Tem-se a impressão de que o relacionamento pacífico tornou-se quase inviável. São significativos os dados que indicam o mal-estar causado pela incapacidade de conviver. Verificam-se desentendimentos, agressões, vinganças e até mortes. A violência é prova desse quadro que se vive atualmente. Mas, para aqueles que creem, Cristo assegurou a sua companhia: “Não vos deixarei sozinhos” (Jo 14, 15).

Segundo pesquisadores, os tempos modernos, envolvidos por tecnologias de aproximação – que tantos avanços trouxeram à humanidade – iniciam-se sob a égide da supervalorização do indivíduo. Primeiramente, houve a tomada de consciência da máxima cartesiana: “Cogito, ergo sum” (“Penso, logo existo”)! Em outros termos, o homem deve pensar e colocar-se no centro do universo! Passa a vigorar o antropocentrismo. Inegavelmente, ele trouxe benefícios. No entanto, quando o homem se coloca no centro de tudo, numa postura absolutista, como se fosse Deus, sentirá logo o delírio do poder e da autossuficiência. Tal atitude foi o primeiro pecado do homem, chamado original. Conforme a narração metafórica e mitológica do Gênesis, Adão e Eva aspiravam ser senhores de tudo. Instala-se o individualismo, aguçado pela cultura do consumo e pela globalização. Ele se volta fundamentalmente para o ter e não para o ser. Desta forma, o relacionar-se não se reveste de seu devido valor. O que conta é o possuir. Declara-se a guerra do acumular e do poder contra a ética e a decência.

A dificuldade para se viver em harmonia com o próximo é também uma consequência desse estado de coisas. O outro é sempre uma ameaça. É competidor e não parceiro, inimigo a ser vencido. Já dizia Jean-Paul Sartre, corifeu e defensor do existencialismo: “o inferno são os outros”. Cresce, nos dias de hoje, a ideia de que ser feliz é amar a si mesmo o suficiente para não precisar de ninguém (o mito da autossuficiência). Abandona-se aquilo que declarou Thomas Merton: “Homem algum é uma ilha”. A sociedade atual favorece a proliferação de narcisistas que, nas palavras de Theodore Rubin, “são pessoas que se tornam o próprio mundo e acabam crendo que são o mundo inteiro”. Assim, o conceito de liberdade – palavra-chave para se compreender a mentalidade hodierna – virou sinônimo da falta de limites.

Não é de se estranhar que os desencontros se agudizem, desde a dificuldade de relacionamento familiar (esposos, pais e filhos) e até entre os países. Um exemplo significativo é a falta de entrosamento entre povos ricos e pobres, começando pela questão ecológica. Problema esse tão grave, que foi objeto da encíclica do Papa Francisco: “Laudato si”. Por que não se entendem? Faltam abertura e diálogo. Isso dificulta o convívio entre pessoas, grupos e nações. Dialogar é característico do ser humano, dotado do poder de comunicação. O verdadeiro diálogo sabe escutar, respeitar e acolher. Não se pode esquecer que Cristo é o diálogo permanente de Deus, manifestado em ternura e bondade. Muitos conflitos foram resolvidos com o convite: vamos pensar juntos? O ser humano não é só indivíduo. “Constitui um elo indispensável da cadeia social”, como afirma o filósofo, ícone do personalismo, Emmanuel Mounier.

O exemplo perfeito de diálogo é dado ao mundo pelo próprio Deus. Na Bíblia, encontram-se os relatos da busca que Ele faz do homem que, por sua vez, também o procura. Trata-se de um maravilhoso encontro entre o céu e a terra: em Jesus Cristo. Nele, Deus encarna o ser humano, não para destruí-lo, mas para aperfeiçoá-lo e salvá-lo num sublime gesto de amor. Da comunhão com Deus, nasce a paz. Sem Ele, o homem pode se considerar único, senhor do mundo e da vida. Consequentemente, torna-se soberano e daí surge a violência como opção. Ela tem por base a ausência de Deus. Este é o referencial para o ser humano, criado à sua imagem e semelhança. O mundo não aprendeu ainda o apelo do salmista: “Como é bom e alegre os irmãos viverem unidos” (Sl 133/132, 1).

Saudades de Aznavour

Padre João Medeiros Filho

No dia 22 de maio, faria 95 anos um dos grandes nomes da canção francesa. Estamos sempre apaixonados pelas pessoas que têm talento”, dissera numa de suas apresentações em Portugal, referindo-se à amiga Amália Rodrigues. Shahnour Vaghinagh Aznavourian era filho deimigrantes armênios, que o introduziram, desde a tenra idade, no mundo do teatro e da música. Segundo seus biógrafos, começou a atuar, aos nove anos e logo cedo adotou o nome artístico de Charles Aznavour. Revelou-se, quando Edith Piaf  o ouviu cantar, considerando-o um romântico, quase lírico. É frequentemente descrito como o Frank Sinatra da França, exaltando principalmente o amor. Compôs inúmeras canções, gravou cerca de cem álbuns,vendeu milhões de discos e participou de sessenta filmes.Interpretava em francês, inglês, italiano, alemão, russo, armênio, espanhol e até português. Isso contribuiu para que se apresentasse no Carnegie Hall e em outras renomadas casas de espetáculos de diversos países.

Veio pela primeira vez ao Brasil a convite do então exarca armênio (bispo de uma diocese de rito oriental) deSão Paulo, onde fez uma apresentação beneficente para as obras sociais daquele bispado, responsável pelos fiéis armênios residentes na América Latina. Ouvi-o certa feitana casa de um colega de estudos da Universidade de Louvain (Bélgica). Depois passei a escutar suas músicas para melhorar meu francês, com forte sotaque nordestino, motivo de risos dos amigos francófonos. Além de sua interpretação tocante, impressionava-me também a letra de suas canções. Quem esquecerá palavras como aquelas que compõem a clássica Hier Encore” (Ainda ontem): “Ignorando o passado, conjugando no futuro, julgavaque queria o melhor, ao criticar o mundo. Além de rugas no rosto e o medo do tédio… [estou sozinho, pois meus]amigos partiram e não voltarão jamais. [Assim] congeleimeus sorrisos e choros. Onde estão agora meus vinte anos? A mensagem de sua poesia encantava a minha alma de jovem, distante da pátria. Como não ficar marcado com suas palavras: “Alimentei tantas esperanças,que bateram asas, deixando-me perdido sem saber aonde ir. Os olhos procuram o Céu, mas o coração está preso na terra”. Frases que emocionam ainda hoje este velho lente de latim, fazendo lembrar uma das odes de Horário:Somos criaturas com os pés fincados na terra, mas os olhos voltados para o Infinito”.

De volta ao Brasil, em 1972, após minha segunda permanência na Bélgica, não perdi o contato com suasbelas canções, graças ao professor Américo de Oliveira Costa, colega de magistério na Faculdade de Jornalismo Eloy de Souza. Sabendo de meu interesse e conhecimento da língua de Bernanos e Mauriac (não profundo como o dele, mestre da Aliança Francesa), convidava-me para lanchar em sua residência, ao som das canções francesas de: Brel, Aznavour, Juliette Gréco, Brassens, Piaf, Moustaki, Bécaud, Barrière, Barbara Brodi, Mireille Mathieu e outros, que habitavam sua rica discoteca.Apesar de circunspecto, doutor Américo ria de mim, ao cantarolar as músicas com o forte acento (jamais perdido) do interior potiguar. Continuo um sertanejo e, por mais que tenha convivido com outras culturas, não abdiquei das minhas origens simples e interioranas. Confesso que a beleza literária sempre me cativou e amei a Sagrada Escritura primeiramente pela dimensão poética dos Salmos.

A humildade de Charles Aznavour também me servede exemplo. Certa feita, disse a um repórter: “Sou um homem simples, não uma estrela. Gosto de encontrar pessoas que aprendam coisas novas com as outras”. E concluiu citando o salmista: “Não ando à procura de grandezas, nem tenho pretensões ambiciosas(Sl 131/2, 1). Uma de suas faces marcantes era seu espírito humanitário e o amor ao próximo. Procurou seguir o que dissera Jesus Cristo: “Recebestes de graça, dai de graça” (Mt 10, 8). Desde o sismo de Spitak, em 1988, ajudava a pátria de seus ancestrais, através da FundaçãoAznavour. Comenta-se que doara milhares de dólares para assistência e desenvolvimento da Armênia. Não falava sobre o assunto e a quem lhe perguntava, respondia com a frase do Evangelho: “Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a direita” (Mt 6, 3).

Os opositores do Papa Francisco

Padre João Medeiros Filho

Verifica-se, em todas as instâncias da sociedade, uma tentação de querer denegrir, desqualificar ou destruir a quem se faz oposição. Neste contexto, entende-se mais uma carta aberta escrita contra o papa Francisco, publicada há poucos dias, assinada por dezenove sacerdotes esoi-disant teólogos. Desde que foi eleito, não faltam ataques veementes da parte de alguns católicos e eclesiásticos contra o Santo Padre. Na sua mansidão e sabedoria, optou por não responder a seus oponentes.Segundo alguns jornalistas, ele teria dito que não se deve desperdiçar água em terras cobertas por plásticos ouimpermeáveis. Dar ouvidos a pessoas que não fazem o mínimo esforço para compreender as nuances e o contexto dos pronunciamentos – ou já tenham opiniões preconceituosas formadas, acreditando-se detentoras de toda a verdade – é o mesmo que “dar beliscão em chifre de boi”, como afirmava Dom José de Medeiros Delgado, primeiro bispo de Caicó, ao ser injustiçado em um arcebispado nordestino.

No entanto, há algo de positivo na postura de tais críticos: tiraram o véu da hipocrisia. Ao menos não escondem a aversão ao atual Papa. É grande o desespero daqueles que foram apeados do poder, pois se acreditavam seus donos e proprietários de Deus. No Brasil, também quem se proclame defensor da modéstia e propagador dos documentos da Igreja (nem todos, pois o critério de escolha é totalmente ideológico) que, por causa da notoriedade nas redes sociais, não esconde seudescontentamento. Esquece que, consoante pesquisasrecentes, Francisco é o Papa mais respeitado e querido pelos não católicos, nos últimos cem anos.

Há alguns dias, a mídia divulgou a notícia de um religioso brasileiro bastante conhecido. Afirmavarespeitar filialmente o atual pontífice, mas nos bastidores teria desejado que Francisco renunciasse. Logo quem deveria em princípio incentivar os seus seguidores a amar o Pastor! Certamente não é o único. Frequentementecertos “youtubers católicos” proferem críticas levianas ao Pontífice e sequer citam em suas “catequeses virtuais” asencíclicas de Francisco. É hora de perguntar por que eleincomoda tanto? Sua visão de Igreja sem pompa, masservidora, na qual padres, bispos e cardeais não sejampríncipes, talvez venha a irritar muitos. Seu discurso contra as mordomias, em prol do serviço, suas intervenções contra as aparências em favor das transparências desestabilizam vários. Suas pregações contra os prazeres, pela pobreza e pureza inquietam tantos!

Existe ainda uma espécie de idolatria clerical e um endeusamento de certas figuras. Isto demonstra uminfantilismo religioso no qual está imersa parte de umcatolicismo neo-ultramontanista. Levadas por uma estranha nostalgia em relação ao catolicismo das cortesdos séculos passados, tais pessoas tratam com muitanaturalidade a ostentação de certos eclesiásticos. No entanto, deveriam aplaudir a cultura da simplicidade e do despojamento do Evangelho defendida pelo Papa Francisco. É isto o que ele vem demonstrando em suas mensagens, por gestos e pela reforma que deseja (apesar de tanta oposição) promover dentro da Igreja. 

Se conhecessem melhor os apelos de Jesus Cristo, talvez muitos mudassem de opinião. julgamentosinfundados contra Bergoglio, afirmações inverídicas,oriundas dos dezenove signatários da última carta aberta. Ali, já na introdução, acusam Francisco de incorrer emheresia, não proferindo uma condenação formal e explícita do aborto. Essa é uma alegação própria de quem não leu na íntegra os pronunciamentos do pontífice argentino, ao longo dos seus seis anos de pontificado. E são justamente esses adversários, desprovidos de honestidade intelectual,exaltados por alguns católicos. Dizem-se pessoas de reta intenção, agindo deste modo por amor à Igreja. O dia emque alguns desses “fiéis, com seus milhares de seguidores nas redes sociais, promoverem um estudo sério sobre a Laudato si e a Amoris Laetitia – as encíclicas mais rejeitadas pelos ultraconservadores – talvez muitos acreditem nesse amor filial ao papa que dizem nutrir tanto.É preciso sair à procura da verdade. Ela vos libertará” (Jo 8, 32), proclamou o Mestre. É de bom alvitre lembrarsempre as palavras do profeta Jeremias: Buscar-me-eis e me achareis quando me procurardes na seriedade e sinceridade de vossos corações (Jer 29, 13).

O Domingo das Mães

Padre João Medeiros Filho

Durante todo o mês de maio, homenageamos Maria Santíssima. No primeiro domingo, celebramos Nossa Senhora com a invocação de Mãe dos Homens, o mais antigo orago cristão da Virgem de Nazaré. E no segundo, festejamos nossas mães terrenas. Na primavera europeia, no mês em que as flores desabrocham, quis a Igreja comemorar a beleza da existência na pessoa de Maria e de nossas genitoras, “rosas de Deus”, na expressão de Santo Ambrósio. A Patrística greco-latina é rica em textos e comentários a respeito daquelas que nos dão a vida. Irineu, primeiro bispo de Lyon, as compara à “face terrena do Divino”. Ou, de acordo com Clemente de Alexandria, “mimo celeste na terra dos homens”. E João Crisóstomo as denomina “luz de nossos dias, sol de nossas vidas, estrelas de nossas noites e travessias”.

Mais do que justo e merecido é esse preito de gratidão, homenagem que se presta a todas as mães da terra. É importante celebrar o seu amor incondicional e doçura, carinho e compreensão, desvelo e dedicação. E nada melhor para simbolizar tais sentimentos do que a figura daquelas que nos geraram. Participantes do mistério do Criador e da clemência entre os homens, elas encarnam a benevolência divina e a benignidade sobrenatural, orientando nosso destino de criaturas, filhos do Eterno e do Infinito.

Relevem-nos por não conseguir descrever exatamente o quanto elas são especiais. Dotadas de sensores supersensíveis, não raro, chegam a captar o que não foi dito. Têm um olhar mais penetrante do que as sondas ultrassonográficas de última geração. Mapeiam o coração de seus filhos e rastreiam marcas de dor e sofrimento, “apenas ouvindo o seu timbre de voz. Seu toque mede a temperatura de nossa alma”, segundo palavras de nosso amigo padre Gleiber Dantas. Por isso, ultrapassam qualquer ciência, pois são divinas. O próprio Cristo, tendo dispensado os bens terrenos, não se privou do colo materno e do sorriso meigo daquela que Ele nos legou também para conceder a sua bênção. Eis aí o Teu Filho. Eis aí a Tua Mãe (Jo 19, 27), dissera Jesus, no patíbulo da cruz, antes de dar a sua vida pela nossa salvação. Deus sabia que um coração materno pode expressar, de forma perfeita, sua ternura. Assim, o saudoso Papa João Paulo I, iluminado pelo Espírito Santo, afirmara diante da multidão na Praça de São Pedro: “Deus é Mãe”. E há séculos, o bispo e teólogo Cipriano de Cartago, inspirado no profeta Isaías (Is 49, 15), já se referia a Maria Santíssima como rosto temporal de Deus”.

 É esse lado sobrenatural de nossas mães que se pretende proclamar no segundo domingo de maio. É a tradução da meiguice de Deus num ser humano, que nesse dia é celebrado, homenageando quem nos gerou. A grandeza do Criador tornou-se então acessível a todas as criaturas. Sua infinita munificência, capacidade de amar e perdoar se encarnaram numa representação terrena. O Pai celeste quis nos legar um sacramento universal de seu amor e de seu afeto. Por isso, concretizou o seu plano no coração materno.

A celebração do segundo domingo de maio – apenas para destacar um entre todos os dias do ano – é o memorial da sublimidade da vida. Lembrança da suprema beleza eterna, que Deus-Mãe reserva para os seus filhos. Não poderia deixar de existir no calendário uma data, que fosse a consciência explícita de nosso reconhecimento por um ser, que participa do mistério da bondade suprema. As mitologias greco-romanas e orientais apresentam deusas-mães. O cristianismo dá-nos uma Mãe celestial e a terrena a fim de nos acompanhar em todos os momentos e dimensões de nossa caminhada. Mãe é Amor. E Deus o é totalmente, define o evangelista João em uma de suas Cartas (1Jo 4, 8). Rezemos para que Maria venha cobrir com o seu manto sagrado todas aquelas que nos transmitiram o dom da vida e as abençoe. Ela é como uma centelha no coração daquelas que recebem a dádiva eterna, a ternura incomensurável de nosso Deus presente na face da terra!