Literariamente, não!

O combate às drogas ilícitas é atualmente um dos maiores desafios da humanidade. O problema do uso e do tráfico de drogas perpassa as fronteiras dos países. E atinge, sob os pontos de vista político, econômico, social, jurídico e sanitário, de modo gravíssimo, sociedades inteiras, famílias de todas as classes sociais e muitos milhões de indivíduos mundo afora.

Praticamente todos os países, o Brasil entre eles, possuem seus sistemas de combate às drogas. Nós temos o Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas (SISNAD), instituído pela Lei 11.343/2006, que “prescreve medidas de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas”.

Mas esse combate tem funcionado? Acho que nem preciso dizer que não.

Programas, planos e ações direcionados à prevenção e à repressão ao tráfico/uso de drogas ilícitas, por mais bem-intencionados e elaborados que sejam, têm falhado. Mundialmente, as políticas não têm produzido bons resultados. Por mais que se tente reprimi-lo, o tráfico só aumenta, e se vai, da noite para o dia, do crack para a K9, viciando e matando nossa juventude, sobretudo a mais pobre. A política atual tem talvez até “incentivado” a formação de organizações criminosas, o recrutamento dos mais vulneráveis (e pobres) para o tráfico e o vício, a violência nas grandes e médias cidades e, sobretudo, uma sensação de frouxidão da lei (problema especialmente grave no Brasil).

Nesse cenário sombrio, muitos atores políticos e especialistas reavaliam antigas posturas. Até defendem uma diferente e mais suave abordagem, propondo a discussão de medidas que vão da descriminalização à liberação de condutas hoje consideradas como delito. É assunto do momento. Estes dias, por exemplo, o nosso Supremo Tribunal Federal andou julgando um recurso, com repercussão geral, em que se discute se o porte de maconha para consumo próprio pode ou não ser considerado crime e qual quantidade da droga diferenciará o usuário do traficante. Interessante. Mas polêmico.

Acho que devemos ter uma “open mind” para as mais diversas sugestões/contribuições. E, para além dos esforços dos órgãos do Estado, qualquer solução para a conscientização e tratamento dos gravíssimos problemas trazidos pelo tráfico/consumo de drogas ilícitas passa por uma responsabilidade compartilhada com os outros atores da sociedade. A impressa tradicional, as redes sociais, as organizações não governamentais, as escolas, a família e por aí vai.

Por estes dias, caiu em minhas mãos, para fazer o seu prefácio, o livro “Não, e pronto! No mundo das drogas, só uma resposta te leva ao final feliz”, de Kalline Pondofe Santana, uma maravilhosa contribuição da literatura nessa guerra contra as drogas. Esse romance realista, que também pode ser lido como ficção policial, é um alerta/libelo nesse grave contexto. É direcionado à juventude, às famílias, é verdade. Mas, deveras bem escrito, encantará a todos. É forte. É sobretudo tocante, já que, no decorrer das páginas, cada leitor encontrará um personagem para chamar de seu. O meu é Davi.

Sem querer fazer spoiler das histórias/estórias de Luizinho, Raquel, Danilo, Pedro, Davi, Letícia, Mãe Maria, João, sargento Antunes e delegado Rubens, o fato é que “Não, e pronto!”, entre muitas sacadas, filosoficamente nos alerta para uma coisa que nos parece simples, mas que é às vezes dificílimo: dizer “não”! Para quem a gente gosta. Para as tentações da vida. Entretanto, é desse “não” que dependerá um pouco – ou muito – a felicidade das nossas vidas.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Compartilhamento de poderes

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Hoje, no Brasil, muito se reclama de uma invasão recíproca de atribuições entre os poderes do Estado. Ora num sentido, ora noutro, fala-se em “presidencialismo de coalizão”, em “parlamentarismo branco” e até numa “ditadura do Judiciário”. Há muito exagero nisso.

Formulada hodiernamente por Montesquieu (1689-1755), a teoria da separação dos poderes, apesar de fundamental para o poder político atuar, não merece, como disse o nosso Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1934-), a reverência quase religiosa que por vezes recebe. É uma receita de liberdade, cujos contornos dependem das circunstâncias políticas dadas. E a concepção contemporânea da teoria da separação não é tão rígida a ponto de impedir totalmente o exercício, por um dos poderes do Estado, de função, em regra, atribuída a outro Poder.

De fato, nos dias de hoje, temos presenciado o desenvolver de uma nova concepção do princípio da separação dos poderes. É um novo constitucionalismo, que abandona a ideia da rígida séparation des pouvoirs e consagra a ideia de uma sharing of powers, abrindo caminho para a superação do rígido esquema, que tenderia tão somente a reservar ao Poder Legislativo o trato abstrato e genérico dos direitos por meio da legislação, ao Poder Executivo a completa gerência das políticas de Estado e a confinar o Poder Judiciário ao âmbito da resolução dos negócios/conflitos concretos e individuais.

No constitucionalismo brasileiro, os exemplos de exercício, por um dos poderes do Estado, de função típica de outro, são bastante conhecidos. Vou me ater aqui, por ser “minha praia” (leia-se “conhecer um pouco melhor”), ao exercício, pelo Poder Judiciário, de funções “típicas” dos outros poderes.

Começo pelo próprio controle de constitucionalidade concentrado e em tese de leis e atos normativos, como exemplo até extremo, mas ao qual ninguém se opõe, que representa, muitas vezes, uma atividade legislativa negativa, para usar a expressão de Hans Kelsen (1881-1973).

Sigo adiante com uma questão mais controversa: essa nova ideia de separação de poderes implica o desenvolvimento de uma nova concepção do papel do Poder Judiciário nas políticas de Estado. Até porque, no Judiciário brasileiro de hoje, vê-se um visível incremento das demandas de ordem “coletiva” (ações diretas em controle de constitucionalidade concentrado de diversos tipos, ações civis públicas, ações populares etc.). Embora essa mudança de paradigma não pressuponha o abandono da tutela individual ou das técnicas a ela ligadas, ela significa que o juiz contemporâneo não trata exclusivamente de casos individuais, mas também de casos que têm um impacto de massa, envolvendo uma parcela significativa de qualquer sociedade.

E aqui anoto uma lição que aprendi com Jean Dabin (1889-1971): os juízes e tribunais constituem Poder e são claramente depositários de uma parte da autoridade pública, sendo pelo Estado designados para, em seu nome, administrar a justiça. A lei que juízes e tribunais aplicam é basicamente a lei do Estado, quer a encontrem formulada em normas, quer tenham que elaborá-la eles mesmos. Seria equivocado considerar como não político o Poder Judiciário quando ele, na ausência de uma regra legal, tem a permissão – e o dever – de suplementar o Poder Legislativo, que é eminentemente político. É equivocado defender a completa separação do Poder Judiciário dos outros poderes do Estado, sob o argumento de que os Poderes Legislativo e Executivo representariam um poder político, enquanto que o poder dos juízes e tribunais seria de natureza estritamente legal, assim como é um erro opor a lei – a lei do Estado – à política de Estado.

O problema, a meu ver, surge quando se confunde a política do Estado e da sociedade com ideologias, sejam elas quais forem, ou mesmo com a política partidária. Isso não é compartilhamento de poderes; é divisão do Estado e da sociedade.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London
KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

A província comparada

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Outro dia, fui convidado pelo seu autor, Paulo Caldas Neto, para prefaciar o livro “Palimpsestos: ensaios”, ainda no prelo. Fiquei muito feliz. O livro é interessantíssimo. Um belo exemplo da arte pluritemática de Michel de Montaigne (1533-1592). E se assim o é, acho que a razão está, para além da cultura e do estilo do autor, no uso, com grande eficácia, na maioria dos ensaios, da “ferramenta” da comparação literária. O autor mistura/compara autores, obras e temas de diversas literaturas, a exemplo da inglesa e da grega, com a nossa produção, tanto nacional, como regional ou mesmo provincial. São feitas incursões de caráter histórico nas literaturas comparadas, de maneira ao mesmo tempo integrativa e contrastante, que identifica os elementos da literatura de outros povos, de outros países, de outras línguas, suas semelhanças e diferenças para com a nossa literatura, assim como os nossos pontos fortes e fracos no panorama cultural universal. Gosto dessa perspectiva ampla e multicultural da literatura. Jamais em competição com as outras literaturas, mas em parceria com elas, ela nos ajuda a chegar a um julgamento crítico e equilibrado da nossa produção intelectual. E isso é mais do que muito.

Tomemos como exemplo de comparação literária o ensaio “Opereta em dó maior a um humanismo decadente: o riso em Laurence Sterne e Machado de Assis”, que versa especificamente sobre a influência do “Tristram Shandy” (“The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman”, 1759-1767) sobre “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), obras clássicas dos autores citados, respectivamente. Eis um trecho que é uma ode à comparação literária: “No caso do riso, fica bem mais simples se repensar valores culturais e sociais por ser universal, e o Universalismo é que torna a linguagem também uma a todos os povos. Mesmo que haja um engajamento sociopolítico, conforme se constatou primeiramente na prosa de Laurence em comparação depois à de Machado, o perfil universalizador deve prevalecer em função da unidade; nós, seres de um processo histórico, somos marcados por nossas atitudes e vícios, registrados depois ou por um historiador ou por artista. O intercâmbio entre os discursos fortalece a visão de que todos estamos num palco, guiados por uma educativa comédia a qual assinamos com a pena da galhofa e a tinta da melancolia. Está aí o equilíbrio que rege quem podemos ser”.

Um mérito notável de “Palimpsestos” é comparar a nossa literatura regional, muitas vezes dita “popular”, valorizando-a, com as “literaturas universais”, como no ensaio “Máscara greco-sertaneja: o ressurgimento do humor no teatro de Ariano Suassuna”. Lá consta uma frase lapidar:  “pelas mãos do Popular, transformar-se-á o Erudito”. E “Palimpsestos” tem o mérito – ainda maior – de focar a nossa província, o Rio Grande do Norte, resgatando, por exemplo, a obra do poeta, violonista e cantor Lourival Açucena (1827-1907), boêmio que alegrava as rodas de conversa, as noitadas ao luar e as solenidades da Natal do seu tempo, mas hoje infelizmente esquecido.

Devo registrar que esse tipo de regionalismo – ou mesmo de provincialismo – é de ouro. Um provincialismo à moda de Câmara Cascudo (1898-1986), “O provinciano incurável”, que, em crônica com esse título, publicada lá pelo final da década de 1960 (revista Província, IHGRN, 1968), confessava: “Queria saber a história de todas as cousas do campo e da cidade. Convivências dos humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos segredos do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios. Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. Pesquisas. Indagações. Confidências que hoje não têm preço. Percepção medular da contemporaneidade. Nossa casa no Tirol hospedou a Família Imperial e Fabião das Queimadas, cantador que fora escravo. Intimidade com a velha Silvana, Cebola quente, alforriada na Abolição. Filho único de chefe político, ninguém acreditava no meu desinteresse eleitoral. Impossível para mim dividir conterrâneos em cores, gestos de dedos, quando a terra é uma unidade com sua gente. Foram os motivos de minha vida expostos em todos os livros. Em outubro de 1968 terei meio século nessa obstinação sentimental. Devoção aos mesmos santos tradicionais. Nunca pensei em deixar minha terra. (…). Fiquei com essa missão. Andei e li o possível no espaço e no tempo. Lembro conversas com os velhos que sabiam iluminar a saudade. Não há um recanto sem evocar-me um episódio, um acontecimento, o perfume duma velhice. Tudo tem uma história digna de ressurreição e de simpatia. Velhas árvores e velhos nomes, imortais na memória”.

Esse provincialismo, de quem vive e trata da sua terra por amor a ela, sobretudo quando a faz objeto de comparação multicultural, é muito mais do que muito. Decerto porque, parafraseando o próprio Cascudo, ele é duramente forjado em “Livros. Cursos. Viagens. Sertão de pedra e Europa”. Mas também porque, como disse o enorme Leon Tolstói (1828-1910), “se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Uma comparação literária

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Hoje mais do que nunca, com a globalização, a facilidade de comunicação e o maior intercâmbio cultural, a literatura comparada deve ser uma das principais “parceiras” daquele que pretende analisar as realidades da cultura geral e do seu povo. E, quando falo de globalização, refiro-me àquele processo que tende a criar e consolidar uma economia mundial unificada, um único sistema ecológico, uma complexa rede de comunicações que abarca todo o mundo e, por que não, um padrão de cultura/literatura comum a todos os povos ditos “civilizados”.

Essa melhor utilização da literatura comparada, aliás, pode se dar de várias maneiras e em vários níveis. Podemos realizar macro ou microcomparações. A primeira refere-se ao estudo de duas ou mais “literaturas” (a brasileira e a norte-americana em suas totalidades, por exemplo); a segunda, ao estudo de aspectos, temas, obras ou autores de duas ou mais “literaturas”. Deve-se notar, ainda, que essa comparação pode ser horizontal ou vertical, a depender se o enfoque recai sobre o panorama atual ou se são feitas incursões de caráter histórico nas “literaturas” comparadas. De fato, na literatura, a comparação tem muito a nos oferecer. De maneira ao mesmo tempo integrativa e contrastante, a literatura comparada nos ajuda a identificar os elementos essenciais da literatura de outros países, de outros povos, de outras línguas, suas semelhanças e diferenças para com a nossa, assim como seus pontos fortes e fracos no panorama cultural universal. Jamais em competição com as tradições internas, mas em parceria com elas, a literatura comparada pode ter uma função de análise e ajudar a se chegar a um julgamento mais equilibrado e crítico de nossa produção intelectual, graças a uma perspectiva mais ampla e multicultural da literatura.

Tomemos aqui, como singelo exemplo para comparação literária, a seguinte relação entre a obra do irlandês Laurence Sterne (1713-1768) e do nosso Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908).

O mulato carioca Machado de Assis é convencionalmente tido como o maior escritor brasileiro de todos os tempos. É quase uma unanimidade, acredito. O grande crítico norte-americano Harold Bloom (1930-2019), aliás, tinha Machado de Assis como o maior escritor negro de todos os tempos. Uma de suas obras-primas é o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881). E a propósito, em 2020, a prestigiosa revista The New Yorker, em virtude de uma nova edição de “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas”, deu à resenha do livro o consagrador título: “Redescobrindo um dos mais espirituosos livros jamais escritos”.

“Memórias Póstumas de Brás Cubas” é alegadamente inspirado no “Tristram Shandy” (“The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman”, 1759-1767) de Sterne. Mesmo que se tenham estórias diversas para cada um dos livros, e mesmo que seus contextos sociais e culturais sejam diversos (uma Europa com duzentos anos de diferença para o nosso Brasil), há, sem dúvida, fortes pontos de contato/inspiração. A “forma livre de jogar as ideias”, as digressões e o humor (embora um humor mais sarcástico em Machado e um mais ingênuo/sentimental em Sterne) são amplamente reconhecidos. Pode-se até de dizer que Machado “roubou” a ideia ou concepção do romance de Sterne, que, por sua vez, já a teria “furtado”, em parte, do Dom Quixote (1605) de Miguel Cervantes (1547-1616).

 Mas não tenham isso como demérito para o nosso maior escritor. Com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Machado de fato nos presenteou com um romance inovador – experimental, posso dizer –, tido como o marco inicial do realismo (mágico?) na literatura brasileira, até então presa ao romantismo. Um ponto de virada, para melhor, na obra do Bruxo do Cosme Velho. As ousadias formais – basta lembrar que o narrador é um “defunto autor”, sem compromisso com a cronologia do tempo – e o humor implacável são mesmo revolucionários. E, para além dos aspectos formais, o romance também encanta pelo seu conteúdo: pretensa autobiografia, é uma crítica, refinada mas sem concessões, da hipocrisia da sociedade brasileira de então (e de hoje?). Por detrás do humor, revela o pessimismo do autor com tudo que ele enxerga. É um romance filosófico e moral, que combina diversão e profundidade com natural equilíbrio.

Afinal, e não canso de repetir, já dizia o enorme Picasso (1881-1973): “Bons artistas copiam, grandes artistas roubam”.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Uma receita ensaística

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Michel de Montaigne (1533-1592) é considerado o exemplo do intelectual moderno. Talvez tenha sido o primeiro da sua estirpe. Como bem define Carlos Eduardo Ortolan (em “Montaigne: um ensaísta refinado”, Cadernos EntreLivros 4 – Panorama da Literatura Francesa, 2007), ele foi um “cavalheiro elegante que, recluso em sua propriedade em Bordeaux e cercado por vasta biblioteca como um herói solitário do pensamento, produziu reflexões sobre os temas mais variados. Montaigne forneceu o tom para o estudioso erudito, o trabalhador intelectual incansável, às voltas com a leitura e a redação de seus artigos”. Montaigne foi um sábio, no que de mais positivo possa ter essa palavra. Praticante da “epoché” do ceticismo clássico, a suspensão do juízo diante da antinomia de duas formulações igualmente razoáveis e fundamentadas, evitava, entre outras coisas, falar tolices.

E Montaigne foi – ou, melhor, é – o autor de uma obra considerada seminal das letras universais, “Os ensaios” (“Les Essais”, 1580), que tratam de quase tudo e que fundam um novo gênero literário. Como anota o citado Carlos Eduardo Ortolan, “uma breve vista de olhos por suas páginas nos brindará com um cortejo imenso, heterogêneo e vazado, no melhor estilo clássico de uma variedade de temas que faria inveja a qualquer enciclopédia moderna. (…) Esse é um dos encantos da obra: os ensaios podem ser lidos sem compromisso com uma ordem rígida, abertos ao acaso e fruídos em sua sabedoria e elegância, mesmo nos tempos atuais”.

Mas, a partir do exemplo de Montaigne, o que faz alguém ser um bom ensaísta? E, em tempos tão “líquidos”, que pedem textos mais curtos, o que faz um bom cronista/ensaísta? Existe uma receita para um “fino corte ensaístico”?

Certamente, ensaios/crônicas devem ser sistemáticos somente até certo ponto. Os textos, espalhados em jornais e revistas, ou mesmo reunidos em livro, podem possuir um ou mais núcleos temáticos, é verdade. Mas o que realmente importa é que eles sejam o resultado das reflexões mais íntimas do autor, das suas preferências na vida ou mesmo do momento, enfim, do seu estado anímico, quando ele, tinta e papel à mão, ou defronte a uma tela de computador, deixa fluir suas ideias e sua imaginação.

O ensaísta/cronista não deve cair na tentação da rigidez acadêmica, embora não deva abrir totalmente mão dos elementos indispensáveis a uma formulação de ideias fundamentada e crítica. Nesse ponto, basta ser sensato.

Ele deve ser informativo. Conhecer o mundo, as pessoas e as ideias. Mas deve ser também opinativo. Ter posição. Não precisa – aliás, não deve – ser extremista. O ensaísta/cronista deve ter a coragem de ser moderado.

Pode ser irônico, até sarcástico, mas na medida certa. A ironia oferece expressividade a qualquer discurso. E o riso, para desespero dos casmurros de hoje, nos une.

Por derradeiro, o ensaísta/cronista de gênio deve saber interpretar o mundo. Para além de saber das ideias, é necessário compreendê-las. Deve sobretudo descobrir e dizer o ainda não dito a partir daquilo que já foi dito. Mark Twain (1835-1910) certa vez disse algo como: “Não existe uma nova ideia. É impossível. Nós simplesmente pegamos um monte de ideias antigas e, então, as colocamos em um tipo de caleidoscópio mental”. E assegurava o revolucionário Picasso (1881-1973): “Bons artistas copiam, grandes artistas roubam”.

E, claro, o ensaísta/cronista deve concluir o seu raciocínio ou, pelo menos, sugerir alternativas coerentes de conclusão para o leitor. Pois essa é a minha receita de “fino corte ensaístico”. Que, confesso, copiei ou roubei, por partes, de muita gente.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Direito, séries e seriados: papel e tela

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Sou um efusivo defensor das superpotencialidades das séries e dos seriados de TV para fins de estudo sério do direito. Voluntariamente confesso.

Todavia, devo reconhecer o fato de que o direito se desenvolveu ao longo de sua história, fundamentalmente, na forma escrita. A prática do direito e o compartilhamento do saber jurídico se deram, não podemos negar a história, essencialmente com “a tinta posta no papel”. Se o direito é uma ciência, se é uma arte, se é um gênero literário, ela ou ele se fez (e ainda se faz), sem dúvida, majoritariamente através da escrita.

Mas tem de ser necessariamente assim? Ou tem de ser somente assim? Como indaga Julio Cabrera (em “O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes”, Editora Rocco, 2006): “Existe alguma ligação interna e necessária entre a escrita e a problematização filosófica [no nosso caso, jurídica] do mundo? Por que as imagens não introduziriam problematizações filosóficas [ou jurídicas], tão contundentes, ou mais ainda, do que as veiculadas pela escrita?”.

Não enxergo qualquer coisa na essência do direito que o “condene” a se manifestar tão somente pelo meio da escrita como conhecemos, muito menos apenas através de enfadonhos códigos ou tratados. Pelo contrário.

Já disse, entre outras coisas, que: (i) as séries e os seriados jurídicos testemunham a visão sobre o mundo do direito existente em determinada sociedade em certa época, e esse testemunho é bem mais acessível ao cidadão, para fins de reconstrução da imagem que se tem do direito e de seus atores, do que os áridos estudos achados em livros de caráter estritamente científico; (ii) eles podem ser um bom instrumento para que os estudantes e os profissionais no mundo real repensem e reconstruam com aprimoramento os seus papéis e as suas imagens na sociedade; (iii) esses legal dramas de regra resolvem satisfatoriamente problemas jurídicos intrincados, sendo frequentemente, a partir da dramaticidade casuística, excelentes aulas de direito; e (iv) a produção televisiva, ao mesmo tempo em que reproduz o direito posto e o imaginário popular, também influencia a construção desse direito, subversivamente antecipando muito das modernas teorias e tendências do direito, tais como a ética jurídica, o ambientalismo, o biodireito, o feminismo, a transexualidade etc.

Aqui adiciono: a TV até possui uma linguagem mais adequada que a linguagem da escrita, sobretudo da nossa escrita técnico-jurídica, para expressar nuances, intuições e elementos afetivos que também permeiam – e assim deve ser – o direito. Como explica Julio Cabrera, diferentemente da letra fria da lei e dos manuais de direito, os conceitos-imagem do cinema (e da TV, ajunto), por meio da “experiência instauradora e plena, procuram produzir em alguém (um alguém sempre muito indefinido) um impacto emocional que, ao mesmo tempo, diga algo a respeito do mundo, do ser humano, da natureza etc.”. E assim eles têm um valor cognitivo e persuasivo não só pela informação objetiva que transmite, mas também – e muito – pelo seu componente emocional.

Com certeza não estou só nessa empreitada transdisciplinar. No final do ano passado, eu mesmo prefaciei um maravilhoso livro, “O Direito e as séries – temporada 2”, organizado por Adelmar Azevedo Régis e Nicole Leite Morais, que serve como perfeito libelo para que os profissionais do direito incluam as séries e seriados, incluindo as obras de ficção, em suas formações e atividades jurídicas, na academia e na vida profissional cotidiana.

Parafraseando palavras de André Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert (em “Direito e literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito”, texto constate do livro “Direito & literatura: reflexões teóricas”, Livraria do Advogado Editora, 2008), a ficção, o cinema e a TV abrem o “universo de análise do fenômeno jurídico, na medida em que este deixa de ser descritivo, conforme exige o positivismo, e torna-se narrativo e prescritivo”, demonstrando “que o direito é um sistema cultural, do qual participam a imaginação e a criatividade literária [e cinematográfica/televisiva], como componentes da racionalidade jurídica”.

E assim grito, em prol da unidade dessas duas culturas, o direito e a arte, viva!

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Direito, séries e seriados: os recursos

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Como outrora dito, a dramaticidade que nos envolve e a emoção que nos toca no cinema e perante a TV estão fortemente relacionadas aos recursos técnicos pertinentes a tais artes visuais, como a pluriperspectiva, a capacidade de manipular tempos e espaços, o corte cinematográfico, os efeitos especiais etc., que superpontencializam, para o espectador, os dados sensoriais da vida real.

            A “pluriperspectiva”, por exemplo, é, nas palavras de Julio Cabrera (em “O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes”, Editora Rocco, 2006), “a capacidade que tem o cinema [e a TV, ajunto] de saltar permanentemente da primeira pessoa (o que vê ou sente o personagem) para a terceira (o que vê a câmera) e também para outras pessoas ou semipessoas que o cinema é capaz de construir, chegando ao fundo de uma subjetividade. (…) A pluriperspectiva pode ser considerada uma espécie de qualidade ‘divina’ (ou demoníaca!) do cinema, no sentido da Onisciência e da Onipotência. Evidentemente, a montagem, a estratégia dos cortes, os movimentos de câmera etc. podem intensificar esta característica fundamental do cinema, que contribui grandemente para a eficácia do choque emocional”.

E aqui cito o seriado “Cold Case” (2003-2009), que tem como “cenário” a cidade de Filadélfia (EUA) e como personagem principal a detetive Lilly Rush (interpretada por Kathryn Morris). A missão da equipe de polícia é investigar casos antigos, de décadas atrás e já arquivados, com crimes até então nunca desvendados. “Cold Case” contém características que são comuns à maioria dos seriados policiais: investigando um crime por episódio, os detetives, a partir de uma introdução aos acontecimentos (geralmente em forma de flashback), colhem as evidências, ouvem testemunhas e suspeitos, fazem uso das novas tecnologias da criminalística etc., juntando as peças necessárias para desvendar o caso. Mas esse seriado faz uso de uma pluralidade de vozes toda especial: os testemunhos/versões dos acontecimentos são acompanhados por cenas em flashback da época do crime, que dramatizam sobremaneira a coisa. As cenas em flashback fazem com que tenhamos pluriperspectivas até nos depoimentos de uma mesma personagem, com cada testemunha/investigado enxergando os acontecimentos duplamente, tanto sob o “olhar” do passado (contemporâneo ao crime) como do presente (quando da investigação em curso). Esses flashbacks apresentam questões relacionadas à mentalidade do século 20, que influenciaram o cometimento do crime, tais como racismo, sexismo, aborto, homofobia, transfobia e violência policial, fazendo mais um interessante paralelismo, ao mostrar as diferentes perspectivas, com os dias atuais. Ao fim de cada episódio, desvendado o crime, é mostrada a prisão do assassino, geralmente em cena de flashback e testemunhada, essa prisão, pela própria vítima. Tem-se, então, até a perspectiva/olhar da própria vítima.

            “Cold Case” é assim também um perfeito exemplo daquilo que Julio Cabrera registra como “a quase infinita capacidade do cinema [e da TV] de manipular tempos e espaços, de avançar e retroceder, de impor novos tipos de espacialidade e temporalidade como só o sonho consegue fazer”. Em grande medida, a TV consegue isso fazendo uso do chamado “corte cinematográfico”, recurso que, nas mãos de uma direção de TV talentosa e com recursos técnicos para tanto, pode fazer milagres. E isso pode ser levado a um grau elevadíssimo com os cortes/capítulos/episódios nas séries/seriados de TV.

Mas aqui podemos ir ainda mais longe sobre a adequação da TV para retratar fatos e temas relacionados ao direito, sobretudo naqueles chamados seriados de tribunal. Afinal, o que é um processo, e sobretudo um criminal, se não a análise retrospectiva de uma conduta juridicamente/penalmente relevante? A TV, manipulando tempos e espaços, avançando e retrocedendo, quase ao vivo, reconstrói os fatos, nos apresenta e questiona as testemunhas, reanalisa as evidências, debate os argumentos das partes, faz tudo de novo se necessário ou conveniente à trama/processo/julgamento, e por aí vai.

            De fato, ao conseguir intensificar de forma colossal a “impressão da realidade”, a TV nos dá, com grande eficácia, quase a plenitude da desejada “experiência vivida”. Pelo menos assim eu acredito.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL