Direito, séries e seriados: a emoção

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Como descobri por meio de Julio Cabrera e de sua obra “O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes” (Editora Rocco, 2006), há aspectos bastante sutis que militam em prol das séries e dos seriados de TV como meios adequados para o tratamento do direito. Uma assertiva constante do citado livro é a de que, para se apropriar de um problema filosófico – e, no nosso caso, de um problema jurídico –, “não é suficiente entendê-lo: também é preciso vivê-lo, senti-lo na pele, dramatizá-lo, sofrê-lo, padecê-lo, sentir-se ameaçado por ele, sentir que nossas bases habituais de sustentação são afetadas radicalmente”.

De fato, há frequentemente um componente “experiencial”, relacionado às nossas histórias de vida, que nos torna mais ou menos sensíveis e engajados a uma questão jurídica. Em não sendo possível viver todas as experiências, o cinema/TV, com a sua dramaticidade, que nos faz “viver” a questão contada, pode nos ajudar no desenvolvimento dessa sensibilidade, nos fazendo apaixonar por uma tese ou por toda uma temática jurídica. Nas séries e seriados jurídicos somos mais do que espectadores da história/estória. Quase participamos da trama. Sentimos medo, raiva e alegria. E há os dilemas éticos e morais. O que faríamos no lugar da personagem X?  

É verdade que a temática jurídica ajuda bastante. Como tenho seguidamente dito, as questões judiciais geralmente envolvem dinheiro, violência, sexo, pessoas ilustres, o que, sabemos, é algo que sempre atiça a nossa curiosidade e nos faz, muitas vezes, tomar o partido de X ou Y. O crime em si, do mais banal ao mais grave, normalmente chama a nossa atenção. A perversidade do crime praticado é suficiente para, sem o acréscimo de qualquer recurso dramático, emprestar emoção a uma série ou seriado. A personalidade do criminoso, assim como a sua conduta antes e depois do crime, é também motivo de interesse. Temos ainda a própria teatralidade dos operadores do direito – policiais, juízes, jurados, promotores e advogados: a atmosfera de uma corte de justiça em pleno funcionamento é tensa e ao mesmo tempo encantadora. De fato, a mise en scène do processo penal, em alguns casos, assemelha-se a uma tragédia grega. Já a busca pela justiça, que é uma busca pela verdade, sempre envolve angustia. E até a execução da pena, na trágica realidade carcerária existente mundo afora, é marcadamente perversa para invariavelmente nos tocar fundo. Ademais, atualmente há uma certa tendência de os seriados jurídicos contarem suas estórias com um toque de humanismo. Um grande sofrimento ou injustiça prévia pode até explicar/justificar o comportamento do seu anti-herói. E, claro, abordam, mesmo que lateralmente, questões atualíssimas, como igualdade e justiça social, gênero, classe, raça e por aí vai.

Mas, para além disso, a verdade é que o cinema e a TV possuem linguagens mais adequadas que a linguagem da escrita, sobretudo a nossa enfadonha escrita técnico-jurídica, para expressar as nuances, intuições e elementos afetivos que permeiam – e assim deve ser – o direito. Como explica Julio Cabrera, diferentemente da letra fria da lei e dos manuais de direito, os conceitos-imagem do cinema (e da TV), por meio da “experiência instauradora e plena, procuram produzir em alguém (um alguém sempre muito indefinido) um impacto emocional que, ao mesmo tempo, diga algo a respeito do mundo, do ser humano, da natureza etc.”. A produção cinematográfica/televisiva tem um potencial cognitivo e persuasivo não só pela informação objetiva que transmite, mas também – e muito – pelo seu componente emocional. É o que Cabrera chama de abordagem “logopática”, lógica e pática ao mesmo tempo.

Boa parte disso – falo da dramaticidade que nos envolve e da emoção que nos toca no cinema e também perante a tela pequena – está relacionada aos recursos técnicos pertinentes a tais artes visuais, como a pluriperspectiva, a capacidade de manipular tempos e espaços, o corte cinematográfico, os chamados efeitos especiais etc., que superpontencializam, para o espectador, os dados sensoriais da vida real.

E sobre esses recursos técnicos, devidamente ilustrados com a querida série “Cold Case” (2003-2009), falaremos na semana que vem.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Sergio Moro chega, enfim, ao Supremo: como investigado

Sen. Sérgio Moro no plenário do Senado Federal falando sibre as ameças do crime organizado (PCC) que planejou ameaças a familia do senador e a sua família. | Sérgio Lima/Poder360 22.mar.2023
Kakay 26.jan.2024 (sexta-feira)
“Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?” –Fernando Pessoa, na pessoa de Álvaro de Campos, no “Poema em linha reta” Temos que reconhecer que foi uma longa caminhada para o senador Sergio Moro chegar ao Supremo Tribunal. Desde o início da operação Lava Jato, em 2014, para quem acompanhou de perto a postura de instrumentalização do Poder Judiciário pelo então juiz, que coordenava seus procuradores adestrados, começou a ficar evidente que o objetivo do grupo era político.
A sede de poder foi aumentando de acordo com o forte apoio midiático. A turma era bem fraquinha em conhecimento específico de direito, mas tinha uma excelente estrutura de marketing. Como são indigentes intelectuais e desprovidos de qualquer senso crítico, acreditavam que realmente eram super-heróis. Passaram a viver os personagens que foram sendo construídos pela grande mídia. E, cada vez mais, expunham-se ao ridículo, em atitudes messiânicas e pretensiosas.
Entretanto, em um Brasil ávido por líderes, ainda que com pés de barro, eles ocuparam o imaginário popular. Dezenas de horas nos telejornais, rádios, capas de revistas, prêmios no exterior, primeiras páginas dos veículos de informação, enfim, toda a estrutura montada para assumirem o poder. Como o projeto era verdadeiramente de assumirem o poder, a qualquer custo, não hesitaram em destruir parte das grandes empresas nacionais, em uma ousada estratégia entreguista. Foram responsáveis por milhões de desempregados e pela quebra de companhias que dominavam setores estratégicos da economia brasileira.

Progressivamente, vem à tona o jogo afinado com interesses norte-americanos, de empresas e do governo. Com um mote falso, como quase tudo na extrema-direita, ficaram conhecidos como os combatentes da corrupção. Implacáveis. Usavam uma tese infantil, maniqueísta, mas que, com o apoio decisivo de grande parte da mídia, emplacou: quem tivesse coragem de denunciar os excessos da República de Curitiba era taxado como alguém que defende a corrupção. Primário. Porém, eficiente. Criaram um Código de Processo Penal próprio, não se envergonhavam de prender pessoas indefinidamente para conseguir as delações.

Distribuíam para a 13ª Vara Federal de Curitiba todos os processos que interessavam ao bando. Não existia para eles o princípio constitucional do juiz natural. Aliás, não respeitavam nenhuma regra de competência, a não ser as que servissem aos seus interesses políticos, financeiros e estratégicos. Como se despregaram da realidade, resolveram cometer os maiores abusos sem relevantes cuidados. Não leram Clarice Lispector:

“Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso – nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.”
Combinaram de prender o então candidato Lula, em 1º lugar nas pesquisas, para favorecer o fascista Bolsonaro. Tornaram-se os principais eleitores do atraso e da barbárie. Mantiveram Lula preso por 580 dias, de maneira ilegal, inconstitucional e imoral. E o próprio juiz, em impensável desfaçatez, aceitou –em aparente caso clássico de corrupção– ser ministro da Justiça do governo que ajudou a eleger. Até mesmo alguns procuradores se sentiram desconfortáveis com a jogada inescrupulosa. A ideia era ser candidato à Presidência da República depois de Bolsonaro, ou ser ministro do Supremo Tribunal Federal.
Depois, entraram em choque frontal com o monstro que criaram, numa disputa sangrenta de divisão de poder. Esse imbróglio resultou na eleição do ex-juiz para o cargo de senador da República. Agora, começa a ruir o mundo de fantasia que criaram. Deltan já foi cassado e agora posa até de jornalista. E o senador Sergio Moro deve ter seu mandato cassado até, provavelmente, fevereiro. Por ironia do destino, existe uma forte hipótese de o chefe da República de Curitiba ser cassado pelo Tribunal Regional do Paraná.
Depois, será só o Tribunal Superior Eleitoral confirmar. Como cidadão, acompanho os movimentos desesperados do ainda senador para manter o mandato. Mal sabe ele, ignorante e pretensioso que é, que seria muito melhor ele ser cassado. É humilhante e constrangedor ser cassado como senador, mas daria a ele uma sobrevida em liberdade.
O inquérito aberto no Supremo Tribunal Federal investiga uma série de graves crimes. O congressista atualmente tem direito ao foro privilegiado na Suprema Corte, um Tribunal que conta com uma grande quantidade de ministros que o desprezam. Que sabem o que ele fez nos verões passados. Há murmúrios de outros inquéritos. Uma denúncia no Supremo Tribunal Federal, com a cobrança da mídia que já o abandonou, será julgada muito rapidamente e, penso, a condenação será inexorável. Daí para o cárcere, sem recurso para instância superior –salvo para o Bispo–, é um pequeno passo.
Caso seja cassado, o processo irá para a 1ª instância, com direito a todos os recursos a serem utilizados pela regra constitucional da ampla defesa. E, sempre é bom lembrar, a ADC 43, da qual fui signatário e que cuidou da presunção de inocência, derrubou a prisão depois de condenação em 2º grau. Segundo dizem os amigos do ainda senador, ele fala que aquela foi sua maior derrota. Foi o julgamento em questão que deu liberdade a Lula. E é ele que vai fazer com que os integrantes da República de Curitiba possam acompanhar todos os recursos em liberdade.
Já me pediram para eu não dar esse conselho e deixar o infeliz continuar congressista, pois a prisão se dará antes. Mal sabem que essa turma de Curitiba não têm o hábito da leitura. Se quiserem manter segredo deles, é melhor escrever. Pelo menos a gente se diverte. Remeto-me a Rui Barbosa: “De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.”

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Direito, séries e seriados: vale a pena?

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Vale a pena estudar o direito por intermédio de séries e seriados de TV? Eles se prestam a propósitos que vão além do divertimento? São instrutivos sob o ponto de vista do conhecimento jurídico? É minimamente seguro embarcar nessa interdisciplinaridade?

Quanto às séries em forma de “documentário” isso parece bastante óbvio.

Mas acho que podemos fazer a mesma afirmação quando se tratar de obras de ficção. Embora os seriados jurídicos possam levar a visões equivocadas sobre o sistema judicial de dado país e do direito como um todo – afinal, são ficção –, se os assistirmos com um mínimo de senso crítico, eles são altamente instrutivos para os profissionais do direito. E posso dar até um depoimento pessoal: quando estava fazendo meu PhD no Reino Unido, no King’s College London – KCL, frequentemente assistia e muito aprendi com “Law & Order: UK”, a versão adaptada do badalado seriado para o Reino Unido. Apesar das inconsistências com a realidade, ele me fez aprender bastante sobre o mundo judiciário daquele país, sua história e, sobretudo, sua geografia, ao mostrar alguns dos mais belos prédios de Londres (da Legal London, como as Royal Courts of Justice, as Inns of Courts e a Old Bailey), prédios que, quase todos os dias, passava em frente para admirar.

Na verdade, posso dar uma série de motivos para justificar essa assertiva de que as séries e os seriados de TV são meios adequados para o tratamento sério do direito.

Em primeiro lugar, posso dizer que esses legal dramas testemunham a visão sobre o mundo do direito existente em determinada sociedade em certa época, muito embora essa visão esteja marcada, em certa medida, pela ótica particular do roteirista ou do diretor da obra. E esse testemunho é bem mais acessível ao espectador (com ou sem formação jurídica), para fins de reconstrução da imagem que determinada sociedade tem do direito e de seus atores, do que os áridos estudos jurídico-sociológicos postos em livros de caráter estritamente científico. Parece certo que o cidadão médio tem muito mais contato com operadores jurídicos ficcionais – incluindo-se aqui os personagens de filmes, séries, seriados e, no Brasil, sobretudo, os de telenovelas – do que com profissionais reais. Consequentemente, a imagem que o cidadão médio faz da lei, do direito, da justiça, dos juízes, dos promotores, dos advogados etc. é formada muito mais através da ficção (em suas diversas formas) do que a partir de experiências diretas pessoais.

            Em segundo lugar, alguns legal dramas resolvem satisfatoriamente problemas jurídicos intrincados. As séries e seriados, com suas intrigantes estórias, relatando a casuística das prisões, da vida forense ou dos escritórios de advocacia em linguagem bem mais acessível que a linguagem técnico-jurídica, são frequentemente excelentes aulas de direito. O relato televisivo, com sua dramaticidade, muitas vezes é bem mais elucidativo do que a objetiva descrição técnica do mesmo fato, processo ou instituição. De fato, vale a pena estudar o direito através das séries e dos seriados porque, na medida em que haja uma correspondência entre o conteúdo do filme e a realidade do mundo jurídico, o estudo do direito, partindo da casuística narrada no filme analisado, torna-se bem mais concreto e compreensível.

Em terceiro lugar, acredito que vale a pena estudar o direito através das séries e dos seriados porque a (re)construção televisiva dos operadores jurídicos pode ser um bom instrumento para que os estudantes e os profissionais no mundo real repensem e reconstruam com aprimoramento os seus papéis e as suas imagens na sociedade. E pode-se ainda acrescentar que, valendo-se de uma análise da TV de outros países, é possível se conhecer melhor – e comparar – a imagem que a sociedade brasileira tem da atividade jurídica e dos profissionais do direito no nosso país.

            Em quarto lugar, a produção televisiva, ao mesmo tempo em que reproduz o direito posto e o imaginário popular acerca das diversas temáticas jurídicas, também influencia, em graus variados, a construção desse direito e, sobretudo, desse imaginário. Nesse ponto, como se dá com outras interfaces da TV – por exemplo, com a religião, com os costumes, com a moda e por aí vai –, ela, a televisão, é subversiva, tanto para o direito positivo em si como para a “mentalidade” jurídica de modo mais abrangente. Não causa assim espanto que essa televisão mais “subversiva” – sobretudo a telenovela, no caso do Brasil – tenha antecipado muito das modernas teorias e tendências do direito, tais como a ética jurídica, o ambientalismo, o biodireito, o feminismo, a transexualidade etc. De fato, muitas das ideias inovadoras no direito, assim como boa parte das críticas à mentalidade jurídica consolidada, historicamente encontraram sua mais vívida expressão na ficção – seja através de romances, do teatro, do cinema, da TV etc. –, nesse meio de expressão que William P. MacNeil (em “Lex Populi: The Jurisprudence of Popular Culture”, Stanford University Press, 2007) chamou, poeticamente, de “lex populi”.

Mas há ainda aspectos mais sutis…

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

A VIDA DÁ, NEGA E TIRA

Foto: reprodução – O advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay

Há muitos anos tenho corrido o Brasil fazendo palestras, participando de debates em rádios e televisões, escrevendo artigos para fazer uma denúncia: o Moro e seu bando de procuradores adestrados corrompiam o sistema de justiça e pressionavam os investigados a fazerem delações criminosas com intuito de instrumentalizar o judiciário com finalidade política. As delações eram claramente dirigidas e centenas de vezes eu denunciei este fato gravíssimo, criminoso. Sempre afirmei que , em uma delação dirigida o delator mente, omite, protege, acusa quem o juiz e os procuradores querem culpabilizar.

Há tempos atrás fui procurado pelo Tony Garcia. Disse a ele que , por princípio, eu não advogava para delatores, mas ouvi a história dele. Estarrecedora. Desvenda uma teia criminosa que certamente levará para o cárcere esta republiqueta de Curitiba. É muito impressionante a ousadia destes indigentes intelectuais.

Muita coisa ainda vai acontecer.

Eu, cuidadosamente, instrui o Tony Garcia e o orientei.
Vale acompanhar.

Kakay

Direito, séries e seriados: uma paixão

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Parodiando uma constatação do jurista belga Bruno Dayez (autor de “Justice & cinéma”, editora Anthemis, 2007), de que o direito “é um dos temas favoritos do cinema”, posso afirmar que o direito é também um maravilhoso tema para as séries e os seriados de TV.

As razões para tanto são muitas. As questões judiciais muitas vezes envolvem dinheiro, violência, sexo, o que, sabemos, é sempre algo interessante de se explorar na TV. O crime em si, do mais banal ao mais grave, normalmente chama a nossa atenção. Muitas vezes, a própria perversidade do crime praticado ou o envolvimento de pessoas ilustres no fato, por exemplo, já são o suficiente para, sem o acréscimo de qualquer recurso dramático, emprestar qualidade e interesse a uma série ou seriado. A personalidade do criminoso, assim como a sua conduta antes e depois do crime, constitui-se geralmente em excelente matéria-prima para a ficção. A competência e a teatralidade dos operadores do direito – policiais, juízes, jurados, promotores e, sobretudo, advogados – é fascinante. A atmosfera de uma corte de justiça em pleno funcionamento é tensa e ao mesmo tempo encantadora. A mise en scène do processo penal, em alguns casos, assemelha-se a uma tragédia grega. A busca pela justiça, que é uma busca pela verdade, sempre envolve um suspense. Até mesmo a execução da pena, na trágica realidade carcerária existente mundo afora, é marcadamente perversa para invariavelmente prender nossa atenção. E por aí vai.

Aqui entra até uma questão mais ampla: o gênero ou temática a ser adaptada/roteirizada para as séries/seriados de TV. Estes parecem ser muito mais exitosos, qualitativa ou financeiramente falando, quando adaptam/roteirizam a literatura/ficção de gênero, em especial as estórias de suspense/mistério, para as suas maravilhas de imagem e som. Aliás, certa vez li no site literário Goodreads um belo artigo sobre o tema, de autoria de Adrienne Johnson, intitulado “Mystery Solved: Why Hollywood Is Obsessed with the Whodunit [leia-se ‘quem fez isso’]?”. E tudo fez sentido. E não são só os canais de TV e as plataformas de streaming que estão obcecadas por mistérios. Nós também estamos. Não conseguimos parar de assisti-los, mesmo com mil coisas a fazer ou necessitando dormir. Pode ser coisa do enredo forte, típico dos whodunit, dos thrillers e por aí vai. Quem fez isso? Por que fez? Como fez? Isso sem falar nas reviravoltas a cada instante, capítulo ou episódio. Perfeitas para os chamados “cortes” cinematográficos/televisivos. Tudo isso deixará você grudado ali se perguntando: O que houve? O que vai acontecer? Os filmes/séries de mistério nos tornam mais do que espectadores da estória. Em meio ao suspense, quase participamos da trama. Sentimos medo, raiva e alegria. E, claro, há os dilemas éticos e morais. O que faríamos no lugar da personagem X? Aliás, hoje há uma tendência nas séries/seriados “jurídicos” de contar sua estória com um toque de humanismo, mesmo quanto ao seu anti-herói. Um grande sofrimento ou injustiça prévia explica/justifica o seu comportamento. Além disso, também abordam, mesmo que lateralmente, questões atualíssimas, tais como igualdade e justiça social, gênero, classe, raça e por aí vai.

Mas se seriados como “Law & Order”, “Murder One”, “Arrested Development”, “Suits”, “Ray Donovan”, “How to Get Away with Murder” e “Better Call Saul”, apenas para citar algumas produções mais recentes, são ludicamente apreciados por aqueles que possuem formação jurídica – as suas enormes audiências e o número cada vez maior de seriados do tipo em exibição hoje mostram bem isso –, elas também se prestam a propósitos que vão além do divertimento? São instrutivos sob o ponto de vista do conhecimento jurídico? Sendo mais específico: as séries e os seriados de TV são realmente meios adequados para o tratamento sério do direito? É minimamente seguro embarcar nessa tendência ou moda (diriam alguns mais críticos) da interdisciplinaridade, aqui entendida como a interação, nos mais diversos níveis de complexidade (multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade em sentido estrito e transdisciplinaridade), entre o direito e as séries/seriados de TV, visando à compreensão (e até mesmo ao aperfeiçoamento) daquele através da linguagem destes?

Nossa resposta virá, se o destino permitir, na semana que vem.

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Direito, séries e seriados: uma introdução

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Interagir o direito com a arte, interdisciplinarmente, faz parte de uma tendência cada vez mais popular no mundo jurídico contemporâneo. Na Europa, nos Estados Unidos da América e, promissoramente, no nosso Brasil, os estudos de “law and literature” (direito e literatura) e “law and cinema” (direito e cinema) vêm ganhando, paulatinamente, cada vez mais destaque na teia dos “movimentos” interdisciplinares, com a publicação de livros e artigos voltados à temática e mesmo com sua inclusão nos currículos dos cursos de direito.

É dentro desse contexto promissor que gostaria de falar um pouco sobre a presença do direito – e o seu consequente estudo – em “séries” e “seriados” produzidos pela/para TV tradicional ou mesmo pelas/para plataformas de streaming (Netflix, Amazon Prime, Apple TV etc.). Aliás, considero “séries” e “seriados” de TV categorias sutilmente distintas, basicamente porque, no segundo caso, cada um dos seus episódios possui uma trama quase completamente autônoma.

No mundo “líquido” de hoje, as séries e os seriados para a tela pequena (a TV, grosso modo) viraram uma paixão. E a razão disso está, para além da qualidade da obra em si, na flexibilidade dos formatos e do tempo de execução. Uma série/seriado poderá ter inúmeros episódios e ser dividida em várias temporadas. A duração de cada episódio, algo em torno de trinta ou quarenta minutos, bem menor que a dos filmes, é o suficiente para gostarmos da estória sem cansar. Some-se a isso que cada episódio, via de regra, certamente nos seriados, é um mundo em miniatura para se viver, com começo, meio e fim. Com a explosão dos serviços de streaming, pululando nas TVs, isso é uma mão na roda, para a indústria e para a audiência.

Para aqueles com formação em direito, essa paixão muitas vezes se direciona para aquilo que vou chamar de séries ou seriados “jurídicos”, produções cujos enredos têm uma considerável ou mesmo uma fortíssima ligação com o mundo e as profissões do direito. Nessas séries e seriados, as histórias/estórias se passam, pelo menos em parte, perante uma corte de justiça em funcionamento ou em torno de algum escritório de advocacia, com as personagens realizando suas performáticas peripécias jurídicas. Os enredos da série e/ou de cada episódio do seriado costumam focar a vítima, o réu/criminoso, o advogado brilhante, o promotor que busca incessantemente a Justiça, o juiz justo, o controverso júri, o procedimento judicial em si, o crime praticado, a questão civil tratada e por aí vai. Quase sempre temos uma tensão entre a falibilidade do sistema ou da “justiça humana” e a noção do que é a verdadeira Justiça. Sem prejuízo de termos também alguns dramas pessoais misturados (uma pitada romântica, por exemplo, quase sempre vai bem, claro).

Especificamente quanto aos seriados, com graus de pertencimento “jurídico” variados, a depender da centralidade do direito na coisa, os exemplos são muitíssimos, conforme se pode constatar de uma breve consulta a publicações do tipo “1001 TV Shows You Must Watch Before You Die” (editado por Paul Condon, Universe Publishing, 2015). Vão desde o pioneiro “Perry Mason”, o seriado, “TV show” (como gostam de chamar os ianques) que, originalmente apresentado pela rede de TV americana CBS de 1957 a 1966 em 271 episódios, definiu o formato dos seriados jurídicos (“courtroom dramas”, “legal dramas”) como ainda conhecemos hoje; passando por “Rumpole of the Bailey” (Reino Unido, 1978-1992), “Night Court” (EUA, 1984-1992 e 2023-), “L. A. Law” (EUA, 1986-1994), “Law & Order” (EUA, 1990-2010 e 2022-), “Murder One” (EUA, 1995-1997), “Arrested Development” (2003-2006, 2013 e 2018-2019), “Boston Legal” (EUA, 2004-2008), “Mandrake” (Brasil, 2005-2007 e 2012), “Garrow’s Law” (Reino Unido, 2009-2012), “Accused” (Reino Unido, 2010-2012), “Vampire Prosecutor” (Coreia do Sul, 2011-2012), “Silk” (Reino Unido, 2011-2014), “Suits” (EUA, 2011-2019), “Ray Donovan” (EUA, 2013-2020), “How to Get Away with Murder” (EUA, 2014-2020), entre outros; e chegam a produções do tipo “Better Call Saul” (EUA, 2015-2022), que, não por mera coincidência, entre outras coisas, ganhou três troféus no Critics Choice Awards 2023 (Melhor Série de Drama, Melhor Ator e Melhor Ator Coadjuvante em Série de Drama).

Mas o que explica essa novel paixão “jurídica”? Isso veremos na nossa próxima conversa.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Trágicas misturas

Nas últimas semanas, tenho aqui tratado da “ética das profissões/personagens jurídicas”, propositadamente de maneira interdisciplinar, misturando o direito com a literatura e o cinema. Uma maneira lúdica – afinal, poucas coisas são tão gostosas como a literatura e o cinema – de abordar a ética de profissões hoje tão incompreendidas, mas fundamentais, que, nas palavras de Eduardo C. B. Bittar (no seu “Curso de ética jurídica: ética geral e profissional”, Editora Saraiva, 2016), são capazes “de cercear a liberdade, de alterar fatores econômicos e prejudicar populações inteiras, de causar a desunião de uma sociedade e a corrosão de um grande foco de empregos e serviços, desestruturar uma família e a saúde psíquica dos filhos dela oriundos, de intervir sobre a felicidade e o bem-estar das pessoas…”. E acho que o fiz também de uma forma sistematizada, já que, seguidamente, tratei de profissionais/personagens como o governante, o legislador, o juiz, o promotor, o advogado, o professor/jurista, o jurado, o réu, a testemunha e por aí vai.

Dito isso, usarei como mote, para um arremate da temática, a mistura de todas essas profissões no teatro clássico grego. Se há semanas comecei a análise das profissões jurídicas com a “Antígona” (441 a.C.), de Sófocles (497-406 a.C.), desta feita, para finalizar, volto à Grécia antiga com o “Édipo Rei” (429 a.C.), do mesmo autor. Um retorno ao nosso eterno berço.

O enredo – ou o mito – de Édipo é conhecidíssimo (e notadamente desenvolvido na psicanálise de Sigmund Freud). Filho do rei tebano Laio, Édipo, ainda bebê, foi deixado para morrer, pois o seu destino era, segundo o Oráculo de Delfos, matar o próprio pai e desposar a mãe. Mas é salvo por um pastor. Já adulto, entre Corinto e Tebas, mata um velho homem. Chega a Tebas. Responde a um enigma proposto pela Esfinge. Salva a cidade. É feito rei, casando com Jocasta, sua mãe e viúva de Laio, assassinado misteriosamente. Anos após a realização da profecia, e Édipo sendo rei de Tebas, uma peste castiga a cidade. O Oráculo de Delfos, segundo consultado por Creonte (que sucederá como rei), vaticina que, para salvar Tebas do sofrimento, é necessário descobrir e punir o assassino de Laio. Édipo promete aos cidadãos da pólis encontrar e punir o homicida. Édipo sai em sua “caçada”. Mas quando consegue chegar à verdade, ele constata a existência de um só inesperado responsável – ele próprio.

Já tratei de “Édipo Rei” em outra oportunidade para frisar duas coisas: (i) nela, o leitor verá a origem, como um precursor, da dita ficção policial ou detetivesca, gênero literário mais que popularíssimo; e (ii) que podemos também traçar, a partir de “Édipo Rei”, a origem ou o conceito de um mui específico subgênero da literatura (e do cinema), a “ficção de tribunal” (“courtroom drama”), cujas estórias se passam perante uma corte de justiça em funcionamento, com seus atores (advogados, promotores, juízes etc.) realizando suas peripécias jurídicas.

Mas hoje quero ir além na análise de “Édipo Rei”, para dela tirar uma lição ou “moral”.

Na trama, em busca do assassino de Laio, Édipo procura a verdade dos fatos, ouve testemunhas, envia mensageiros para coleta de informações e provas, analisa os relatos, pondera hipóteses, tudo reunindo para formar uma convicção acerca da identidade do responsável pelo hediondo crime. Proativamente agindo, é um policial, um detetive, um investigador. Mas há também inúmeras cenas, como os diálogos/confrontos entre Édipo e Tirésias e entre Édipo e Creonte, que deveras se assemelham ao que se dá em uma sala de audiência/tribunal. Um “courtroom drama” no qual Édipo é promotor e é juiz. E Édipo, claro, nunca deixou de ser Rei, muito embora se veja ao final também culpado.

A mistura de papéis – detetive/promotor/juiz/rei/culpado – não dá certo. Sabedor da verdade, desesperado, Édipo se autocondena, arranca os próprios olhos, para não ser testemunha da própria desgraça e dos próprios crimes. Jocasta, sua mãe, esposa e rainha, outra mistura fatal, comete suicídio. Os destinos são cumpridos. E são só tragédias.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL